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              MÚSICA DO BRASIL DE CABO A RABO

             PRODUCTOS TROPICAES    

                    & PRODUCTOS  PSYCHOTROPICAES

                                 ciberzine & narrativas de james anhanguera 

 

      Metais e cordas entram de rompante e decrescem rápido para em begê dar vez a um coro que entoa com garbo

quando a encosta do morro Cara de Cão descerra o pano em panorâmica para o Corcovado - que ainda nem tinha nome -, morro da Viúva - que ia levar tempo para nascer - e Santa Teresa - que tinha outro nome.

O barquinho vai, a tardinha cai e o Pão de Açúcar enrubesce, corado do dia luminoso e quente. Visto daquele ângulo parece uma Esfinge, uma Gata Negra Bronzeada estendida ao sol.

O espelho d’água tremeluzente, golfinhos e baleias, a boca banguela que seja - ma che bbeeello,  escancara os braços Amerigo Vespuccio e desata a folgar

         It’s delightful, it’s delicious, it’s de-lovely...

  braço dado com Cole Porter que vem de carona na expedição do capitão genovês

      ... e a manhã tropical se inicia.

É a primeira manhã do mundo na baía de Guanabara, o Rio de Janeiro nasce para a história.

É mais que uma canção de Cole Porter, o nosso Orlando, que nem sabia se chegava para a visão primordial, se era 1503 ou 1499 ou se partia em 1937 de regresso a Nova York.

É a primeira Utopia depois da Atlântida dos antigos gregos. Mundus Novus, chamou Vespúcio a América. E para Thomas Morus o Brasil era a Ilha da Utopia.

É a vida, se como escreveu Wilde não merece sequer uma mirada quando na sua carta não se vê sombra de Utopia.

É a Sinfonia do Rio de Janeiro de Tom Jobim e Billy Blanco sem tirar nem pôr.

 

O que terão sentido aqueles homens ao ver o Pão de Açúcar e o morro da Urca reluzente como um pão de ouro ao sol do seu primeiro olhar para uma das mais belas baías do mundo, ainda intacta.

 - Você é conhecido por ser capaz de recriar com grande carga de intensidade os ambientes onde filma e já afirmou que quando viaja fica com a sensibilidade aguçada para todo o tipo de descobertas. Já que desde 1966 você tem vindo repetidas vezes ao Brasil, que tipo de filme este cenário lhe inspira?

Roman Polanski - Sempre que passeio de  barco no Rio de Janeiro fico pensando nos primeiros europeus que chegaram por aqui. Seria algo talvez em cima do  contraste entre duas culturas na época dos conquistadores...

 

Em 1500 começa  a História do Brasil.

Antes era a pré-História.

No Rio os índios não escutavam a Rádio Tamoyo.

Os tupiniquins da praia de Coroa Vermelha ainda não conheciam a Timbalada de Carlinhos Brown.

        Nada tinha nome nas línguas dos gringos.

Mundus Novus, Utopia, os termos eram atlântidos.

        Os tupi-guaranis eram concretistas.

Pindorama, chamavam às terras do litoral.

Terra das Palmeiras.

      Desbussolados os europeus não sabiam nem que nome dar a isso - Ilha de Vera Cruz, Terra Nova, Terra dos Papagaios ou Terra Papagalli, Terra da Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Terra do Brasil - a cada ano um nome novo.

        Até que ficou Brasil mesmo.

        Embarcaram também nas naus e caravelas Deus e o Diabo, que os tupiniquins e os tamoios não conheciam.

        Da Santa Cruz é dose pra leão.

        Terra do Brasil.

Em 1505 fixam a data em que já sabiam que ali não havia só papagaios e puseram-se a cortar a Mata Atlântica a velocidade de serra elétrica.

 

Som de fundo b.g. cantos de pássaros e serra elétrica. No mapa animado a Mata Atlântica é reduzida a um vigésimo em 500 anos. Voz de Samuel Fuller, que esteve em São Félix do Araguaia (Mato Grosso) em 1954 para filmar Tigrero para a 20th Century Fox quando regressa em 1990 para filmar com Mika Kaurismaki Tigrero – The Film That Was Never Made:

- Meu filho, aquilo sim foi uma aventura. Quando pousamos aqui só havia sete ou oito casas de índios. Era mata virgem ao redor e milhares de pássaros coloridos. Infelizmente não vejo nada igual agora.

 

             Terra do Pau Brasil em extinção.

         Cor fogoembraza, tinturaria.

        Terra da Vera Cruz é o próprio flagelo da cruz de Cristo para redimir os pecados originais daqueles pobres filhos de Deus ignaros da existência do mal absoluto. A vera cruz.

        Utopias religiosas. Sonhos de Estado também, com as tribos de Israel unidas na França Antártica mas que logo se engalfinham a ponto de quase praticarem o canibalismo não-ritual.

         Terra de exílio espiritual entre os ímpios - para fazer o quê?

         Os franceses nem tiveram tempo de pensar nisso e foram expulsos da Baía de Guanabara antes de ver crescer as primeiras mudas de ouro doce, quando Duarte Coelho Pereira já bradara Ó linda situassam para fundar uma villa.

         Pan de Assucar...

         Pura poesia.

         Ou poesia nenhuma nisso...

 

Outra peça importante para a reconstituição histórica do modo de produção do engenho são fragmentos de fôrmas de pão-de-açúcar (...).

Essas fôrmas – cones com um furo na ponta – recebiam o caldo de cana fervido e o armazenavam por 45 dias, período após o qual o “pão” (bloco de açúcar endurecido) era retirado.

O “pão” era cortado pelos escravos de modo que fossem separadas as partes “nobres” do açúcar – destinadas à exportação – da parte que misturava bagaço de cana e impurezas – destinadas à alimentação dos escravos.

 

             Não tinha jeito mesmo. Sem poesia. Cada nome, fora os de Américo ou Morus, que só se meteram nisso para poetar mesmo, ligado a uma doutrina ou ao modo de produção. Hernán de Noroña, o do primeiro monopólio do Mundus Novus: corte e comércio do pau-brasil. Pão-de-açúcar e sem mais essa: o pão que o diabo (deles) amassou e o mascavo mascavam os índios escravos na Capitania de San Vicente.  Talvez um niquito de nada, porque não eram gente – não tinham alma -, não eram tratados como gente. Quando chegar a vez de Antônio Raposo Tavares alimentá-los, daqui a cem anos, dar-lhes-á uma espiga de milho de ração diária.

         Pau-brasil, cana-de-açúcar, ouro, diamantes, borracha, café, mulatas, la sambá, jogadores de futebol. Productos tropicaes. Extração em vilipêndio ou monoculturas de usura e exportação. Para os da casa, o chicote, a fome, o extermínio em massa, o canibalismo não-ritual.

 

 Eles não falam do mar e dos peixes  

nem deixam ver a moça pôr a canção

nem ver nascer a flor nem ver nascer o sol

 e eu apenas sou um a mais, um a mais

 a falar dessa dor, a nossa dor  

 

                             Milagre dos Peixes

Milton Nascimento-Fernando Brant  

 

           ... as Américas foram, antes de ter uma realidade própria, uma

           “utopia européia”:em outras palavras a descoberta do “Novo Mundo”

           parecia corresponder à antiga esperança de um mundo diferente e

           melhor, à esperada realização de um sonho longamente acalentado

           pelo homem europeu.  

       Esperança de um mundo diferente e melhor... Um sonho longamente acalentado... Como assim,  se trazem a mesma doutrina – e Deus e o Diabo, e o Diabo, como se vê desde logo pelo sonho desfeito de Villegaignon  -, o mesmo modus operandi e a sacrossanta cobiça?

          Terá sido como poetou Oswald de Andrade apenas um

                                                                 Erro de Português  

   Quando o português chegou debaixo de uma bruta chuva, vestiu o índio.

     Que pena! Fosse uma manhã de sol, o índio teria despido o português.

 

 

           ABERTURA EM TOM MENOR

     Aroma é ter você na minha

       Stevie Wonder na vitrola    Lucinha Turnbull 

   Este livro contém escritos pensados e ouvidos em Lisboa, Paris, Roma, Luanda, Rio de Janeiro e Salvador desde 1972, quando James Anhanguera comprou em Lisboa um exemplar de Balanço da Bossa, de Augusto de Campos, que acrescido de & Outras Bossas é uma de suas bíblias.

   Convidado para contar uma Breve História da Música Popular Brasileira em seminário no Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Roma em 1983 aproveitou para na sequência reunir num manuscrito a informação compilada em dois livros publicados em Lisboa que foram como que os PRIMEIROS CADERNOS DO ALUMNO DE MPB.

À época a MPB galvanizava jovens e curtidores de música de todo o mundo. E em Roma por causa do fenômeno Paulo Roberto Falcão o Brasil estava ainda mais na moda quando não estava na moda no próprio Brasil, como costumava dizer Nelson Motta.

    Esse trabalho foi sendo desenvolvido nos quatro anos seguintes e terminou justamente quando a grande nova onda da música popular brasileira, de par com o chamado Brock (e que acrônimo mais sem jeito!), era a dita Lira Paulistana.

    Num périplo de 20 anos de clubes de jazz e bares a grandes salas, indo ao encontro dele em Paris ou dando de caras por acaso com Naná Vasconcelos em Roma, reencontrando por acaso Mal Waldron e sentando com ele para tomar um drinque e ouvi-lo falar de Coleman Hawkins e Billie Holiday numa esplanada romana, passeando com Milton Nascimento ao longo do Tibre e olhando para Trastevere ocorre perguntar:

- Mas Milton, uma coisa que sempre me pergunto é como a cidade é moderna, dizia o velho a seu filho, numa música chamada Trastevere, um dos bairros mais antigos do mundo?

- Não sei... Eu nem tinha vindo aqui ainda. O Ronaldo (Bastos) é que conhecia e falava muito nesse lugar...

Anhanguera - como a própria figura sinistra de que carrega o cognome - cedo desenvolveu uma visão bifocal: olhando para os fenômenos a que assistia às vezes quase como um irmão de quem tocava e por outro lado como um estrangeiro total e sentindo-os também como estrangeiro.

    O que acrescenta muito à própria visão teorizante mas sobretudo ao deleite de ter o privilégio de ouvir Canhoto da Paraíba tocando Abismo de Rosas numa salinha de apertamento no Brooklin paulista, assustar-se como as vítimas indefesas de Anhanguera com Dom Um Romão urrando numa sala do Marais, em Paris, em reação indignada a um disco de samba-funk à la Stevie Wonder de Carlos Dafé, isso é pura imitação barata de música americana ou desligar o som de casa no Leblon ao cair da tarde, com Miles Davis em Kind of Blue, para ouvir Mauro Senise se exercitando no saxofone numa casa próxima.

Trane aqui, Senise lá.

 

E de regresso à boa terra o que é que se tem? Antes (e bota antes nisso) a praga era o sambão. Hoje, primeiro a lambada, depois o breganejo, depois axé music, mais adiante o sambanejo...

    O que existe então além do sacolão do faustão?

Temos Senise tocando Edu Lobo, Carlos Malta mandando ver no pife... - de instrumental vamos mais que bem como sempre. Naná sempre aprontando, Egberto Gismonti na MEC-FM depois de Charles Ives - nada mal, muito pelo contrário. Um Mestre Ambrósio de primeira no rapembolada. E muito drum’n’bowssa, que sempre é bom porque enquanto isso a base harmônica da rapaziada vai se mantendo em nível razoável.

    Mas a maré não tá pra peixe no mar do jabaculê (e o distinto sabe lá o que isso?).

         Já fomos ufanistas: somos a maior reserva de música do planeta, uma Amazônia, coração do mundo, uma selva de sons, escrevia a musa musicista Joyce em tom de lamento preciso e aterrador já em janeiro de 1991. À distância de um fim para um início de século vemos que o que ela queria dizer é que até essa biodiversidade se perdera:

          Gostaria eu de sinceramente continuar acreditando nisso, mas o panorama é desolador.

    Se perdeu.

A situação hoje – não importa quando se leia isto – apela, como sugeria ela, ao flashback – e pior que back ao tom com que Torquato Neto escrevia vinte anos antes, no auge da ditadura militar 1964-1985, e que de repente se poderia até pensar que fossem tempos bãos porque de  

  GAL 

 

LE GAL

A TODO VAPOR 

 

 VIOLETO

 

FA  TAL   

      BOCA

   MICROFONE

   MÃO      VIOLÃO

ao mesmo tempo em que Torquato escrevia no jornal Última Hora do Rio de Janeiro:

05/11/1971

Liguem o rádio e escutem o que está sendo estimulado: vôos rasteiros, repetição e retardamento geral, mediocridade e medo de criar.

Dom e Ravel, principalmente Dom e Ravel, e oportunismo total e ainda por cima com calma: nenhum outro exemplo pode ser mais típico do que essa dupla de estrondoso sucesso nacional.

Quantas duplas e ternos e senas de que só se poderia dizer em seu abono não serem piores que Dom e Ravel (aliás, quem se recorda?) não poluem hoje as ondas gigahertzianas sem deixar espaço para que sequer se exija que se faça mais e melhor música popular, para não falar de qualquer outra, de que mal se sabe a não ser que se google, google, e olhe lá.

Há sim ainda e sempre muita coisa boa mas nos subterrâneos ou entre os megagigabaites da Grande Rede, os subterrâneos da modernidade – nada de substancialmente novo, como se dizia antigamente, mas sempre dará para o gasto.

Felizmente a era eletrônica deixou registros e sempre podemos, ao mesmo tempo em que prospectamos sinais de vida nos subterrâneos cybernáuticos, dar um rewind e seguir a trilha da musa musicista Joyce no já longínquo 1991:

De repente o país do futuro se vê sem presente e o brasileiro sai numa corrida desesperada em busca do seu passado próximo, buscando um referencial qualquer que possa lhe servir de conforto. ... Busca com sofreguidão qualquer sinal do seu passado na esperança de não se achar tão pobre, tão feio, tão triste, tão sem graça. E o que é pior, numa crise de identidade aparentemente sem solução.

Contou Joyce mais recentemente que certa vez abordou um digníssimo escritor secretário de cultura do governo Fernando Henrique Cardoso cobrando-lhe medidas de incentivo à divulgação de mais e melhor música brasileira, ao que ele de pronto ripostou: mas a música brasileira não precisa de apoios no exterior! Ao que ela rebateu: no exterior talvez não, mas no Brasil sim.

...rewind...

De novo ao tempo do mundo coberto de almas negras, da repressão e da depressão que também levou Torquato Neto ao suicídio – longe de querer tomá-lo como mártir – e em que Naná Vasconcelos, já concebendo seu LP de estréia, Amazonas, era ainda chamado Naná da Tumbadora. Naquele tempo percussionista era o negro da cozinha mesmo. E ele pertence à geração que libertou a percussão do acompanhamento rítmico, dando-lhe cada um o seu estilo. Os exemplos são muitos: Dom Um Romão – já nessa altura fazendo carreira nos Estados Unidos -, Airto Moreira, (quem aqui ouviu falar?) Guilherme Souza Franco, que fez carreira com Keith Jarrett e McCoy Tyner, enfim... Naná da Tumbadora nessa altura já rodava o Hemisfério Norte procurando outros rumos. Em sua coluna no jornal Última Hora Torquato ia dando notícias dele.

Naná  transando alto em Nova York.

Tocou com Frank Zappa num concerto,

badalou bastante com Miles Davis...

Naná tocando com Gato Barbieri...

   Em resumo: em 1972 lançou Amazonas, que naturalmente caiu no saco roto do jabaculê, que não tinha como ter, porque a sua era outra totalmente diferente, e se picou para a França onde fez a trilha sonora de Afriquadieu de Pierre Barrouh e gravou para a mesma Saravah, o selo de Barrouh, um LP com Nelson Ângelo e Novelli. Passam-se quatro anos.

    Relato de Edgar Lessa em ERA UMA VEZ A REVOLUÇÃO:

Laurent me deu o telefone de Naná Vasconcelos, com quem marco encontro numa noite de domingo, véspera da partida, em que o percussionista me recebe sentado no carpete da saleta de entrada do apartamento desmobiliado dos Halles e fala enquanto cofia a barba com um olho em mim e outro, desorbitado, num ponto indefinido atrás dos meus ombros, de sua vida desde quando aos 14 anos iniciou a carreira como baterista de gafieira em Recife, Pernambuco, do trabalho com crianças lelés baseado em percussões e de suas pesquisas sobre as origens gege-nagôs e bantos da música brasileira.

    Por essa época o Naná da Tumbadora já estava a meio caminho da construção de uma reputação mais que rara, a de um dos melhores e mais originais percussionistas da história. Que fez de Paris, de onde se mudou com armas e bagagens – berimbaus, tablas e muita traquitana – para Nova York, onde a consolidou.

    1992. Apresenta-se em série de shows pelo Brasil no Teatro Cecília Meireles do Rio de Janeiro e toca uma peça a que chama Tu Não Quer Saber. Ninguém sabia, mas ele já estava pensando em finalmente mudar a base do exterior para o Brasil. Tu Não Quer Saber: entre a ida e a volta, entre a ditadura e a dita mole, duas décadas passadas, o papel da cultura é o mesmo.

...rewind...

 

Em 1500 nasceu a História do Brasil.

Antes foi a pré-história, o neolítico em que estavam postos no relativo sossego de todo ser humano, sempre um pouco mais ou um pouco menos belicoso, os naturais de Pindorama, como a chamavam os tupinambás com quem os marujos de Cabral toparam.

Pindorama é uma Atlântida que rapidamente se afundou no mar imundo da civilização branca, européia-ocidental, em 500 anos de história e estórias contadas e cantadas

não por índios, que eram de um a cinco milhões (não se sabe ao certo) de milhares de tribos e algumas centenas de nações e foram sendo paulatina e impiedosamente perseguidos e exterminados até sobrarem menos de 250 mil de menos de 200 nações

mas por gente que afluiu um pouco de todo o mundo, de Norte a Sul e de Leste a Oeste da Europa, de quase mouros a uns quantos nórdicos e alguns eslavos e ciganos, de Nápoles e do Vêneto e da Sicília e do Piemonte, do Oriente e da África árabe e negra. Toda a biodiversidade pra contar e pra cantar. Do Brasil, dali e dacolá.

Cânticos e lendas, música sacra ou de salão de quase todos os quadrantes aqui se reproduziram, adaptados, cifrados ou por transmissão oral. Enquanto a cultura dos índios de muitas culturas – ao contrário do que faz pressupor a própria visão cultural eurocêntrica brasileira, passe o paradoxo - era soterrada os negros tratavam de afogar as mágoas em saracoteios e batuques e logo a fofa, a chula e o fandango acastanholado e sapateado de matriz ibérica passam a conviver com os requebros do lundu e do fado afrobrasileiros nos becos e senzalas, enquanto nas igrejas da casa-grande as charamelas dos senhores de engenho trançam kyries, réquiems e te-deums pela fôrma dos clautros europeus.

O que era autêntico em Pindorama – matas, índios e sua cultura – desaparece. O Brasil é uma ficção fruto da fantasia utópica, ou quiçá distópica, do europeu. Gente e cultura que nele medram são importados até que da sua mistura –  com índios na mistura, que disso também morrem – logo brotam os frutos da miscigenação que já deu samba mas terá que comer muito feijão com arroz para, como pretendia o antropólogo Darcy Ribeiro, revelar pujança de uma Nova Roma da Primeira Cultura Mestiça de brancos, negros malês islâmicos e iorubanos e bantos animistas e amarelos malaios e japoneses.

Aldeia global é isso aí.

Mas com os pés no século 21 sob um regime de penúria, crendice e terror de Nova Idade Média.

 

Nos estertores do Brasil Colônia a síncopa e as entoações exóticas dos escravos dominam as ruas enquanto dos salões começam a soar ecos de acompanhamento ao piano de modas de salão oriundas dos maiores centros europeus. O Sul, que só a essa época é definitivamente conquistado aos espanhóis, passa a ser e permanecerá quase como que um outro país cujo maior contributo para a nacionalidade, além de Radamés Gnatalli, Renato Borghetti, Lupicínio Rodrigues, Érico Veríssimo, Cruz e Souza, Qorpo Santo, Paulo Leminski e uns quantos presidentes da República, é o churrasco.

    Porto Alegre também teve seus negros escravos e também há nela batuques de candomblé e moçambiques. Teve outrossim um mestre do samba-canção e deu ao país Radamés, mestre que com Pixinguinha fixou as formas de acompanhamento orquestral da música popular brasileira a partir dos anos 1930, entre outros contributos notáveis.

Desgraçadamente, pela distância e por se situar num extremo limite de outra América, se é assolado por bossas e desgraças dos grandes centros emissores de informação, para estes é como se o Sul fosse El Sur - um Chile com toda uma cordilheira andina pelo meio.

Pelo que os gaúchos aí estão com o seu chimarrão entre heranças açorianas, italianas, uruguaianas e portenhas, a chimarrita derivada da chamarrita das ilhas atlânticas portuguesas, - vá lá – o fandango, o tango e a milonga. Quando uma sua onda mais solerte atinge o resto do país é dizendo deu pra mim, baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau (Kleiton e Kledir).

Os sertões matogrossenses são gêmeos do chaco e em jogo de tabela de fronteira artificial alternam modas de viola caiporas e rasqueados iberoamericanos e das fronteiras a norte sopram ventos que atravessam a densa mata atingindo Belém com fortes ecos de ritmos antilhanos, muito afro eles também, que se mesclam a talvez ainda mais remotas lendas ameríndias.

De Norte a Sul e de Leste a Oeste, como realçava Mário de Andrade ainda na década de 1930 - mas agora excetuando-se as maiores regiões metropolitanas -, um único elo de união, o boi dos aboios, bois-bumbás, bumbas-meus-bois, cavalos marinhos e vaquejadas, celebrando o animal que se [tornou] substitutivo histórico do Bandeirante, o maior elemento desbravador, socializador e unificador do país. Quanto ao Bandeirante, a que duras penas, diríamos agora.

O autor de Macunaíma e Paulicéia Desvairada fez num dos seus estudos uma exposição concisa e clara dos elementos que contribuíram para a formação da música brasileira:

Embora chegada no povo a uma expressão original e étnica, ela provém de fontes estranhas: a ameríndia em porcentagem pequena, a africana em porcentagem maior, a portuguesa em porcentagem vasta. Além disso, a influência espanhola, sobretudo a hispanoamericana do Atlântico (Cuba e Montevidéu, habanera e tango). A influência européia também, não só e principalmente pelas danças (valsa polca mazurca shottsh) como na formação da modinha. De primeiro a modinha de salão foi apenas uma acomodação mais aguada da melodia da segunda metade do século XVIII europeu. Isso continuou até bem mais tarde como demonstram peças populares de Carlos Gomes e principalmente de Francisca Gonzaga.

Além dessas influências já digeridas temos de contar as atuais. Principalmente as americanas do jazz e do tango argentino.

Na terra de todas as imigrações em que de quase todos os elementos humanos básicos fez-se o melting pot influências externas, transplantadas por músicos e místicos, não cessam de se manifestar. Quando o disco passa a espraiar ritmos e estilos alheios, como o jazz e o swing, os ritmos caribenhos e depois o rock e derivados, forja-se uma catadupa de gêneros que, agrupando-se a cânticos e tocatas, danças e folguedos por assim dizer autóctones, perfazem umas duas centenas e meia num manancial de sons harmonizados por vozes e instrumentos musicais talvez único no mundo.

A tal ponto que, da gênese há meio milênio ao cúmulo da globalização num dos possíveis paraísos por ela transformados em infernos, não se sabe muito bem de onde vem o quê.

Ao longo de um século de ouro em que se inventa ou fixa-se ritmos e estilos rurais e urbanos – e se revoluciona toda a linguagem musical ocidental a ponto de subvertê-la e esgotá-la - o Brasil destacou-se como um dos mais ricos depósitos seminais e viveiros de constantes reformulações. Não tanto na música de câmara e sinfônica, malgré Villa-Lobos e alguns outros, mas em que ainda assim chega a desenvolver características próprias, como em alguma música colonial a que durante algum tempo se chamou de barroco brasileiro ou quando estabelece uma base de diálogo não artificiosa e mais criativa com ritmos e estilos do rico populário.

De uma das acoplagens mais bem conseguidas da linguagem culta com a de raiz popular desenvolveu-se um gênero cuja trajetória é de certo modo análoga à do jazz – embora com este e com os seus desenvolvimentos estilísticos pouco ou nada tenha a ver - nascido no século 19 e que, como o jazz, vara mais um século com a mesma força expressiva de nascença: o choro. Muito mais aparentada com o jazz a bossa nova é outro produto da junção de linguagens – o jazz de características neo-impressionistas e o samba – destinado a continuar dando bons frutos após meio século de vida. Dois gêneros tipicamente brasileiros e sempre modernos justamente pelo seu hibridismo. E de vida muito longa não por vontade da indústria do jacabulê ou payola, muito pelo contrário, mas porque nascidos em berço esplêndido, com bases rítmicas, harmônicas e melódicas sólidas, muito consistentes.

 

Viu bem a musa musicista Joyce. Num país carente de tudo como o Brasil a cultura continua à mercê da ousadia, do espírito de aventura, da paciência e persistência de uns quantos agentes temerários. E se o Brasil nunca deu bola para a preservação da memória porque era o país do futuro e abdicou da educação para manter a massa inculta sob o secular regime de usura acabou por ficar à míngua no presente, comprometendo a cada dia o porvir.

A incultura da cafajestada de trânsfugas e degredados que acabou por prevalecer na colônia gerou uma casta de cafajestes incultos cuja principal meta é a de vedar o acesso da massa à educação e cultura para que ela não possa sequer pensar em  arredá-los do poder.

Villa-Lobos capitalizou o seu prestígio internacional e deu o braço à ditadura Vargas para implantar uma política de incentivo à educação musical a partir do canto orfeônico. Décadas depois não existe mais ensino de música nas escolas. Mal se ensina a ler letras, o que se dirá do solfejo.

Neste contexto a cultura – que não rende dividendos como o chuchu e só tenderia a fazer ruir um regime secular baseado na injustiça – inexiste no sacolão do faustão.

A cesta básica cultural foi deixada ao desbarato das leis de mercado. Até que este, quase inexistente e sobretudo negro – mesmo na sua face soit-disante lícita, porque de uma ponta a outra dominada pelo jabá -, beneficiando da revolução tecnológica, começou a surripiar à indústria de discos boa parte dos seus lucros de uns 50% da negociata (aos artistas-mercenários que constituem o grosso do exército de sanguessugas do mercado de exploração da inguinorãça do povão desletrado & inculto cabem apenas 2% de todo o bolo).

Mídia audiovisual no Brasil, de longe a mais consumida pela massa ignara, é essencialmente instrumento de troca de favores político-eleitoreiros e, de passagem, comercial. Pelo que tudo o que possa haver de matéria viva e dinâmica nomeadamente em matéria de produção musical no Brasil hoje foi chutado para os escaninhos da Grande Rede, grande fautora de autonomia e liberdade individual e que felizmente mais rápido do que se pensava torna-se cada vez mais fulcral em matéria de intercâmbio informativo.

No que diz respeito à música não há dinheiro para pesquisa mesmo porque ninguém sabe ler e muito menos pauta. Estudos sobre a matéria, desde as gerações de Luciano Gallet, Mário de Andrade e Oneyda Alvarenga, dependem exclusivamente da teimosia de dois ou três apaixonados como Regis Duprat ou José Ramos Tinhorão, que além do mais teve a paciência de, sem qualquer tipo de apoio, desbravar os preciosos arquivos da Torre do Tombo em Lisboa, os que mais e melhor material possuem sobre a evolução da sociedade brasileira no período colonial.

O único autor de óperas brasileiro com fama internacional, Antônio Carlos Gomes, caiu no ostracismo porque o Rio de Janeiro e São Paulo, que até os anos 1950 figuravam no roteiro das grandes companhias internacionais, deixaram de ter temporadas líricas e assim sendo não compensa encená-lo.

Neste quadro, de breganejo em sambanejo, de pseudos-calipsos em sapatinhos e segura-os-tchãs, não tarda muito e até a velha, boa e quão decantada musicalidade do povo brasileiro vai pro brejo onde mora o boi-pintado. Onde está a Música Prapular Brasileira? Você ouviu alguma vez falar do Guinga no sacolão? Quem é o herdeiro de Tom Jobim? Quedê os netos de Heitor Villa-Lobos?

- O gato cumeu...  

                   MÚSICA DO BRASIL DE CABO A RABO

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Música  do Brasil de Cabo a Rabo é um livro com a súmula de 40 anos de estudos de James Anhanguera no Brasil e na América do Sul, Europa e África. Mas é também um projeto multimídia baseado na montagem de um banco de dados com links para múltiplos domínios com o melhor conteúdo sobre o tema e bossas mais novas e afins. Aguarde. E de quebra informe-se sobre o conteúdo e leia trechos do livro Música do Brasil de Cabo a Rabo, compilado a partir do banco de dados de James Anhanguera.

MÚSICA DO BRASIL DE CABO A  RABO

Você já deve ter visto, lido ou ouvido falar de muita história da música brasileira da capo  a coda, mas nunca viu, leu ou ouviu falar de uma como esta. Todas as histórias limitam-se à matéria e ao universo musical estrito em que se originam, quando se sabe que música se origina e fala de tudo. Por que não falar de tudo o que a influenciade que ela fala sobretudo quando a música  popular brasileira tem sido quase sempre um dos melhores veículos de informação no  Brasil? Sem se limitar a dicas sobre formas musicais, biografia dos criadores  e títulos de   maior destaque. Revolvendo todo o terreno em que germinou, o seu mundo e o mundo do  seu tempo, a cada tempo, como fenômeno que ultrapassa - e como - o fato musical em si. 

Destacando sua moldura
      
nessa janela sozinho olhar a cidade me acalma

dando-lhe enquadramento
           
estrela vulgar a vagar, rio e também posso chorar

... histórico, social, cultural e pessoal.
  Esta é também a história de um aprendizado e vivência pessoal.

De um trabalho que começou há mais de meio século por mera paixão infanto-juvenil, tornou- se matéria de estudo
e reflexão quando no exterior, qual Gonçalves Dias, o assunto era um meio de estar perto e conhecer melhor a própria
terra distante e por isso até mais
atraente. E que como começou continuou focado em cada detalhe por paixão.
                                                                               
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CORAÇÕES FUTURISTAS nunc et semper AQUI


MÚSICA DO BRASIL  DE  CABO A RABO
MÚSICA DO BRASIL
 
DE  CABO A RABO

                                                   ÍNDICE DOS CAPÍTULOS 
capítulos, seções de capítulos com trechos acessíveis a partir dos títulos, em azul DeLink


     O LIVRO DA SELVA

    Productos Tropicaes E Abertura em Tom Menor

    1. O BRASIL COLONIZADO
        raízes & influências Colônia e Império
 
  

       1. A  Um Índio   1. B Pai Grande    1.C  Um Fado 

       2. TUPY NOT TUPY formação de ritmos e estilos urbanos suburbanos e rurais
                                                Rio sec. 19-sec. 20 - Das senzalas às escolas de samba

    Os Cantores Do Rádio   ESTreLa SoBE 

  CARMEN MIRANDA DE CABO A RABO

  fenômeno da cultura de massa do século XX                  

  4. BOSSA NOVA do Brasil ao mundo

    Antonio-Carlos-Jobim-Tom-Jobim .html 

5. BOSSA MAIS NOVA o Brasil no mundo  

6. TROPICALIA TRIPS CÁLIDOS    e a manhã tropical se inicia


Detalhe de cenário de Rubens Gershman para montagem de Roda Viva, Teatro Oficina, 1967

 O LIVRO DE PEDRA

  PARA LENNON & McCARTNEY 
  VIDA DE ARTISTA crise e preconceito = inguinorãça

  CAETANO VELOSO

  CENSURA: não tem discussão. Não            
 
POE SIA E MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
 
Milton Nascimento
 
O SOM É MINAS: OS MIL TONS DO PLANETA    
  MARIA TRÊS FILHOS

  (SEMPRE) NOVOS BAIANOS        
  NORDESTONTEM NORDESTHOJE

 
RIO &TAMBÉM POSSO CHORAR  
      Gal Costa Jards Macalé Waly Sailormoon Torquato Neto  Lanny Maria Bethânia
  FILHOS DE HEITOR VILLA-LOBOS
 
INSTRUMENTISTAS & INSTRUMENTAL Sax Terror     
  SAMBA(S)
BLEQUE RIO UM OUTRO SAMBA DE BREQUE        
  FEMININA

  MULHERES & HOMENS NO EXÍLIO o bêbado exilado & a liberdade equilibrista

  ANGOLA          
  ROCK MADE IN BRAZIL ou
 Quando a rapeize solta a franga

  LIRA PAULISTANA            
  CULTURA DA BROA DE MILHO

  LAMBADA  BREGANEJO AXÉ E SAMBAGODE
 
RIO FUNK HIP SAMPA HOP E DÁ-LE MANGUE BITE RAPEMBOLADA
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  CHORO SEMPRE CHORO     
  INSTRUMENTISTAS
 & INSTRUMENTAL II   SAX TERROR  NA NOVA ERA
  ECOS E REVERBERAÇÕES DO SÉCULO DAS CANÇÕES
  
  DE PELO TELEFONE A PELA INTERNET

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créditos autorais: Era Uma Vez a Revolução, fotos de James Anhanguera; bairro La Victoria, Santiago do Chile, 1993 ... A triste e bela saga dos brasilianos, Falcão/Barilla: FotoReporters 81(Guerin Sportivo, Bolonha, 1982); Zico: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão Zico, Sócrates, Cerezo, Júnior e seleção brasileira de 1982: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Edinho: Briguglio, Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Antognoni: FotoReporters 81, Guerin Sportivo, Bolonha, 1981.

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