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1958: a bossa nova já tem patente e marca registrada
meio século de canções do amor demais
© Helga Von Sidow
da boate Plaza e do Villarino para o mundo
Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius de Moraes, Elizeth Cardoso e Sílvia Telles lançam a bossa nova, um dos maiores fenômenos culturais da segunda metade do século XX. Um estilo musical tão denso e profundo que se tornou eterno. A maior contribuição cultural do Brasil para a humanidade.
Ter bossa nova, no caso, é ter pique moderno, balanço, suingue. E ser cool - rigoroso e descontraído. Impressionismo, jazz da Costa Oeste, samba - ou o que se quiser. Bing Crosby, Sinatra e as louras e morenas geladas de lá; Mário Reis, Orlando Silva, Dick Farney e as morenas sem afetação do Rio de Janeiro que finalmente abre a janela para o mar. Quase unanimidades entre as influências mais marcantes: Barney Kessel e Les Paul com Julie London e Chet Baker Sings. Sofisticação sem frescura feita para os armários sonoros da modernidade, com equipamentos de reprodução de som de alta fidelidade - ou hi-fi - embutidos. Tom Jobim é também um maestro preocupado com os meios de reprodução transistorizados, que empastelam grandes massas orquestrais. Sobretudo a partir das primeiras gravações de João Gilberto, no segundo semestre de 1958, reduz o instrumental de acompanhamento. Instrumentos de sopro ou corda, em pequenas formações, se alternam ou apenas sublinham com risco fino em contraponto uma ou outra passagem vocal. A voz deixa de duelar com a orquestra. Isto é bossa nova, isto é muito natural. Geografia privilegiada - Rio de Janeiro, a montanha, o céu e o mar - e clima descontraído. Delicadeza. Esse Rio de amor que se perdeu...
Chico Buarque:
- Eu gostava de rock. Apareceu a bossa nova e aquilo era moderno, era brasileiro, tinha a ver com tudo, com Brasília, que era moderna e brasileira e tinha a ver com o país que parecia nascer, moderno e promissor.
A história da bossa nova, em termos sócioambientais, vai da Carta ao Tom 74, de Toquinho e Vinícius de Moraes, a sua glosação por Chico Buarque e Tom Jobim: Rua Nascimento Silva, 107, você ensinando pra Elizeth as canções de Canção do Amor Demais. Lembra que tempo feliz, ai que saudade, Ipanema era só felicidade, era como se o amor doesse em paz...
Rua Nascimento Silva, 107, eu entro fugindo do pivete tentando alcançar o elevador...
De Getúlio Vargas, nos anos 1930, aos Anos JK, no final dos 1950, a cidade ganha a Zona Sul e a bossa (ver a ESTreLa SoBE, trechos do capítulo deMÚSICA DO BRASIL DE CABO A RABO).
Há um Rio pré-bossa-novista assim como há por exemplo um Tom Jobim pré-bossa-novista, o também chamado Lado B de Tom Jobim, enunciando-se ao longo dos anos 1950. Pouco a pouco, nas boates do Leme ao Posto Seis onde pianistas e acordeonistas, contrabaixistas, saxofonistas e bateristas ensaiam harmonias e descompassos influenciados pelos discos norte-americanos e pelo estudo de Debussy, Ravel ou César Franck, dá-se a passagem do samba e do samba-canção brejeiro ou de fossa para a integração de melodia, harmonia, ritmo e contraponto de forma a que nenhum deles prevaleça, limitando o personalismo, o egocentrismo, o "estrelismo" enfim. Nos últimos anos de gestação a boate do Hotel Plaza, no Leme, era uma espécie de laboratório de estudos experimentais avançados, frequentado sobretudo por aficionados e músicos que se alternavam em demonstrações de descobertas harmônicas e rítmicas.
A bossa nova ameaça aposentar de vez a música "de orelha". Seus acordes compactos, em cachos (clusters), são de elevada tensão harmônica, acordes alterados com notas estranhas à harmonia clássica, ditas dissonantes, a estrutura rítmica de acompanhamento deixa de ser simétrica e torna-se independente do canto, que flui como na fala normal, sem demagogia expressiva, abolindo a voz cheia, o dó de peito, a lágrima na voz, o canto soluçado.
O processo evolutivo dá-se de forma quase imperceptível desde as primeiras gravações dos Anjos do Inferno, Dick Farney e Lúcio Alves. O Tom Jobim pré-bossa nova, que trabalha como arranjador e/ou acompanhante no selo Continental e ainda atua à noite nas boates de Copacabana para comprar o leite das crianças, é cantado por Nora Ney, Dick Farney, Lúcio Alves, Sílvia Telles e Dóris Monteiro, cujo repertório e atitude canora se demarcam da postura operística do passado. Teresa da Praia, pela dupla Dick Farney-Lúcio Alves, um dos grandes sucessos discográficos de 1954, e Outra Vez, com Dick Farney, do mesmo ano, assinalam novas visões poético-existenciais e paisagens sonoras: Teresa "é da praia, não é de ninguém", em contraste por exemplo com a que declama "se ele te disser que ainda sou sua, não creias, meu amor, não deves crer" ou a que reclama de ser apenas "a outra na vida dele".
Entre as canções dessa fornada estão Faz Uma Semana e Pensando em Você, parcerias com Juca Stockler, o baterista Juquinha que trabalharia ombro a ombro com o maestro e João Gilberto nos seminais Canção do Amor Demais e primeiros LPs do baiano bossa nova que ao se revelar passou a influenciar todo mundo. Pensando em Você revelava escalas de tons inteiros ao modo de Debussy - algo totalmente inusitado no universo samba-canção.
1954, ano do suicídio de Getúlio Vargas e de lançamento da candidatura prafrentex de Juscelino Kubitschek, que catalisa o melhor espírito bossa nova, hein, doutor? do tempo, é marcante na carreira desse Tom Jobim entre duas águas. Sinfonia do Rio de Janeiro, composta com Billy Blanco, é orquestrada por Radamés Gnatalli e gravada por um elenco que mistura alhos com bugalhos, entre Elizeth Cardoso, Dick Farney, Lúcio Alves, Nora Ney, Gilberto Milfont, Os Cariocas, Emilinha Borba, Jamelão e Jorge Goulart.
Em 1950, de regresso de uma longa missão no consulado do Brasil em Los Angeles, o poeta e diplomata Vinícius de Moraes surpreende-se ao ouvir Canção do Amor, de Elano de Paula e Chocolate, a primeira gravação de Elizeth Cardoso. Esse samba-canção - saudade, torrente de paixão, emoção diferente... - "conseguiu me revirar completamente", lembraria anos a fio o que foi um dos homens mais livres (e por isso mesmo talvez também peri-patéticos) do nosso tempo. Um ano depois deu-se o estouro definitivo da que Haroldo Costa chamaria de Divina com o samba Barracão, de Luiz Antônio-Oldemar Magalhães.
Com estúdios de gravação, redações de jornais e instâncias do poder espalhados pelas imediações a Cinelândia dava o tom da moda e das ondas. Perto dali, a mercearia Villarino era uma das bases da intelighensia carioca, ponto de encontro de poetas, músicos e jornalistas. Em 1956 Vinícius comunica a Lúcio Rangel que está precisando de um músico para compor a partitura de uma peça musicada que pretende encenar, Orfeu da Conceição. Lúcio Rangel não titubeia. Olha em volta e apresenta-o a Tom Jobim. A peça estréia com grande sucesso no mesmo ano no Teatro Municipal. No ano seguinte Tom compõe a música de um disco com uma versão de d. Marcos Barbosa de O Pequeno Príncipe narrada por Paulo Autran, um lançamento do pequeno selo Festa, de Irineu Garcia, um dos membros da confraria do Villarino.
1957 foi um dos anos mais marcantes na fase de gestação da bossa nova. Os jovens Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli compõem o que seria um dos seus chef-d'oeuvres, Lobo Bobo. E há quem jure ter visto naquele ano nas paredes do clube da Sociedade Hebraica, em Copacabana, um anúncio de um show de Lyra, Nara Leão "e os rapazes da bossa nova", que teria cunhado o termo. 1957 é também o ano em que Antônio Carlos Jobim trabalha como orquestrador do primeiro disco de Silvinha Telles, Carícia, produzido por Aloysio de Oliveira e lançado pelo selo Odeon. O LP de dez polegadas continha entre outras as faixas Por Causa de Você (Tom Jobim-Dolores Duran), Chove Lá Fora (Tito Madi), Duas Contas (Garoto), Foi a Noite (Tom Jobim-Newton Mendonça) e Se Todos Fossem Iguais a Vocë (Tom Jobim-Vinícius de Moraes), da peça Orfeu da Conceição. Carícia está a um curto passo de distância. Falta-lhe apenas o instrumento-síntese da bossa nova (João Gilberto) para ser a certidão de nascimento da BN.
Após o sucesso de Orfeu, Tom e Vinícius prosseguiram a parceria e propuseram a Irineu Garcia gravar um disco apenas com composições da dupla. Decidiram chamar Dolores Duran para interpretá-las, mas segundo algumas fontes ela pediu um cachê proibitivo para o orçamento do selo Festa e para substituí-la foi chamada a cantora de Canção do Amor, que desde 1936, quando se revelou pela mão de Jacob do Bandolim, e até o seu primeiro sucesso, 14 anos depois, foi vítima de preconceito racial por ser mulata e que pela grande extensão vocal, afinação e técnica perfeitas é considerada por quem entende do riscado a maior cantora brasileira de todos os tempos.
A Divina "impôs-se como a lua para uma noite de serenata", segundo o enfarpelado texto de Vinícius de Moraes na contracapa de Canção do Amor Demais - "e, de quebra, Elizeth entrou para a história da bossa nova como Pilatos no credo", segundo Ruy Castro. Em verdade até sua morte, em 1990, a Divina viveu como sempre uma carreira entre a cruz e a espada. Tida e havida como sustentáculo de um modelo antiquado de interpretação e da retórica do estilo antigo contra as bossas mais novas. Mas também como um elo de ligação entre o samba do morro e as formas mais modernas do samba que surgiram com Tom Jobim e João Gilberto.
Canção do Amor Demais foi gravado em abril e maio de 1958 para tornar-se a pedra milenar da bossa nova, talvez apenas porque duas de suas faixas, Chega de Saudade e Outra Vez, contêm o instrumento-síntese do movimento, o elo que faltava entre a modernidade prenunciada anos a fio em dezenas de gravações e uma revolução que finalmente se consumava: para já, o violão de João Gilberto. Uma das unanimidades em torno do disco é a de que ele está longe de ser um dos melhores da cantora, que segundo Sérgio Cabral durante a sua gravação "foi cantar para tropas do exército, pegou chuva e comprometeu a sua interpretação", e "o que saiu no disco não foi grande coisa".
Júlio Medaglia escreveu que o LP deu à intérprete a possibilidade de atingir um dos pontos altos de sua carreira, mas se a MPB permanecesse naquele estágio não teria tido uma idéia do que seria a BN.
Pouco importa, então. Em julho de 1958 João Gilberto grava Chega de Saudade e Bim-Bom, três meses depois Desafinado e Oba-la-lá, é um estouro, a Odeon (André Midani-Aloysio de Oliveira-Tom Jobim) se toma de entusiasmos e em janeiro de 1959 o baiano bom de bossa grava as outras faixas do seu primeiro LP. Da primeira à última espira ecos de uma arte única, cantor e instrumentista, ele e os acompanhantes, o mestre e o maestro (Tom Jobim) como que brincando de iludir com o que parece simples e é (como bem sabe quem tinha cinco ou seis anos em 1959) e é também de uma espantosa simplicidade enganosa. "Quando João Gilberto se acompanha o violão é ele. Quando a orquestra o acompanha a orquestra também é ele." Tom Jobim.
Rua Nascimento Silva, 107, você ensinando pra Elizeth... eu entro fugindo do pivete... depois do "feriado da alma" dos anos desenvolvimentistas o Brasil mergulha na realidade para saber o que é. Paradigmas, estereótipos - favela, nordeste, miséria, violência.
Ah mas chega de saudade a realidade é que aprendemos com João pra sempre ser desafinados
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