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Rumo à Estação Oriente

 MUSAK DO ELÉTRICO DO SÉCULO XXI 

travelog

movimentos catatonicos da Parvonia ao eurochoque e regresso à Parvonia globalizada

 

Guia turístico e histórico de paisagens internas e exteriores desde quando a cidade branca vivia no luto dos entes perdidos no mar, no mar europeu ou na guerra colonial, encardida pelo fumo das castanhas, e os elétricos alemães eram ainda do século XIX.  

Parvónia – Albânia de Even Hoxa, Roménia de Ceaucescu, Soávia de O Cetro de Otokar, Paraguai parador de Stroessner, Espanha profunda de Francisco Franco,  república feudal de doges de baixa estampa, donatários ou donotários de fancaria e a noite inteira sobre o rio a fumar até a névoa matinal e a ode marítima revelarem imagens desfocadas de um fausto engolido pelo terramoto que só poupou um castelo, a moura e a judiaria e uma capela dourada.

O piloto adentra a barra para desencontros descompassos desencantos & incomunicabilidade numa cidade metamorfoseada e ainda esburacada em que se insiste em sonhar com a elite sobre um chão eivado de destroços e cadáveres.

   Ou se calhar em que, ainda que caídos do cavalo e do cavaco da Europa unida dos 15, a braços com o eterno ramerrame, apesar da revolução de meios & visual, em que os colunistas não se cansam de cogitar sobre o fantomático "projeto" ou "desígnio" nacional (hip-fado ou fado-hop) e o estado de abjeta depressão coletiva (fado-canção), a nível de grassroots não se detecta o mais leve vestígio disso, antes pelo contrário, anda tudo muito contente e animado, as pessoas satisfeitas, por mais que os colunistas digam o contrário, e têm razões para isso, for they never had it so good, é ver mega-shoppings e mais mega-shoppings a abrir, e todos a ficar repletos de clientes!

ciberzine   & narrativas de james anhanguera

 

James Anhanguera   

Rumo à Estação Oriente

Lisboa - Dezembro de 1999 - e espaço cibernáutico da globalized village século XXI  

 

Edgar Lessa regressa a Lisboa após dez anos de ausência para colher dados e escolher cenários para documentários de TV sobre Lisboa e Sintra e descrever o choque com as mudanças operadas n’A Capital em década e meia de integração à Europa.

Reporta-se a um arco de referências directas de trinta anos, desde quando o país se debatia com pesadelos de clausura num grande sono ‘pré-histórico’, tendo por balisas a história da cidade e de Portugal, em que volta a mergulhar, e autores como Eça e Álvaro de Campos. Com eles, refaz e actualiza itinerários nostálgicos enquanto revê amigos através da lente da memória. Sonho agora só o europeu, em que o seu pessoal embarca sem entusiasmo, enquanto Portugal dá adeus a Macau, último cadinho do antigo império no final do seu milénio.

O que mudou desde o pequeno aeroporto em que desembarcou pela primeira vez trinta anos antes, o primeiro supermercado e os primeiros drugstores e snack-bares, a noite e o riso, os bares de putas do Intendente, Parque Mayer e Cais do Sodré – e a ‘vida de café’? Desde Dans la Ville Blanche, de Alain Tanner?

O que é feito do antigo país da vida tacanha e limitada e dos brandos costumes?

O que mudou radicalmente e o que não muda nunca?

Um mergulho de escada rolante no labirinto dos novos templos e da miríade de novidades urbanas e paisagísticas com flashes de viagem pelo universo multifacetado de um país que experimenta um surto de consumo de bens e informação sem precedentes.

Edgar vê, ouve e lê num diálogo o mais das vezes mudo com as suas fontes e o seu imaginário de referências enquanto refaz percursos de décadas e trilha os que ainda são inaugurados a toque de caixa e no definitivo adeus a Macau e Timor se esvaem as quimeras de meio milénio de história carregado de dramas, o luto do país de marinheiros que está na génese da globalização e pela primeira vez tenta enquadrar-se na Europa com novo ímpeto de sonhos megalomaníacos e, ao confrontar-se com as verdadeiras dimensões, afeiçoa-se à sua relativa importância no quadro regional e revê os seus valores.

Cultura pimba e compras a crédito, sem fado nem velas – com muito néon.

O que é feito dos personagens que tinham 20 ou 20 e poucos anos e estavam em Portugal, Paris, Bruxelas, Angola, Guiné, Timor e Moçambique quando o regime da velha senhora caiu?

 

 

&

                                   Fez-se do amigo próximo o distante

                       Fez-se da vida uma aventura errante

                       De repente, não mais que de repente

 

                                                                       Vinícius de Moraes

 

 

Quando o TriStar vindo do sul faz uma curva e sob o céu azul eléctrico surge o skyline da cidade o que mais chama a atenção após o pasmo inicial pela beleza estonteante e a singularidade do conjunto é um mamarracho pós-moderno no topo e ao centro do vasto casario secular.

         O tijolaço impõe-se quase de caras pelo alto contraste de cor, forma e estatura com o resto da colmeia, que se espraia quase morena em langorosa harmonia p'las colinas radiantes de uma ofuscante luz queirosiana, pontilhadas de cúpulas neoclássicas e barrocas em panorâmica de êxtase, o Mar da Palha cor de fogo, a água embaixo azul anil encapelada em riscos de viés pelo Nordeste, as muralhas de um castelo medieval assentes numa das colinas e a seus pés, um pouco mais à direita, um templo gótico a dominar Al Fama.

          - Bem, coronel Cintra, eis-nos finalmente em Lisboa!

          No fim da curva de 45º surge em grande plano em plongé decubital um bloco de pedra rósea que faz dos Jerónimos uma réplica em miniatura do até aqui imponente marco das Descobertas.

Eis pela primeira vez ao vivo e em corpo inteiro a Nova Fortaleza da Cultura Portuguesa - o primeiro grande símbolo de prosperidade e pós-modernidade do novo Portugal europeu.

- E o que me pergunto, Mickey, é o que João Bafodeonça veio fazer aqui.

E se a antiga Ponte Salazar, projectada nas escotilhas do outro lado da aeronave, propõe uma analogia da cidade junto ao Tejo com São Francisco da Califórnia logo um emaranhado de viadutos apinhados de carros sobre a Avenida de Ceuta faz lembrar... Los Angelis!

         Desde a primeira aterragem, há quase três décadas, o aeroporto cresceu na exacta desproporção do Centro Cultural de Belém com os Jerónimos.

Cartazes afixados nos pilares do hall de acesso à alfândega e à rua, que parece infindável, anunciam o Euro 2004 de futebol em Portugal. Trinta anos após o 25. Ou serão 300? 

 

  

 

Antes os táxis eram todos Mercedes 180 ou 220 e Toyotas verdes-e-pretos a cair de velhos. Agora um E200 creme acabadinho de sair de fábrica transporta-me de olhos esbugalhados por vias rápidas, viadutos e passagens subterrâneas abertas em antigas quintas e azinhagas entre filas de prédios altos, bairros inteiros novinhos em folha, até às ruas cada vez mais sinuosas e estreitas da Lisboa velha cidade cheia de encanto e b'leza. Decadente cum'ò caraças na zona de Poiais de São Bento, onde subo em passada lenta bem estudada os cinco lanços de escada de um prédio mal conservado e toco à campainha do apartamento à esquerda.

         O perfil pequeno e magro do homem de meia-idade que abre a porta é quase como o de antes.

Ainda tem o porte e os traços de Buster Keaton, só lhe faltando o chapéu. Mas pouco resta da caradanjo do pós-adolescente que conheci em Junho de 74 no monstruário de olhos desorbitados entre paredes profundas, os zigomáticos quais picos alpinos sobre os valões das bochechas encovadas, os olhos outrora muito vivos e hoje embaçados de bílis.

Será só o efeito de mais uma ressaca?

         - Ed, tás cá?! Quando é que chegaste? Dá cá um abraço, pá! Queres cá ficar? - brada a voz de cana rachada, entre tossidas, enquanto ele aperta o cinto e se aproxima para um amplexo de diva semimorta. Olha - dirige-se à mesa de jantar instalada ao fundo do corredor, onde cruza com uma jovem também acabada de sair do banho -, toma a chave e fica à vontade.

         Acção sempre na base de tudo. Um dínamo.

         - Tens alguma coisa pra fazer? Então anda daí, pá.

         Afonso tem de levantar dinheiro no multibanco. Seguimos em passo dobrado mesmo para as minhas pernas, que fazem duas das dele, pelas ruas quase em ruínas. Se isto não é Salvador eu vou lá e já volto. Apanhamos um 180 do tempo da outra senhora. Mas ainda há cá disto?!

Abriram uma passagem subterrânea  no Rato. Hoje seria impossível JCP correr por aqui em streaking como em acção de brado de 1976. O antigo largo já então apinhado de carros e gente transformou-se numa pista de autorama.

Não deu sequer tempo de tomar banho e, com o corpo endurecido de nove horas de voo sem dormir, a enfardar conhaque sobre conhaque para conter a ânsia de fumar um cigarro, custa-me virar o pescoço para o banco de trás, onde sentam-se Afonso mais a garina.

         - O que é feito de Ivan?

         - Perdeu-se de vista. Extraviou-se. Ninguém sabe dele há bué.

         Na 5 de Outubro, por alturas do Saldanha, Afonso despede-se da garina.

Entramos num café. Afonso junta o desjejum ao almoço numa tosta mista com sumo de laranja e uma bica e basa pro trabalho.

Telefono a Lourenço e marcamos encontro na Pastelaria Versalhes.

- Local mais que indicado para um reencontro histórico - sublinha o amigo de cinco lustres à despedida, no tom cerimonioso de sempre.

Dou a curva no Saldanha, outrora só muito movimentado por volta das seis da tarde, o cheiro e o fumo das castanhas assadas a dar um ar medieval à área em frente ao Monumental, os anúncios dos ardinas, sacos à ilharga

 Olhó Lisboa!

 Populáar! Olhó Pop'lar! - não havia bancas de jornais e as poucas revistas que circulavam punham-nas encostadas à parede nas escadas do cine-teatro, uma bicha a dar a volta à esquina por onde reentro na arena e molhos de gente a sair do hall das grandes salas e dos escritórios nas imediações.

 Quentiiinhó fr’gueses! - castanhas assadas embrulhadas em folhas das páginas amarelas e vendedoras de violetas de xales de croché pretos, lilases, castanhos e grenás, saias muito abaixo do joelho, meias de lã castanhas ou cinzentas a cobrir o pouco que as saias em variegados tons de cinza e castanho ou pretas deixariam entrever das pernas, lenços de chita na cabeça, quase tudo escuro pelos lutos de filhos mortos à nascença ou quase, mortos pela tísica, pela guerra, enterrados como indigentes num cemitério perto das bindovilles de Aubervilliers, Saint-Denis ou coisa que os valesse. O país vestido de negro. Para um estrangeiro, a sensação era a de um salto no passado.

Chuvinha chata, engarrafamento de eléctricos e autocarros de um e dois andares, burburinho e fumaceira fora do normal, dos fogareiros das castanhas, e já à época, como todo o eixo da Fontes Pereira de Melo ao Cais do Sodré, à saída para a linha de Cascais - e quase só ele -, pejado à hora de ponta.

 Ali – cáspite! - o primeiro choque. Pois não é que nem me lembrava que já não está cá o Monumental nem por conseguinte o Satélite, que sinto fundo perdidos no tempo como uma madalena de Lawrence da Arábia, 2001 – Uma Odisseia no Espaço e Alexandre Nevski inevsquecíveis, e de que sequer me despedi?

Adeus Cervejaria Monumental.

Cena maior assinalável a da apoteose de uma diva do teatro numa das suas melhores cenas melodramáticas:

- EU PRECISO DE UM HOMEM! - gritou certa noite do palco-primeiro balcão, como numa montagem modernista em que o actor mistura-se à plateia, quando ali entrava com JCP numa noite de Outono de 197...3.

Último flash do local: a comprar O Mistério da Estrada de Sintra da colecção de bolso da Europa-América e um livro de folhas Smoking King Size no quiosque do Monte Carlo em Dezembro de 1990, antes do voo para o Rio.

E o que é aquilo tudo iluminado onde ficava... a garagem de eléctricos da Carris e o Mercado Abastecedor do Rego? Outro centro comercial com certeza.

 

Meia volta, devagar com sentimento, até à Versalhes, com paragem numa banca para comprar jornais, sento-me a uma mesa encostada à parede, imperial e prato de folhados e pasteis de bacalhau à frente, folheio um diário e topo com um artigo de um famoso intelectual gordo, pequenote e barbudo a queixar-se do excesso de oferta cultural no país.

A minha decisão de Novembro era a de não aceitar nenhum convite para participar em colóquios, mesas redondas ou debates nos tempos mais próximos - a maratona recente de eventos deixou-me exausto. Dez anos fora de Portugal deixaram-me um pouco à margem de iniciativas importantes que entretanto foram surgindo e descubro pouco a pouco o mapa cultural de um país profundamente renovado, não apenas no sentido de um alargamento a protagonistas muito mais jovens, como também pelo movimento efectivo de descentralização que certamente se concretiza.

         U-fa. Com efeito. Quanta mudança - soletro, e ao alçar os olhos para a porta, como numa colagem de cinema, aconchegadote num longo sobretudo preto, muito senhor de si na altivez de barba bem aparada, entra a própria réplica alfacinha de Umberto Eco! - se bem que este não tenha feito simulacros semi-ó-lógicos de romances.

        

Lourenço faz jus à tradição de sublinhar cada momento fora da rotina (ou numa rotina de excelência) como de capital importância e propõe um brinde com Porto Vintage. Ou Trintage, sei lá.

O corpo aquecido e a mente confortada, de novo fresquinho da silva desde os preparativos da partida, há duas noites, já não se está nada mal, no Peugeot da firma do anfitrião seguimos até ao Pata Negra, restaurante-cervejaria de Mozer, o ex-craque brasileiro do Benfica, no Átrio do Saldanha, ali mesmo onde era a Carris. Afonso abanca a aviar umas entradas.

- Não te importas que a gente coma carne e tu, já que tanto insistes, comas peixe com vinho tinto?

- Qual o quê, se só há pouco descobri que isso não passa de um tabu, olhem que loucura, anda um gajo até bastante treinado nessas coisas enganado por quase uma vida.

Toma-se um da Gaivosa e a rebater uma bela bagaceira, afinal nem tudo o que é brasileiro causa engulhos e Mozer, hein, quem diria?, a acertar a cabeça também na restauração.

Passa-se pelo trabalho de Afonso só para ele controlar se está tudo em ordem enquanto no carro Lourenço prepara à maneira um fininho porque tenho muito pouco mas é coisa rara e ala para o Bairro Alto, onde divido com Lourenço uma mesa no Majong.

O amigo, em frente, se entretém em longo conciliábulo com um outro amigo dos teatros. Afonso desaparece no pequeno ambiente de pós-tasca apinhado de gente jovem e menos jovem do mundo do cinema, teatro, jornais e círculos afins que me dá um surpreendente ar de familiaridade após tão longa ausência mas também a precisa sensação da ingrata passagem do tempo. Se antes por estas bandas éramos os mais putos hoje somos os mais velhos.

A uma mesa a curta distância pousa Júlio Andrade, que conheci nos insuspeitáveis estertores da ditadura, nas noites longas, entre o Monte Carlo e a Cervejaria Monumental, quando tudo, fora as poucas boîtes e cabarés, já fechara e para quem não frequentava os que na minha terra se chama de ‘inferninhos’ só restava retirar-se e, se acaso sem companheira ou companheiro e com insónia, ouvir música ou debruçar-se sobre um livro. Vivia – mal – de traduções e mais tarde incorporou-se à grande leva dos que entraram na Sociedade Nacional de Tipografia–O Século quando Jorge de Brito a comprou. Trabalhava numa revista semanal da SNT e circulava entre as tascas do B.A. e os fétidos antros nocturnos da cidade, antes da explosão das ‘células’ underground do pós-25, onde passou a ser visto mais amiúde.

Acabado de sair da tropa, onde por uma unha de uma cunha milagreira safou-se de ser mandado para África em comissão de serviço, manteria ainda por longo tempo o ar de mancebo que lhe dava uma certa pinta andrógina. Por anos a fio nunca o vi com uma mulher e, embora, bem vistas as coisas, uma vez ou outra fosse nele evidente algumas atitudes ‘suspeitas’, como em acessos irrefreáveis apertar com força um membro superior ou inferior de um comparsa, nunca dei ouvidos a quem dizia que era bicha recalcada.

As poucas horas de sono diário depois de noitadas de prazer ou mera consumição e de trabalho, porque era o que os italianos chamam de um stakanovista, empastelaram-lhe a cara de pele macilenta, vincada por rugas fundas. Era um efebo de estatura médio-baixa mas possante. É agora se tanto um Adriano decadente, envelhecido por quantas campanhas vãs, porque delas não rezarão as crónicas.

Está com um jovem efeminado com quem troca olhares e risinhos de homoerotismo cúmplice com espantoso à-vontade para quem há muito terá feito questão de esconder a sua verdadeira tendência também com boutades sexistas, o que é que lhe deu? Será que bebeu e fumou tanto que não se apercebe que estou a domar ou depois de tantos anos no armário resolveu – ao menos comigo, que estou longe - perder a vergonha e soltar a franga, como se diz lá para as minhas bandas?

         - E como é que vão as arquitecturas? - chuto à falta de melhor à mesa ao lado, onde antigo conhecido do ramo e dos bares sorri à dica. - Vinte anos atrás dizia-se que quase todos os projectos só passavam - quando passavam - pelo arquitecto para a assinatura. Com tanta mudança e com tanta construção isso também há de ter mudado. Afinal, tamos ou não tamos na Europa?

         - Mudou nada! Tá tudo na mesma, pá... - recorta o interpelado com o riso desconsolado de sempre. E com a mesma expressão das antigas noites inclina o cachaço para sorver mais um gole de cerveja.

 

 

Só se arreda    quando  o  bar  fecha.  Lourenço  deixa-me  em boas mãos  e retira-se.

Garrafinha portátil J&B da mão ao sovaco e vice-versa, Afonso bate-me na coxa com um toque seco antes de acenar com a mão com que segura a meiota enquanto com as unhas da outra bate no vidro de um Fiat Uno em marcha lenta e com quatro jovens dentro.

- Abre aí, abre aí! Chega pra lá! - ordena lesto, ao mesmo tempo em que se espreme contra um dos que estão no banco de trás e puxa-me com a mão livre. - Entra aí!

 

Acondiciono-me como posso contra ele, que já está a mil a caminho das quatro da manhã, mal deixando os outros falar.

- Meu, deixa-te de fitas masé; vou pro estúdio e acabou-se.

- Mas, Afonso, não dá, meu! - reclama o que está no lugar do morto.

- Não vais nada, merda! Desce já daí! - urra o motorista e trava o carro.

- Eu já tou no ir - digo a abrir a porta e a pôr um pé no chão da rua no meio do coice do carro.

Qual Mickey qual caraças, tou masé de novo numa aventura dos Freak Brothers, como se uma década não tivesse passado pelas nossas carcaças - e que bom! - avalio, no que Afonso já me empurra, expulso pelo tipo ao lado.

- Tudo bem, vamos pra casa - adianta-se e acena ao mesmo tempo com uma mão a mim e com a outra a um táxi em que descemos num piscar d’olhos a Calçada do Combro. Cinco lanços de escada, whisky puro em copos de dois, uma linha, outra, mais uma cónica e mais um copito e o anfitrião dispara à queima-roupa, em tom grave.

- Muriel morreu.

Na terceira faixa, Brel sai do ar, que se enche de uma zoeira caleidoscópica de imagens tipo sequência final no Luna Park de Deus Sabe Quanto Amei em diferentes épocas da falecida, montadas aleatoriamente por um técnico ignaro da sequência exacta dos acontecimentos.

     Verdade que sequer me ocorreu perguntar-lhe pela família.

       Tanto álcool, a coca e tanto haxe, mais os anos longe, parecem ter-me anestesiado. Notícias do género têm às vezes o efeito de um choque, quando menos se espera, a depender de quem se trata, em certos casos nem lembra ao diabo e nem há um relacionamento que justifique algum tipo de comoção, tudo depende do estado emocional, do que se bebeu ou fumou, ou cheirou, ou não. Mas quantas vezes não é só fingimento, a máscara que se veste para reagir a uma tal nova? Não finjo porque não sei, e não disfarço a distanciação brechtiana com que recebo a má notícia.

 

- Morreu?!... Quando?

- Há um ano.

- De quê?

- De sida.

- De sida?!...

      O pó, seringas infectadas...

 

Merda, nem sofro como deveria. O tempo, a distância, reduziram o sentimento a nada.  Ou será que ele já não existe à vera?  Que só  nos  bata mal quando se trata de gente de quem dependemos afectivamente, pela proximidade, a habituação?

Tristeza e alegria só são sentidas como parte da vida económico-afectiva de cada um, a cada momento? Também na economia afectiva os passivos sentimentais ficam esquecidos num velho caderno empilhado no armário?

       E no entanto Muriel povoou a minha biografia por um bom tempo, a abrir com uma atracção fulminante dela sobre mim, depois privilegiando-me com franqueza de irmã mais velha que não tive e no final do período de maior intimidade a querer tomar-me como refúgio para uma noite de desencanto em Paris.

       Rosto encharcado, Afonso espalha o tabaco sobre a mortalha Smoking King Size. O choro não me causa a menor estranheza, porque quantas vezes antes mostrou-se sem pejo um bebé chorão?

A última – a mais tocante – na última partida. Reuniu-se um grupo numa tasca perto da rádio em que Ivan trabalhava. Bebeu-se, fumou-se e tirou-se fotos enquanto se fazia o resto. Depois partiu-se para uma janta no Varina da Madragoa em que nos reunimos tipo um mais doze apóstolos, posto o que foi-se para casa em petit comité a enrolar o último enquanto me preparava para a partida da mudança.

         - Troco o Terra Brasilis, duplo, do Tom pelo teu Hejira – propus-lhe enquanto arrumava o nécessaire, de onde ele pega o tubo de pasta de dentes para nele enfiar uma pedra com uns dez gramas de haxixe.

         Inopinadamente abraçou-me a chorar como uma madalena, sem vergonha da mulher e do pessoal em volta, de resto muito íntimo. Chorou por quê? Porque via naquela partida uma relação de 16 anos a esfumar-se ou por pressentir que o movimento de regresso ao Sul do amigo não era uma boa?

Nunca mais nos falámos ou escrevemos. Minto. Escrevi-lhe uma vez, sob a comoção de The Doors, de Oliver Stone, que vivi como uma colagem de videoclipes com reconstituição de época bem baril, para minha surpresa com a plateia cheia de putos de 14, 15 anos. Um bilhete a dizer quão perto estávamos de tempos até anteriores a quando nos conhecemos. Mas nunca o mandei por um detalhe ridículo: não ter o código postal - queria ter-lho dito, sempre a lembrar-me do telefonema em que o outro integrante do antigo trio de tardíssima adolescência me comunicou: Afonso tá fodido contigo porque não lhe escreves.

INÚTIL PAISAGEM

    drum’n’bossa avant l’être 2002

         Inopinada-inadvertidamente lanço sobre o seu choro:

- Em Dezembro de 94 vivi um dos dias mais tristes e belos da minha vida, quando Tom Jobim morreu. Passei todo o dia a escrever sobre ele. À noite, depois da janta, fiquei a tomar vinho e a ver televisão. Foi uma das noites mais agradáveis que passei en solitaire. Fumava, bebia e via um programa atrás do outro com o falecido, o mesmo é dizer, ouvindo e revendo um dos personagens mais surpreendentes que conheci, na singeleza e profundidade e no humor mordaz e infantil do discurso, de que quase sempre parecia não se poder reconstituir um período que fosse com sentido lógico, coerente, mas que era incrivelmente articulado e lógico como a sua música, uma das mais sensíveis e belas, expressão absoluta da terra em que vivia, do que tive maior consciência pelas peças de câmara quando voltei, a olhar das janelas ‘o Corcovado, o Redentor, que lindo’... E AÍÍÍ (engato soluço em uivo, descontrolado), o último programa acabado, mais uma garrafa de vinho aberta - o meu vinho corrente lá nessa época eram uns Bairradas baratuchos que davam pra curtir -, a luz apagada, como prefiro ouvir música, e a impressionista, então, tem um efeito do camando, Saudades do Brasil em alto volume, duas da manhã, inesperadamente desato a chorar como um perdido, como chorara a meio da tarde enquanto descava o obituário do maestro. Para  minha  surpresa, porque  ele  mesmo  se  queixava da falta de apego dos brasileiros aos seus mitos, a sua morte provocou grande comoção entre o que restava da classe média e alta locais, após década e meia de crise, e nos dias seguintes foi um regalo ouvir música de António Carlos Jobim irradiada das casas da Zona Sul, que cantou melhor que ninguém. Meu choro seco é tão convulsivo que o outro dispara, atónito e em tom de escárnio:

- Ele há cada maluco! Então eu dou-te a notícia da morte da minha irmã e tu choras pela morte do Tom Jobim?!

...

- Pois é... nem eu sei porque choro, na verdade... - refreio as convulsões. A tacada faz-me estacar e cair um pouco em mim e no senso do ridículo daquilo tudo. É simples: o que não posso chorar por ela é transferido a Tom, mas é talvez por mim e pela minha vida que choro - reatando na mesma toada:

        - Foi o que eu vi então, que não era só Tom, ou talvez fosse a sua essência, da sua obra, de que só me apercebi em pleno nessa manhã, ao ouvir a notícia da sua morte, em Nova York, aos 68, a mesma idade do companheiro Vinícius, e só me apercebi também de como é que eles se entrosavam tão bem em Roma, numa roda de amigos, a entrevistá-lo - ou a tentar entrevistá-lo, porque em princípio ele não respondia com objectividade a nenhuma pergunta - pela primeira e única vez, e ele passa-me a tarde a tomar Armagnac. O Rio perde o seu Cole Porter... Porter descreveu Nova York da porta do Waldorf para dentro. Jobim, o Rio dos olhos e ouvidos para fora. Nenhum compositor traduziu tão bem aquele sector da minha cidade, a Zona Sul, nas mais ínfimas cambiantes tímbricas de cor e som, paisagem, vento, clima, pessoas. A parte da cidade em que moro e, por curiosa coincidência, ou talvez não, a apenas 300 metros em linha recta da casa que ele construiu no alto de um declive, o Cristo Redentor à esquerda, quase sobre ela e ela sobre o Jardim Botânico mais as suas filas de palmeiras imperiais, em primeiro plano, a Lagoa a seguir, o Leblon e o mar ao fundo - lá do alto, longe dos cheiros e ruídos, uma casa em estilo europeu de montanha, uma vista deslumbrante do que não deixa de ser, não importa o que lhe façam, um paraíso tropical. No meio da floresta da Tijuca, no seu polígono de colecta de sons, cores, vibrações da cidade, horto botânico, sinto que a sua música é como um fio invisível a dar continuidade à minha vida do berço à beira da cova em que me encontro, do primeiro pio de pássaro ao amanhecer, quando, para quem não vê o nascente - e ele também o entrevia atrás do Corcovado -, ainda está tudo escuro, ao perfume das orquídeas e os rosas, vermelhos, lilases e bordôs dos jequitibás e flamboyants, hibiscus, quaresmeiras, espirradeiras e acácias brancas e rubras. Ali, no Alto Leblon, no dia da sua morte descobri que voltei para viver o Rio de Tom e o que ele ainda tem de paraíso terreal, como ele o vivia e transcrevia em canções e peças de câmara. Um Rio de amor que, com ele, poderia para sempre se perder.

- Tudo bem, tudo bem - tenta cortar Afonso, que por todo o discurso mantém-se majestático com o copinho numa mão e a cónica entre a outra e a boca.

- Terra Brasilis. Saudades do Brasil. Música radiante. Como os seus dias mais bonitos. Descobri ali e então a razão da minha insana ânsia de voltar nos 20 anos em que vivi na Europa e calcorreei Lisboa, Paris e Roma também a cantar ‘num fim de semana em Copacabana, andar pela praia até o Leblon’. Estupidamente, talvez, nunca corri apenas atrás de dinheiro, e no meu caso, que não sou nenhum Tom Jobim, o apelo da terra pode ter sido fatal.

Estende-me o braço com uma nota enrolada para cheirar mais uma. Inspiro coca e ranho.

- Vivo aliás há muito tempo a pensar nisso, que talvez quem acaba por não voltar ao ponto de partida fica como o personagem de Orson Welles a catar lembranças e quimeras numa bola de neve. E quem volta depois de muito tempo é para descobrir que também já não é só dali, quando ainda o é, ainda que só um pouco, o de-sen-rai-zamento... Lembras-te daquela cançãozinha que fiz? Samambaias verdes, de todos os matizes dos verdes... Samambaias azuis, de todos os matisses dos blues... Voltei afinal a um Rio já inexistente, uma cidade dramaticamente implantada no meio de uma floresta tropical que a cada dia lhe tira mais uma, dezenas de árvores e deixa-se de ter mais uma panorâmica da sua natureza exuberante, tapada por um novo prédio de dimensões absurdas e, pior, formas horrendas, porque além do mais os empreiteiros parecem determinados a não fazer nada que preste, em termos arquitectónicos, para já nem falar em paisagismo. Mas em que, por muito que a tenham destruído e a destruam ainda, e tenham acabado com o proverbial bom humor do carioca, de que ele, Tom, era um dos melhores exemplos, a natureza é tão forte que muita coisa permanece igual. Pode-se ainda sentir uma réstia do habitat da primeira manhã do mundo naquele cenário único, muito embora as suas praias e florestas estejam de tal modo sujas que é até perigoso tomar banho nelas...

- Pois é, estava até para te perguntar porque estás tão pálido, em Novembro, já não se vai à praia lá? - interpõe-se a gozar a minha contraparte em break, a que de jacto ponho fim, retomando a chorus line...

          - ... o Rio saiu de Tom, cantava dez anos antes Macalé. Mas de lá de trás do Jardim Botânico ou mesmo de frente para o mar ainda dá para sentir o significado de cada nota, cada acorde, dissonância e consonância, timbres e expressões vocais do maestro, um Pelé em música, qual Villa Lobos reencarnado no fin-de-siècle. Um dos arquétipos do fim do século XX.

         O monólogo pára aqui, porque esse é o tempo a ele concedido esta madrugada, e de maiores intimidades, com a azáfama do quotidiano, não reza a crónica actual nem entre casais.

Entre Afonso Martim Caldeira e eu, o pessoal quase sempre falava pelos cotovelos. Certa vez, depois de um almoço de Páscoa em casa dos seus pais que até pareceu uma boda, ele chuta e eu cheiro muita metadrina, após o que fomos parar quase em frente ao Café Central, com grandes argumentos do pé para a mão só porque a onda a isso obrigava, e um tem de impor-se ao outro quase à unha.

- Ó, pá, eu nem sei se concordo ou discordo, tás a ver?, mas deixa-me também falar um cóche. Por favor, meu, só pra pôr o speed pra fora, se não explodo, tás a domar?

Mas, se pudesse, e se fosse o caso, o monólogo do regresso prosseguiria em coda:

          Volta-se 18 anos depois e o nosso a dizer a quem me apresentasse:

- Temos de dar a maior força aqui ao rapaz porque tem a coragem de voltar quando toda o mundo está masé a ir embora.

         E eu ria... Melhor fora que embalasse para o Galeão no caminho de volta a Roma, onde até que estava numa naice! Passa-se o tempo e o mais das vezes estou a ver-me, marmanjão, a fazer o frete a péssimos candidatos a políticos... a qualquer coisa, porque o que importa é a carreira, e não importa qual, etc., já que - a emendar Auden - o problema talvez não fosse e ainda seja o político a tentar pôr a vida dos outros na ordem mas o de querer anafar-se pondo os outros na dele. E eu sempre à coca de uma oportunidade de explorar alternativas...  Mas  como  -  sem capital inicial, ele a circular cada vez menos e o pessoal cada vez mais desmotivado, a basar pra Portugal, Paris, Tóquio, Glendale, o diabo a oito. Enfim, onze anos depois, chego à conclusão de como é duro viver muuuita longe do ‘Primeiro Mundo’, sem ordenado ‘em dólar’, num planeta periférico hoje chamado ‘países emergentes’ em que até o exotismo perdeu a graça, é só sinónimo de miséria que leva à rápida degradação e à perda de dentes. Escafedeu-se. O Rio da doçura tá um fel e pergunto-me: voltei pra quê? Só pra ver bananeiras?!

Reencontro houve, mas por assim dizer estéril, num diálogo íntimo entre mim e eu mesmo - a terra. E quase só. Num quadro de progressiva agudização da crise económica, subproletariza-se, trava-se contacto com as piores cachaças do ramo, a vida a transformar-se num daqueles sambinhas bem ordinários pelos melodramas que contam.

         Mas o monólogo pára lá atrás. No calor do porre, Mozart dulcis in fondo, Afonso projecta-se sobre mim, abraçando-me como se abraça uma mulher e me tasca um beijo na boca, sem a língua esticada mas que ainda assim, pelo choque, deixa-me duro como um varapau. Cena do género não tem cabimento nem em policial de Vernon Sullivan. Devo estampar tal expressão de choque que, ao separar-se, Afonso sente-se obrigado a explicar:

- ... talvez só a emoção do reencontro, pá. Tanto tempo...

         Talvez. Como se não houvesse esse hiato, um corte, a provar que nem sempre distância física é fatal.

 INÚTIL PAISAGEM

                                                                 fading out

 

 

O pacote de regalos da inserção na UE inclui frio à escala da Europa Central. Ou então sou eu que, após treze anos quase sem saber o que é frio, já estou masé desabituado. O Nordeste e a humidade sobre os sete graus faz a sensação térmica baixar a cinco ou dez abaixo de zero. Até os macaquitos do sótão se me enregelam.

         Noite seguinte. Atafulho-me de jaquinzinhos, que já pensava extintos no mercado após tanta campanha pela preservação do carapau de escabeche, e emborco uma garrafa de tintol da casa, mais uma aguardente com café, em restaurante baratucho e porreiro da Bica, e ala para casa a enrolar um e informar-me no quentinho do que se diz e faz na TV. Aquecedor eléctrico aos pés, os efeitos do vinho e do haxixe e o cansaço dos preparativos e da viagem levam-me directo ao sono profundo, todo vestido, no sofá da sala.

         Acordo de uma vez quatro horas depois com o barulho de chave na porta e passos no soalho do corredor. Afonso chega do Lux com um casal de jovens, jornalistas estagiários da nova vaga de canal de TV a cabo.

Quatro copos, uma garrafa de J&B, coca, haxe, Peaches en Regalia de Zappa na aparelhagem, os sons de Hot Rats transportam-me e a Afonso a 30 anos atrás, bate linha, alinha e cheira, mais um trago, outro basai e estamos a falar a rir de Zappa, da sua irreverência, acidez e versatilidade e de como o rock à nascença e já em meados da década de 60, com o pop, era surpreendente em novidades, diversidade de estilos e sonoridades, a um só tempo artesanal e industrial, em lirismo e irreverência, de que Zappa foi um dos epígrafos. Inopinadamente, ponho-me a discursar sobre outro dos meus temas de reflexão de momento: o tempo de germinação dos sons e moda contemporâneos, a minha juventude. 

 DE JIMMY SMITH AO DRUM’N’BASS FLASHBACK 

        - Na segunda metade dos anos 60, acordava-se de manhã, ligava-se a telefonia e raro era o dia em que não se ouvia uma coisa original, uma sonoridade, uma combinação tímbrica absolutamente nova, mesmo numa cançoneta que logo se veria que não tinha qualquer interesse mas que nos enleava e enlevava, fosse pelo riff de uma guitarra ou o estalo de um ataque de órgão à-la Bach ou de um naipe de metais, pelo estilo da canção ou pelos seus ritmos. Por exemplo.

Vou ao quarto, pego um caderno de apontamentos e volto a folheá-lo.

- Aqui. Emil Cioran, que não seria de considerar propriamente um pensador popular, ainda que por um motivo ou outro possa ser misturado no caldeirão em que se cozinhava a cultura e as subculturas do longo pós-guerra de guerras até o começo dos anos 70, quando eu e Afonso adolescíamos e supostamente não havia crise. Contam que numa das suas viagens a Inglaterra, nos anos 60 - em 1965 ou em 67 - parou encantado à porta de um pub a ouvir uma música irradiada de uma juke box com um trecho de uma peça de Bach, o seu ‘deus’. Era, se em 65, Michelle, se em 67 A Whiter Shade of Pale, que ele repetiu várias vezes. Foi a esse propósito que, 12 anos depois, ele escreveu em Écartelement, um dos seus livros de aforismos: Em música, em filosofia e em tudo, amo o que incomoda pela insistência, pela recorrência. Do mesmo modo, os Beatles, graças a George Martin, de repente saem-se com uma e outra canções ao estilo do ‘deus’ de Cioran ou de marcha militar francesa ou madrigal. A captação e mistura de guitarra e vibrafone na introdução de San Francisco, de Scott McKenzie, brilhante e claríssima, de tão ouvida pode até parecer a coisa mais vulgar do mundo. Mas foi a primeira vez que se fez algo do género, e era um desbunde acordar-se quase sempre para a revelação de uma sonoridade até então absolutamente única, até pela novidade dos instrumentos e aparelhagens que se começava a usar. E o que dizer das primeiras vezes que ouvi a abertura de All Along The Watchtower por Jimi Hendrix e Experience, o primeiro power trio da história e que talvez tenha feito a música mais revolucionária e, por isso, clássica do final do século? Até Jimmy Smith, anos antes, e aí já estou a falar dos fertilizadores de toda a lavra do rock, porque para mim a coisa começou mesmo com Billy Preston, órgão era coisa de igreja. Até aos Beatles, cravo era uma relíquia reservada aos cultores de música antiga. Até aos Swingle Singers, The Beatles e Procol Harum, para o comum dos mortais Bach era quase apenas um nome difícil de pronunciar. Varèse, que passou a ser Varize, reencarna em Frank Zappa. Quando vocês nasceram tudo isso já era antigo e estafado, tal como já não se sente também nenhum frescor em quase nenhum género de arte nos últimos anos, salvo em algum cinema e no rap ou no hip-hop, quando apareceram, nos anos 80, quer dizer, com a sonoridade que tem hoje, porque a base do rhythm'n'poetry já estava lá atrás, nos 60, em James Brown, e surge já bem definida em Wake Up, Nigger, um LP dos Last Poets, de Nova York, que eram ligados aos Black Panthers, só que apenas com vozes e percussão, tás a ver? - dirijo-me quase sempre ao rapaz, que se limita a dizer:

- Iá.

- A rádio em que comecei a trabalhar em muitos sentidos era uma merda, tás a ver? Era da bufa, ou tinha sido, enfim, na época era controlada pelo Ministério da Educação. Mas era a única escola de rádio que havia em Lisboa e formou muito bem duas gerações de alguns dos melhores profissionais do ramo, em vários géneros. Gente que fez história. Não sendo comercial, podia ser - como era, às vezes - experimental e, em termos musicais, apesar da discoteca ser uma miséria, era bastante digna. Havia só um parvinho que passava Neil Diamond e Shirley Bassey. E tinha essa coisa fantástica de, por exemplo, como os recursos fonográficos eram tão escassos, um dos separadores de emissão mais usados ser precisamente, vinte anos antes da videomusic, Peaches En Regalia, que era assim como que o prefixo sonoro ‘alternativo’ da rádio. A rádio também fez parte do Movimento, a ponto de ter havido rádios piratas no mais primal sentido do termo, porque instaladas em barcos. Hoje não há mais protestos de massas como em Washington em 1967, em Maio de 68 ou no 25. Seattle?! Protestos realmente imponentes contra o G8 e a globalização, entre aspas?! Balela. Ninguém está mais disposto a imolar-se por dá cá aquela palha, meu! Hoje em dia a malta está preocupada é com trabalho e não tem dinheiro nem para ir à manife de autocarro. Desde o punk, vivemos numa era de reproduções. Eu sampleio, tu mimetizas, ele reproduz, do chamado clássico ao contemporâneo, coisas que se fez no máximo até 1990, tratando-se de Van Morrison ou Joni Mitchell. Como se toda a música fosse uma arte morta. Como a ópera, tás a domar?

- Iaá...

- Olha, nós somos do tempo em que a malta de Angola e Moçambique chegou cá com essa do iá, meu - já tamos velhos ou quê?!... Agora, tás a ver o que eu quero dizer?...

- ...iá...

        - ... já nem atino com as designações dos géneros em voga, house, acid, hip-hop, drum’n’bass, tecno, trance, mil e um nomes que no fundo sabe-se que são só etiquetas adoptadas pelo pessoal dos departamentos de artistas e reportório das editoras para vender o peixe e que, salvo uma aqui e outra ali, acaba por ser a mesma coisa, mas pelos nomes a dar a entender serem muito diferentes, e que nem dá para atinar...

- ... o que estava a tocar quando a gente se conheceu era o quê? Acid? Trance?- interpõe-se Afonso, a dar uma mirada para o jovem conviva e voltar os olhos para a mortalha em que espalha o conteúdo de um cigarro.

        - Trance, iá... - balbucia o interpelado.

        - ... quase tudo requentado - reato -, que nem sei se é só nostalgia ou passadismo, mas salvo uma outra excepção, por mim, quase não dá para ouvir nada além de um ou outro disco de Joni Mitchell ou Van Morrison do início desta década. Não quero dizer, é claro, que tudo o que se faz é merda, embora para mim a maior parte o seja. Cowboy Junkies, por exemplo, acho baril. Há bens durabilíssimos, ao longo do tempo, tipo Quincy Jones, das big bands a Michael Jackson, que sem ele não seria porra nenhuma, e que enquanto estiver activo será sempre um mago de concepção e produção de som. Ou então isso aí, Zappa, Hendrix...

         SEI QUEM EL’ÉÉ, ELE É BOM RAPAZ, UM POUCO TÍMIDO ATÉÉ... - berram em alto volume as caixas do aparelho, accionado por Afonso após acender o joint, a luz que começa a penetrar na sala a encomendar o dia.

- Ou Madalena Iglésias, pá, de 1966, sei lá - ironiza o gozador, a abrir uma gargalhada entrecortada por um forte acesso de tosse.

- Iaaaá!... - remata o jovem a rir e a estender o braço coberto por um belo pulôver aos quadrados amarelos e pretos para segurar a cónica que o anfitrião lhe estende a rir como um marreco, a tossir como um desesperado e, no meio disso, a sublinhar:

- Podes crer!...

 

 

 

Desdobro-me em contactos para recolha de dados para um documentário de TV sobre as mudanças de Lisboa, que me trouxeram de volta, e que me parecem infrutíferos, porque logo nos primeiros dias sinto que Portugal anda em duas marchas, uma delas tão emperrada como dantes.

A efficiency não se aprende assim do pé pra mão. Dezoito anos de tomada de distância, de distanciamento, quase sempre longe, isolaram-me de muita gente que entretanto parece-me mais isolada do que nunca. O insulamento em que vivi na terra do fado após a chamada Revolução dos Cravos - ou das flores... -, que aliado a uma absoluta falta de perspectivas de reabertura de horizontes profissionais levou-me a trocar Lisboa por outra terra de exílio em parte voluntário, em parte forçado, de um Brasil primeiro sob ditadura militar e depois em crise económica permanente, parece ter-se alargado.

E leio muito sobre o país que nem faz muito tempo talvez fosse o único do Ocidente que não tinha Coca-Cola - embora numa das suas possessões mais distantes, Moçambique, ela fosse importada da África do Sul - e que, apesar da guerra colonial em três frentes africanas e por vias das remessas dos emigrantes, cresceu a uma média de dez por cento ao ano na década anterior ao 25 de Abril de 1974, ano extraordinário, em que a rebordosa gerada pelo reviralho fez com que a produção caísse mais de quatro por cento, e olhe lá. Desde a entrada como membro de pleno direito na UE, ingressou de vez na era do capitalismo tecnocrata. E dá-se ares - para uma elite, até muito fundados - de modernidade, ao mesmo tempo em que a TV, só como exemplo, expele as mesmas ideias estreitas e foleiras que a enformaram e de que não se livra, como nódoa indelével, num passe de mágica, até porque a vulgaridade da cultura de massas dá cada vez menos trégua em toda a parte.

Uma ou outra excepção reporta-me ao tempo em que ainda havia disponibilidade para a cavaqueira de café sem assunto pré-definido, o que normalmente não é o caso, porque todos os encontros são de trabalho. Quando não se está a correr ‘atrás do prejuízo’, como se diz lá para as minhas bandas, está-se fora nalgum monte alentejano a cuidar das reformas na casa de campo recém-comprada, nova cambiante na vida outrora feita de uma única alternativa à rotina casa-trabalho-casa-café que era a praia com engarrafamento de fim de semana. E, fora os contactos, vejo-me como nos últimos anos em Lisboa completamente a sós com os meus botões, a ver TV ou a ler.

Tanto papo, tanta intimidade na primeira noite, mas isto aqui caminha para ser mais um filme sobre a incomunicabilidade.

Dou-me até ao luxo de, entre um e outro contacto de trabalho, repetir as mesmas longuíssimas caminhadas de um qualquer ponto distante do mais antigo núcleo da cidade até à Baixa que ainda é bem pombalina mas ostenta uma miríade de montras de luxo de grandes marcas e megastores internacionais, FNAC, Virgin... tudo a saber no fundo a uma Europa de ficção apocalíptica tipo Mégalopolis de Herbert Pagani. É época de Natal e os burgueses e novos ricos passam anafados e apressados, carregados de prendas mas, como sempre, carrancudos. Melhor retirar-me e enrolar mais um e reler Eça e Ramalho e ensaios históricos e urbanísticos empilhados para recolher dados para os documentários.

Dos dois amigos mais próximos, como irmãos de uma adolescência tardia, com quem compus duos e trios quase permanentes de cumplicidade quase uterina, só um está bem à mão mas ao mesmo tempo a uma distância glacial, não o vendo por dias seguidos, o outro ‘extraviado’, algures na cidade (ou alhures), mas de todo modo incontactável, e quanto a este, de tanta loucura, melhor por agora talvez – talvez – apenas deixar recados para quando (se) reaparecer. Parece ter perdido até a graça, perdido tudo - e extraviou-se de todos e ainda mais de si mesmo, se é que alguma vez foi egocentrado.

Outros compinchas estão pouco ou nada disponíveis. Cada qual na sua e quase todos também afastados um dos outros. Recorrência de atavismos muito anteriores a eles na minha biografia. Alguns são profes, outros empresários empreendedores. Um está em Óbidos, outro em Sintra, em Azeitão. Outro no Alentejo.

 

Telefono para a redacção para que trabalhei por um par de anos de várias frentes para falar com Diogo. Dei-lhe uma mão para voltar às lides depois de beijar a lona. Uma tarde, em 1979, estou n'A Brasileira a folhear o Diário Popular de alguém que abancou na minha mesa. Na página de notícias locais diz-se que ele foi preso no Porto com 30 gramas de haxixe, coisa que em si mesma era de partir o coco, mas o que me faz arrepiar é a forma como a notícia foi redigida e publicada. Quem a escreveu pode ser um puto inexperiente. Mas quem a editou e a mandou para a paginação ou é muito incompetente ou mal intencionado. Logo à cabeça, após o lead, a informação de que o detido, de nome X e idade Y, é ‘um indivíduo que diz ser jornalista’. Como, que diz ser? Então não se investiga?! Não se telefona para o sindicato a ver se ele tem registo?! Está definitivamente arrumado, penso na sua figura de freak, e agora isto - quem lhe dará trabalho?

Saiu dias depois sob fiança. Ninguém lhe dava trabalho e, todo enrolado em imbróglios e mais imbróglios, em pouco tempo desistiu de tentar. Safou-se quase por milagre.

Atende o telefone com a voz soturna de sempre. - Estás cáaa?! - hoje não dá para nos vermos, fortes dores no fígado após mais uma noite de rebalderia, fica com o número do meu móvel, compromete-se a telefonar, mas quem diz que o fará? Que não seja grave.

 

Passo longas horas, entre as deslocações de trabalho, caminhadas e sessões de estudo, às voltas com um passado-miragem e um presente irreal, porque feito de ausências no fundo explicáveis mas mesmo assim estarrecedoras, porque os ‘objectos’ que gravitavam à minha volta não existem mais, embora estejam de novo tão próximos. Como se (re)vivesse em Un Soir, Un Train, um filme de André Delvaux.

 

Bruno Ganz adentra a barra do Tejo para um mergulho na cidade branca e vejo-o em close com Teresa Madruga  num velho cinema de Corso Vittorio, na Cidade Eterna. Sente-se na tela, naquela Lísbia da Graça e de Alfama, ‘essa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar enveludado de clima rico’ e uma atmosfera de um provincianismo claustrofóbico a que não faltam as mais fortes luzes do esclarecimento numa ou noutra mente mas, mesmo quando esta se faz sentir, a civilização ainda é uma miragem de que só se tem ecos, como nos tempos de Eça.

Logo no primeiro diálogo Teresa Madruga já destila fastio por todos os poros do outro lado do balcão, diz que tem um irmão em França e pretende ir para lá. A eterna atracção da malta para dizer merda pra isto tudo, tou no ir. O suíço Tanner sacou-lhe bem o espírito. Nessa cena, Teresa está pálida e os quadros estão bem fixos, ela é que não contém os nervos. Como é que um realizador experiente usa uma sequência dessas? Talvez, quem sabe, para retratar justamente isso: o impacto do encontro da jovem actriz de um país recôndito com o medalhão das telas. Mas, passada a cena, desaparece o nervosismo da empregada de balcão enleada pelo camone e a portuguesinha dá um banho de destreza e sensualidade no calmeirão austríaco.

Não sou Ganz, piloto de cargueiro de passagem e descomprometido, embora sempre ganzado, porque uso o fumo como calmante natural numa rotina que de contrário levar-me-ia mais cedo à morte por stress. É um lenitivo e, se porventura acaba por ser mais uma barreira no trato com a sociedade, foda-se a sociedade. A lanzeira do fumo contrabalanço-a com um truque aprendido em Haxixe, de Walter Benjamin, onde descobri que o rato de biblioteca só não caía de borco sobre buques e manuscritos graças ao café. Então a viver na terra do legítimo espresso e, mais que ele, do doppio ristretto – verdadeiras bombas de estímulo -, arrisquei-me a marar, sim, mas de síncope cardíaca. Haxixe, no caso aqui, também para olhar para tudo de todos os ângulos imagináveis. Abrir os cabeça. Aguçar os sentidos e as sensações para outros aspectos da paisagem interna e externa e dar aquele relax. É difícil morrer de susto ganzado. Talvez de pânico...

De passagem estou, sim, mais uma vez e depois de tanto tempo que ocasionalmente sinto-me como se fosse a primeira vez que a abordo, quem diria, eu que a destrinchava como um irmão de sangue quando guiava francesas, brasileiras e italianas pelos seus (des)caminhos em frequentes missões de guia turístico. Por outro lado, em mais de dez anos na cidade, nunca li tanto sobre ela. E conheço cada pedra que calcorreio de um bairro a outro dentro do antigo perímetro entre Alvalade e Alcântara e dali às costas do Castelo ou a Benfica. Fora dele, não. Sou um estrangeiro. Quase Ganz. Mas quem não o é hoje em dia por aqui? Subindo a Rua do Carmo e o Chiado, sou eu mesmo, entediado e só como um cão rafeiro fazendo-o centenas de vezes 20, 25 anos atrás, a arrastar os passos tristes como um personagem de Eça de Queirós. Ou Pessoa.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,

transeunte inútil de ti e de mim,

estrangeiro aqui como em toda a parte,

casual na vida como na alma.

 

          Não chego de Paris, como Carlos da Maia ou Basílio, e não vejo motivo para proclamar ‘isto é horrível quando se vem de fora!’, como também me comprazia repetir quando voltava das jornadas mais ou menos longas nas grandes capitais a Leste - sempre à coca de uma oportunidade de pisgar-me de vez da ‘pasmaceira’. Não era talvez só a cidade, mas a gente – ‘uma gente feíssima, encardida, molenga, reles, amarelada, acabrunhada’.

Amarelado e carrancudo, sim, ainda, de Inverno. O alfacinha bonacheirão quedou-se no Pátio das Cantigas com o Leão da Estrela. Mas molenga, reles, acabrunhado? De jeito nenhum.

Passeia-se agora todo empertigado nos sobretudos e agasalhos novinhos em folha, rendido à tecnocracia e ao crédito ‘fácil’, corrompido até à vesícula. E, imbuído de uma acidez peculiar, humor ferino, não conseguirá nunca talvez, mesmo quando coberto de ridículo, levar-se completamente a sério, nas suas convicções mais ou menos arraigadas.

- Todavia Lisboa faz muita diferença. Oh, faz muita diferença. Hás de ver a Avenida diante da Bertrand - parece-me ouvir repetido a cada encontro.

         - Já foste à Expo? Já foste ao Centro Comercial Colombo? Viste aquilo?! Já passaste pela Ponte Vasco da Gama? Viste os novos eléctricos alemães? Viste as novas estações do metro? E que tal? Supimpa, hem? Já cá temos também o janquefude!...

Ninguém do meu círculo mais estreito de relações, mesmo entre os menos neurasténicos - e como eles ainda hoje são raros! -, embarca de bom grado no ufanismo reinante, nesse renovado orgulho de Portugal ou de ser português. Há quem reaja como se não acreditasse no que vê e quem se deixe estar nas meias-tintas enquanto abusa como sempre do malte destilado de origem escocesa ou irlandesa, agora quase ao preço da jeropiga, seguramente mais barato que a Macieira a que recorro para evitar a hipotermia quando saio à noite para trabalhar. Aqui, vejo-me face a anti-acacianos tenazes e resolutamente empedernidos após certificarem-se de que o consulado socialista de maioria absoluta, no jogo da alternância, acaba de quase ao mesmo tempo revelar e soterrar qualquer veleidade de ideal de uma sociedade um cadinho mais justa através da chamada terceira via.

 

 

 

Lourenço Pires Gomes, emérito cicerone, reserva noite de sexta-feira para janta e digressão pela nova noite lisboeta.

- Já viste a nova linha de metro de Sete Rios até cá? – pergunta ele do trabalho na antiga Segunda Circular ao meu telemóvel pré-pago de 30 contos, com dez de carga. – Então, entra no metro no Chiado e sai no Centro Comercial Colombo, a ver que chocante.

Novidade a todo o transe. Saudar Pessoa sentado em frente à Brasileira e submergir pelas escadas rolantes até à Baixa e, na outra ponta, emergir sob a abóboda da entrada do maior templo de consumo da sociedade emergente.

As folhas reportam um puxão de orelhas do Papa aos bispos portugueses porque só um quinto do seu rebanho frequenta as igrejas. E pensar na influência que as paróquias tiveram na manutenção do breu marcelista-salazarista e no desfecho do PREC.

          Consumismo, nova religião, ó Salazar-Marcelismo e ó Pasolini o quanto estivestes perto!, o Convento de Mafra da pós-modernidade já atracado às três pancadas à capital de um país até há tão pouco tempo agropastoril-medieval, nave e corredores de igreja maiores do que estes talvez só na Basílica de São Pedro, e ao menos aqui sabe-se a que se destina o óbolo, o crédito bancário à la minute que, como reportam as folhas, aumentou a dívida do país ao estrangeiro em sete vezes, seja lá o que isto queira dizer, esta labiríntico-claustrofóbica catedral parece não ter fim, onde está a outra saída, opa (interjeição, nada a ver com uma das novas expressões da moda), lá está ela, pororó pororó, poró, quase há uma vida, o eixo de ligação de dois dormitórios, agora a embocadura de mais um viaduto fez brotar um terrível bosque de pilastras de cimento armado num eixão em que os baldios das antigas hortas foram preenchidos por bizarros prédios de escritórios, cimento, só cimento onde antes era barro e do Lumiar até aqui, a Azinhaga da Fonte, para ser exacto, não é mais uma área limítrofe entre a cidade e os saloios, que já não existem mais, mas o intercalar de um outro vasto pasto consolidado da solidão Inc. (incorporated, incorporada), como isto era feio antes, quando a única atracção da zona era o arroz de pato do Califa, e como pior ficou na noite húmida deste Inverno, inacabada - ou mal acabada - e sombria.

          Cidades do futuro que se imaginava nos anos 50 e 60 (já era possível visualizá-las), do robô que fala e serve à mesa de avental, dos passeios nas ruas com passadeiras rolantes. Não é assim - é uma mistura de duas coisas, os viadutos estão por toda a parte, ok, os novos bairros-dormitórios são em estilos pós-modernos de Bauhaus e F. L. Wright a outras formas por eles sugeridas e mal arremedadas e as ruas futuristas não estão nos exteriores mas nos labirínticos centros comerciais subterrâneos e sobreterrâneos, curiosamente nunca panorâmicos, como diz o outro, futuro 2020 mais para Blade Runner, sim, com um toque de Metrópolis.

          Vai-se ao centro comercial em Lisboa, Myamna, Istambul ou Meca também na expectativa de, por um milagre, encontrar-se um ou outro produto fora dos padrões, porque quase tudo é padronizado, e nada. Até os carros americanos hoje são iguais aos europeus e japoneses.

         Longe vão os tempos de disposição e disponibilidade para a amena cavaqueira: tudo a correr. Ainda se pára para tantos almoços – pesados & etc. – mas os tempos são outros, a maioria das pessoas, como na América, aglomera-se nos balcões dos cafés e restaurantes, antes croissanterias, agora hamburguerias, fast food, junk food, delivery, Pizza Hut, Great American Disaster, como o hamburguer e as batatas fritas do McDonald’s, viadutos horrorosos, vistos de baixo ou de lado tudo segue a mesma receita.

 

Janta supimpa de alheiras num restaurante em Campolide.

- Mas afinal, o que vieste cá fazer, que nem te perguntei na outra noite?

- Estou em missão redobrada. Entre outras coisas, levantamento de dados sobre o ‘choque’ das mudanças de Lisboa nestes dez anos de ausência para um documentário e para um outro, de outro género, sobre a singularidade secular de Sintra. Mons lunae, cabo da Europa. O mesmo é dizer um mergulho profundo na História e nos novos hábitos dos lisboetas agora finalmente também aparentemente tão europeizados. Mas a questão que não me sai da tola é: mudou mesmo e, se mudou além das aparências, até que ponto? Em que medida a descaracterização e uniformização da sociedade pela europeização e globalização, o consumismo, o hedonismo, o dinheiro a dar com o pau, extinguirá o português do Lusitânia Expresso? Já acabou ou anda aí camuflado nos vistosos agasalhos da prosperidade?

 

Uma coisa que notei nos poucos contactos mais íntimos – e que, de repente, é uma característica local a que, de tão embrenhado que estive nisto aqui, nunca prestei atenção – é que quase todo o pessoal fica na sua, faz questão sobretudo de escutar, quando muito tecendo uns poucos comentários lacónicos, moita carrasco, como se também estivesse a pisar em ovos em relação ao que isto deu e no que vai dar. O meu amigo Caco Mentens, com uma boa meia vida de Brasil e à época a estrear-se num exílio voluntário em Portugal, costumava dizer que o português tem ‘um jeito mineiro de ser’, referindo-se aos matutos do interior de Minas Gerais, que gozam da fama de ser extremamente discretos e ensimesmados. Como o meu anfitrião de hoje, que se limita a escutar.

          - O que me causa mais espanto ainda, pelo que estou a ver, ouvir e ler, é a simetria de muito do que escreviam Eça e Oliveira Martins há mais de um século sobre um país aparentemente tão distinto deste e o que se passa hoje. Não sei se estás a ver... Uma granja e um banco, nem sinal de oficina – eis o Portugal português. O 25, a Revolução Liberal e, depois do 25, como que um fontismo revisto e actualizado. A mesma coisa de uma forma aparentemente diferente, porque segundo o historiador em meados do século passado encontrou-se uma maneira de pacificar a sociedade através de inversão dos à época também abundantes capitais externos, diz ele, tenho aqui num dos meus bloquinhos, onde é que está? – como vês estou a dar-lhe forte... -, o sistema de governo implantado em 1857 permitiu transaccionar-se com todos os vícios históricos do país, dando ao comunismo burocrático uma expansão tal que, satisfazendo a todos, atrofiasse as sementes de possíveis futuras revoltas. Às engrenagens administrativas de que o Estado já dispunha juntou-se a nova legião dos beneficiários das obras públicas. Segundo ele, o mesmo processo de outros tempos, - e cito – ‘uma sociedade vivendo de recursos estranhos e anormais, e não do fruto do seu trabalho e economia’. Ou seja, por incrível que pareça, volta-se atrás ao século XIX, a Martins e ao Eça, e a coisa vai a dar no mesmo. Parece até que os dois eram visionários, a ver a coisa a mudar e a não passar da cepa torta, porque tinham uma visão profunda de todo o processo, o que não é nenhuma novidade.

 

Lourenço está com pressa porque quer chegar a Alcântara a tempo de depositar algumas apostas no Loto num banco que só está aberto até à meia-noite e ainda pretende passar antes em Campo de Ourique para ver se encontra algo que se fume. Confecciona-se e degusta-se enquanto se ruma ao banco, Possidónio da Silva abaixo.

Outra novidade: banco aberto até à meia-noite para receber apostas. Júlio Andrade está numa das longas bichas para investir na sorte porque o emprego num jornaleco vespertino da praça ‘não me está a dar pro gasto’.

          - Viste aquilo? – diz-me Lourenço com um sorriso irónico à saída. - Ei-lo, Júlio Andrade, que em 75 está com a nomenclatura, a agir em seu benefício e, como sabíamos alguns de nós já então, e-rra-da-men-te a apostar num improvável benefício próprio e das massas desfavorecidas através da revolução proletária, quem sabe até, por conta disso, a denunciar colegas ‘reaccionários’, ‘traidores da causa operária’, ideias a que, diga-se de passagem, cedo renunciou, a apostar nove mil dele numa só noite, além do que terá gasto na lotaria semanal para, quem sabe, comprar uma propriedade no campo, aposentar-se, viajar mais, se de repente lhe der na telha, comer e beber do bom e do melhor, ler e ouvir música, ver talvez um ou dois netos a gatinhar na relva a seus pés, a acondicionar melhor o cachecol à volta do pescoço com um cigarro aceso entre os dedos, ter enfim a vida anafada, tranquila, que sonhou e, apesar do ‘desvio’ sexual inato, ainda a insistir na bazófia de montar uma família tradicional. Ei-lo enfim quase aos 50 a apostar, vá, um e meio por cento do salário líquido em quê? Nos ideais de Abril? De Outubro? Nos das palavras do mártir Victor Jara? Não! Prosaicamente, talvez, numa herdade no Ribatejo...

Somos discretos, sim – moita carrasco, mas tratando-se dos outros a má-língua verrinosa logo sobressai, atracada à nossa índole colectiva como carrapato.

 

Segue-se para a Doca de Bom Sucesso, onde tomamos duas cervejas no pub construído na Irlanda, desmontado como um lego, transportado de barco e reconstruído na mais nova Eurolândia. Como a capela de São João Baptista na Igreja de São Roque no tempo de D. João V.

- Pub irlandês?! Quem diria, depois de tanto tempo só com o British e o English, além de um ou outro arremedo de public house.

- E já cá há quatro, só de irlandeses, vê lá tu!

O Peugeot 205 do tacho de Lourenço faz um travelling das docas de Bom Sucesso ao longo da 24 de Julho. Antes, uma paisagem inóspita, uma linha de comboios e as sombras de armazéns do porto a esconder o Tejo, onde às vezes se ia de carro até ao pontão da Ribeira Nova enrolar e fumar um charro. Luz para os lados do rio só quando passava o comboio. E do outro lado absolutamente nada. Um cinema e um restaurante em Santos, é do que me lembro. Agora, uma feérica sucessão de bares, restaurantes, gelatarias e discotecas delux com letreiros de néon, uns mais discretos, outros bem espampanantes, sempre apelativos e cativantes: Zeno, Doca de Santo, Cosmos Café, Blues Café, Café Inn, Evasione Spazio e Gelataria, Portugália Cervejaria - eh lá, que desentocaste da Almirante Reis -, hélas!, Rock City, yeeaaah!

O tráfego intenso, em movimento nunca visto na cidade antes, até ao antigo prédio da Alfândega Marítima, no Terreiro do Trigo, próximo ao Campo das Cebolas, ponto de metade das partidas decisivas.

Só a Lisboa antiga, com excepção do Chiado, repousa ainda no torpor dos séculos, apesar do bulício das obras de restauro que por lá também pul-ulam. E após certo esvaziamento nos últimos anos, provocado pelo surto de novas atracções noutros sítios, o Bairro Alto volta a ser point de agitação nocturna.

         Quão longe se está do tempo em que após as duas da manhã só havia escassas, fétidas e carunchosas opções: os cabarés Bolero, no Martim Moniz, e Cantinho dos Artistas, no Parque Mayer, que oferecia ainda as alternativas de uma ceia razoável no Gato Preto ou o bar Dominó, o Ritz Club, ou os cabarés do Cais do Sodré, ainda mais típico rendez-vous de embarcadiços. Mesmo no pós-25, a eles - com ambientes bem transformados - só se juntaram por um período de dois anos o Zodíaco, na Estrela - pioneiro point alternativo, juntamente com um saloon feito no antigo cinema Universal, no Rego -, e os caboverdianos Monte Cara e Lontra, antes da sacrossanta sande de torresmo na ‘saída dos jornais’, no Bairro Alto, de mata-bicho. Certo; sempre havia boîtes do tipo Stones, Ad Lib ou Tramps, ainda não frequentadas por freaks (num certo sentido) e afins.

A new age lisboeta começou no B.A. com o Frágil, que por anos a fio foi um oásis de bom gosto e requinte de assombrar camone, também porque em gritante contraste com a pasmaceira de novo reinante depois do reboliço do 25, até passar a ser quase que um clube privé da classe artística, porque demasiado estreito, e ser impossível demover a Guida Gorda quando ela não queria ou não podia deixar entrar mais ninguém, porque de facto já lá não cabia nem mais um alfinete como eu, e surgirem as Noites Longas no Casa Pia Atlético Clube, cujas enchentes descomunais evidenciaram a escassez de pontos de encontro e desbunde, que começou a ser colmatada só a meio dos 80 com a abertura na 24 de Julho das discotecas Kapital, Plateau e Kremlin e, depois, do Alcântara-Mar, que em conjunto mudaram radicalmente a face nocturna de Lisboa após uma história de sonolência.

 

         A vista de um balcão sobre o enorme galpão transformado em megabar, a pista de dança onde daria para se jogar uma partida de futebol de oito contra oito, o matraquear de bate-estaca tecno. Imagino que também as haja em São Paulo, por exemplo, mas nunca vi uma discotheque deste tamanho e com tanta gente antes. De onde sai tanta maralha jovem? E se é tanta aqui e há tanta casa do género por aí, Que multidão na noite, Quem diria? O andar superior, com vários ambientes a meia luz com sofás e luminárias de design de prima classe - e a larga varanda sobre o cais onde cargueiros de pequeno e médio porte quedam-se iluminados como que para uma grande festa mas silenciosos e desertos. Amanhece para um dia cinzento como o de uma noite americana que aqui está mais para marroquina, pelo fumo consumido pela malta neste território livre que me reporta ao plateau de rodagem de E La Nave Va, de Fellini, em Cinecittà, aqui e ali grupos de convivas partilham um joint, mais um grande antro de consumo.

- E que tal?

- Fantástico.

        Nada mais por esta noite.

 

        

 

Os litros de café que emborco dão fogo suficiente para reanimar, atento à embalagem de biscoitos:

                                               Tropicanos

Galleta recubierta de chocolate

         Fabricado en la U.E. Pastas La Carolina S.A. para DIA, S.A.

CTRA de Andalucía Km.12 Getafe (Madrid) España

         Ah, Europa!

         Fumo um cigarro enquanto enrolo um outro a ler Álvaro de Campos:

 

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Cidade da minha infância pavorosamente perdida

Afinal a melhor maneira de viajar é sentir.

 

De catamarã até à outra banda para vasculhar pertences remanescentes numa casa que me permite tomar ciência pela TV do que o meu senso crítico não me permitiria ver na de Afonso. O nacional-cançonetismo de cantigamente reproduz-se em inumeráveis cópias modernosas como as das duplas pop atracadas ao pequeno écran como pediculus pubis. Parece-me incrível que um bota-de-elástico e lambe-botas de poderosos nos anos 60, o apresentador Henrique Mendes, seja ainda e sempre a principal atracção dos serões de sábado em família, mas nada o é, e ei-lo a ‘animar’ um concurso, apresentador de TV da velhíssima guarda tira-que-tira do bolso e fica a bater na mão chorudos maços de notas, reproduzindo a era do nacional-cançonetismo festivaleiro e a dar o toque pós-moderno da jactância baixo-materialista. E então, minha cara senhora, vai arriscar-se a tentar a sorte para levar este HOME THEATRE, este computador, aquele frigorífero, enfim, tudo isto que vê à sua volta, mais uma passagem de ida e volta com direito a estadia de uma semana em hotel cinco estrelas para duas pessoas em Havana, ou se contenta em jogar pelo seguro e levar estes 100 contitos que lhe entregaria A-GO-RA em mãos?!

        Onde a pátria de cultura? No Henrique Mendes na TV privada, a desembolsá-las e batê-las como nem Mike Bongiorno ousaria e à imagem e semelhança do seu homólogo brasileiro Silvio Santos, no repórter a transmitir diligentemente trechos entre aspas de comunicados de guerras político-diplomáticas de Bruxelas e Estrasburgo, na valorização do euro e – pimba! – no velho nacional-foleirismo, agora convertido em sinais que emitimos, juntamente com o futebol, que nem o Nobel Saramago aparece na TV, o que difundimos – que sinal têm os sinais que emitimos da matriz? No fundo, tá-se tudo lixando, como sempre algum Pessoa – que um Pessoa haja e basta, para que não haja mais quem reclame – continuará a passear a sua anonimidade enquanto os seus poemas dormem sono cibernético numa qualquer Nova Pasta, quem sabe se, sem editor, não venha a abrir um site para relançar ideais de Quinto Império de Cultura.

 

Devia estar o Céu determinado

de fazer de Lisboa nova Roma

não me pode estorvar que destinado

está todo o poder que tudo toma

 

        

      Nas sacadas dos prédios antigos ou menos modernos ainda se rega o rosmaninho e a sardinheira, no meio do burburinho atrás no antigo pátio das cantigas o som não é mais de cordas plangentes a ensaiar um choradinho mas de rap e hip-hop de FM. Nos escaninhos da memória inconsciente e inconsistente dos transeuntes dormem antigos sonhos de conquista com sinais trocados. Novas caravelas não têm nomes simplórios e devotos mas identificam-se por siglas como Sonae, Portugal Telecom, EDP, a investir pesado no Brasil através do novo timão, o capital, ganda treta. Os timoneiros são agora sinais binários a trafegar em capabepeésses para exportar ou importar dividendos de actividades mais ou menos lícitas através de cabos de fibra óptica do mundo globalizado nas nada etéreas mas sempre voláteis supervias da informação. Está a ir Macau, foi-se Timor, Timor Mortis, mas nós estaremos lá, em capital, a provar que o mar aberto do mercado global pode também ser português. Os nossos emigrantes já não são rudes camponeses, marceneiros ou pescadores a aprender a manejar tornos mecânicos de linhas de montagem dos produtos europeus ou a varrer casas e arrumar camas pros camones, mas os nossos próprios filhos feitos técnicos de arquitectura ou computação, operários de outra maneira, quão longe estamos da era das bidonvilles das mesmas periferias a que somos ainda periféricos, embora com o consolo de sentir que já não fazemos parte da escumalha, mas da nata. (Pior se bate a sensação de que ainda ou já não se pertence a nada.)

 

 

      Cumpre-se o desígnio de De Gaulle, a Europa do Atlântico aos Urais, muda a escala, mudam radicalmente os valores e os pontos de referência, já não limitados às futricas internas de Lisboa e tolas rivalidades com o Porto mas abertas às de Bruxelas, Paris, Bona ou Roma, o que a bem dizer vai dar no mesmo, que diferença faz?, de pastelões nacionais-porreiristas aos internacionais, como o dos belgas a querer proibir pizza de forno a lenha ou Burlesconi a querer recriar o espírito internacional-fascista. Nem com cem operações mãos limpas os italianos vão conseguir varrer do poder o ganguesterismo e a boçalidade dos que dele se assenhoram à revelia de todos os princípios, inclusive os do bom senso, como no caso do Burlesconi, o patético último sinal de que os tempos (e as moscas) podem mudar mas as vontades, o sistema e os homens são sempre os mesmos.

   Curioso processo de aparente transnacionalização que parece camuflar mas só a muito custo irá apagar a evidência das singularidades e dos particularismos de carácter próprios de cada região, num país pequeno e cuja tradição regional, ao contrário de países maiores e mais pujantes, como Itália e Espanha, foi sendo progressivamente apagada pela intromissão das informações da aldeia global. Quando se entende que a Europa do Atlântico aos Urais será apenas mais uma entidade jurídica e económica/UE - muda o quê, entre império e impérios, sempre na periferia?

         

 

 

 

De regresso, noutra manhã radiosa, aproveito para retomar medida de um dos melhores takes do documentário, em travelling, um dos mais privilegiados pontos de vista do skyline lisboeta, quando os barcos se aproximam da margem direita pelas bandas de Alfama, extasiado com a beleza do panorama mais uma vez constato: a única alteração de vulto na paisagem é o tal das Amoreiras – como é que o deixaram erguer-se tão acima dos demais, numa aberração?

         As novas torres de Belém, as novas avenidas novas começaram a pipocar em meados da década de 80, nos primórdios da pós-modernidade. A pioneira foi a horripilante Torre das Amoreiras do arq.to Taveira, shopping - mais aí decide-se uma vez por todas nunca se dizer shopping - seminal, que entra para a história como um marco tipo Pão de Açúcar da Avenida dos Estados Unidos da América, o primeiro supermercado português e, por incrível que pareça, tratando-se apenas de um prédio, mas tão grande que, apesar de todas as revoluções posteriores, foi a única obra a alterar o skyline de Lisboa quando visto de um dos pontos em que ela parece ainda mais privilegiada, com o sol a banhá-la de montante a jusante, o seu impacto arquitectónico e paisagístico foi de tal ordem que, na onda do seu dissecamento, pôs-se literalmente a nu e fez-se piada da vida do seu autor. Outro impacto teria também o prédio das Amoreiras como edifício inteligente e megacentro empresarial e comercial.

        - O que é que achas? – perguntava-se acacianamente em reacção à mesma pergunta, para evitar a resposta, como faziam os parisienses em relação ao Beaubourg.

Mas o Centro Comercial das Amoreiras inda é como o outro. Implantou-se numa zona quase morta, já à saída da cidade, só prejudicando o skyline, o que em verdade já não é pouco. O pior veio a seguir, com a ameaça de construção da nova sede da Caixa Geral dos Depósitos na Avenida da República e adjacências. Já havia por lá uns mamarrachos ensaiados desde os anos 60 e que por lá continuam, mas o prédio demonstra até hoje, pelo impacto negativo que causa, ser pior que a encomenda, e não só por conta de ter sido erguido sobre os escombros de uns quantos prémios valmores.

Em Londres e Madrid - com exemplares de estalo, no entanto - também se vê a sanha do progressivismo sobre uma certa harmonia de planeamento com que nenhuma cidade americana, de norte a sul do continente, se compadece, porque neste aspecto são mais mães que outras do capitalismo selvagem, do ergue e bota-abaixo.

        Depois veio Telheiras e, com o início da entrada dos subsídios da UE, pimba! - nas antigas hortas de couves e nabiças despontam espigões de cimento armado como cogumelos, os regos de rega cobertos pelo alcatrão, quase nenhuma árvore ou rebento dela, vidros espelhados, como no sonho do antigo alcaide do pós-25 Nuno Abecasis a cidade tornou-se quase irreconhecível, nem no grande surto estado-novista dos anos 40 cresceu tanto, num novíssimo Estado Novo neo-liberal ou de uma terceira via, menos rápida.

 

 

Brasileiro português de Braga, como o dos brilhantes, volto, Basílio, a um lugar sem primas, porque incontactáveis num período de tempo tão curto, e que parece ter mudado radicalmente sim, tendo à primeira vista perdido os sinais mais evidentes de subdesenvolvimento e ostracismo. Ritmo muito mais acelerado, tudo a correr. Madrid está agora a seis horas de carro, é Bruxelas e suas decisões administrativas que impõem a marcha das decisões políticas que estão acima e não se compadecem com as futricas internas. Quem tudo decide afinal está no eixo franco-germânico, diz notório economista em telejornal da RTP-2 (teria tribuna para dizê-lo com tanta clareza num do primeiro canal?). Os mais jovens, como é natural, não vêem as ruínas de um antigo, já longínquo império, as cinzas de um passado amorfo - quando muito o esboço de uma dinâmica aparentemente irrefreável. Mas, inconscientemente, estão moldados por esse universo de referências, a triste e bela sina de ser português, que lhes cai em cima como com efeito retardado, mas cai.

Entre os mais velhos há muito quem, sem abdicar completamente dos antigos sonhos, aceite o que lhe é servido e outro tanto que deliberadamente alinhe na cavalgada por saber que não há alternativa, mas muita gente faz questão de se dizer band à part e denunciar o logro do crédito fácil, aparentemente barato mas que impõe um preço muito alto a quem já nem pensa na velha máxima ou há moral ou comem todos, mais dinheiro, mais corrupção, tá-se mesmo a ver, e o que importa? No entanto, agora sim, Lisboa é a metrópole que Artur Corvelo idealizou no seu castelo na província. Um sonho de efeito retardado após um hiato de cem anos.

 

        Brasileiro português de Braga, tenho direito à ‘nacionalidade europeia’ e entrei com os papeis em Janeiro de 1991, mas a balbúrdia foi tanta nos anos em que milhares de ‘luso-descendentes’ pediram a sua que, sem querer recorrer a cunhas, nunca tive resposta. O processo deve ter-se extraviado entre toda aquela papelada, antes da informatização dos consulados. Já que cá estou vou até ao Serviço de Estrangeiros a ver em que pé estamos. Saio do metro na Estação Parque, onde também me surpreendo com o travelling de escada rolante sobre citações como os letreiros dos filmes de Godard: A ética é estarmos à altura do que nos acontece - Gillles Deleuze. Um Deleuze sartreano...

 

        Ruas, escritórios, bares e discotecas dão ao mesmo tempo a sensação de uma pós-modernidade postiça, como se estivéssemos ainda no tempo de Eça e a civilização ainda lhe custasse caríssima e não fosse feita para o alfacinha, ficando-lhe muito curta nas mangas. Granjas e oficinas já cá não fazem falta: importa-se tudo pronto, sem taxa de importação. Melhor assim. Menos trabalho para maior ‘mais valia’, como está tão em voga dizer-se agora (e não é que conseguiram dar a volta a Marx?).

        Muitos não se adaptaram e não se adaptarão nunca. O tempo passou e eles também, muita coisa mudou, ao menos na aparência, eles não e fingem que nem se importam, se é que realmente se importam com isso. Era melhor a ditadura, a guerra, ou então a doce baderna do chamado PREC? A falta de perspectivas do pós-25 valeria mais que esta mistela de carcaça e scones que nos servem agora na estação quase terminal de um Outono feito quase só de cinzas de tanto sonho? Sonhos absurdos...

 

No final dos anos 90, talvez por tanta falta dela, tudo parece ser uma questão de ter ou não ter ética. Mas disso nem se fala, ou quando se fala, como Afonso, é para dizer como anda desvalorizada num mundo corrupto. Moita carrasco! A velha cidade de Ganz tomada pela tropa de assalto do tardo-capitalismo, pela ganância, o alpinismo social, quarentões/cinquentões da juventude daquele tempo, e que em grande parte militavam em partidos ditos de extrema-esquerda como o MRPP e o PCP(R) e que já naquele tempo se via quão estúpidos eram e depois tornaram-se muito pior que isso como ministros, secretários de Estado ou assessores de gabinetes de burocratas e tecnocratas. No início dos 80, com o dito boom da Bolsa de Valores de Lisboa, foi ver ex-emeérres-pum-puns a correr atrás de informações sobre investimentos. Antigamente o mau poder era dos velhos - mesmo os contestatários do regime, alguns ainda do tempo da República. Portugal nunca foi bafejado pelos ventos da contestação juvenil ou expressões colectivas de rebeldia, com a excepção da frente estudantil, fortemente reprimida - não acredito em ninguém com mais de 30 anos, mas agora de sinal contrário, os mais velhos discriminados simplesmente porque o são, porque há muito mais gente sem ideia fixa e afinal o que o sistema precisa é de impor dogmas. O sucesso a todo custo tem a sua faceta mais caricata – o mediático.

A maior parte do pessoal ‘do contra’ de antes do 25 ou está morta ou aposentada. Antes do 25, o núcleo duro e muito restrito de informadores e agitadores culturais tinha o máximo respeito por um código de ética baseado em não compactuar de nenhuma forma com o regime e nada fazer exclusivamente em função do dinheiro, mesmo o do salário, nunca pondo este à frente dos princípios. Balelas. Os poucos sobreviventes sentem-se ainda na obrigação de não compactuar e dizê-lo alto e bom som, coitados, tristes ou bêbados, ou as duas coisas. Lennon dizia que a mulher era o negro do mundo. Os resistentes são judeus escorraçados ou que se colocam à margem. Nixon-Gerald Ford, Marcelo Caetano ou 5ª Divisão do EMFA, Francisco Franco, Giscard D'Estaing, Idi Amin Dada e toda a cambada eram só o prepúcio desta bendita era de capital volátil e descalabro da treta da democracia representativa, a cargo de pseudo-executivos a mando das multinacionais internas e internacionais. Ao menos à época tínhamos a ilusão de espaço para o livre arbítrio, ou pouco mais ou menos, porque aqui marginal como o Luís Pacheco infelizmente pouco mais era do que um bêbado indigente, alvo de reverências ao texto e de chacota pela graduação etílica dos miolos. Ontem e hoje, mortos-vivos, ainda que possíveis génios, na quase total indiferença alheia:

        

                 Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

Sem ti correrá tudo sem ti.

 

        Entre os Capitães de Abril só Otelo continua na berlinda, trucidado por processos e prisões em catadupa, porque pego como bode expiatório dos excessos do PREC. Foi preciso revirar-se todo, gerar mesmo nas suas franjas mais extremistas aquele pouco – ou muito – de crimes de sangue ao longo do PREC para dar um salto... em frente?

 

        Mas no mais antiacaciano nota-se um substracto de profundo e indisfarçável orgulho pela Nova Lisboa atrás do tom mordaz das críticas ácidas ao progressivismo de fachada, aquela verrina que nos é tão característica. Verrina, causticidade. O tom é o mesmo dos tempos da velha senhora: por vício ancestral, sussurra-se mais do que se fala; não há ira.

     E eles põem a mão em pala como grandes marinheiros olhando à distância contra o brilho do sol como se mirassem um largo e vasto horizonte mas a linha de fundo é uma fileira de prédios e tudo o que esperam ver é se o que vem lá é o 16.

 

         Nenhum registo meu e da mãe, que era portuguesa. Nada de passaporte ‘europeu’, ganda treta. Vou ao jornal para vender duas reportagens, um ex-colega e amigo sai-se logo a dizer que hoje em dia já não se respeita os mais velhos, isto está cheio de putos estagiários que nem sei quanto ganham ou se ganham alguma coisa e nós, pá, cá andamos cada vez mais quilhados, o que trazes aí? Vinte laudas cada uma? Ena pá! Mas hoje em dia isto já nem se conta mais em laudas, só se mede em centímetros e rara é a vez que se publica alguma coisa com mais de 80cm. Isso quanto é que dá? Menos de metade do que eu fiz! Que história é possível então contar hoje em dia? Para quê escrever? Quem lê tanta notícia? Quem vai querer comprar banana?

 

 

 

 

Na única folga em duas semanas Caradanjo improvisa janta em casa a dois. 

- Então foste ao Lux com Lourenço? – critica, como se só houvesse um guia ideal para tour à basílica da nova noite lisboeta.

- Fui. E fiquei banzado. Que loucura!

- O Lux é do melhor, mas há muitos assim. Aqui perto, por exemplo, tens o Indústria. Muitas bandas inglesas vêm fazer a pré-estreia mundial lá.

- Que loucura, digo, porque o que me pergunto é: onde é que o pessoal vai buscar tanto bago para queimar na noite?

- Eu sei lá, pá, esse pessoal gasta dinheiro à noite cum’ò caraças. Tá tudo doido. Tou a ver o dia em que grande parte do que abriu fecha e muito do que continua aberto torna-se rapidamente decadente porque não há turistame nem bago interno para tanto.

         Subimos ao Majong, onde reencontro uma filha da ‘Revolução’, que mais tarde, em pleno megalounge do super Lux - point dos mediáticos de plantão - estende-me um joint que me faz dizer vita brevis, ars longa, desde que te carregava ao colo a dormir a sesta Rue Oberkampf abaixo, quanto mais a lusitana roda mais dá no mesmo, quem se quer bem...

Mediático é a grande palavra de ordem de Portugal no final do século. É-se ou não mediático ou não se é nada. Abrunhosa, o rocker mediático, reclama que vivemos num país que consome personagens com grande voracidade, especialmente na televisão - mas onde não é assim? Um dos piores logros da era da imagem de verniz foleiro de busca a todo o custo dos 15 minutos de fama, dinheiro e crédito de plástico, da construção desenfreada de castelos de areia pois, como se sabe, dela nada se leva ou, como dizia James Douglas Morrison, ninguém vai sair daqui vivo. Mão Morta, último álbum, Há Muito Tempo Que o Ar Nesta Latrina Se Tornou Irrespirável, a mesma verrina de sempre, agora nos grandes meios - a meio de uma actuação, Adolfo Luxúria Canibal resolveu pegar numa faca e cortar a própria perna a eito... Atitudes radicais... Assim é que é... - É que é?

 

CRIL, CREL, IP 5, OPA, mediático, o novo léxico é de arromba. Como no Brasil, ‘conceito’ para todo o lado, tudo se baseia em conceito disto ou daquilo. Na revista que folheio e de que tiro anotações vejo que o termo mais-valia é usado na acepção de vantagem, surplusuma das mais valias desta loja...  Temos cá já também o ‘franchisador’ inglês Marks & Spencer e as empresas portuguesas ‘franchisadas’. Anúncio de um relógio na revista diz em letras garrafais to hear, to listen, to share, to care, celebrate the moment *, com asterisco ao lado a apontar para a tradução em rodapé!: ouvir, escutar, partilhar, impressionar, celebre o momento. Sem contar as brasilianices de que quase já não se dá conta e uma terminologia toda especial segundo a qual as noites longas só valem a pena se forem ‘mais bravas’.

 

Faço fotos de referência para o primeiro tratamento de guião. Para ver e descrever como será descrito pela câmara.

Descendo a Ave da Liberdade pelos passeios centrais nem dá para ver o tamanho do estrago. O Parque Mayer na iminência de ser destruído por uma empresa cujo testa-de-ferro é o ex-director da CIA e ex-embaixador americano da pressão contra o comunismo e a anarquia, Frankenstein Carlucci, que quer transformar a antiga antecâmara de torturas da António Maria Cardoso num Hotel Pesadelo. Após tanto abre e fecha, o Ritz Club mantém uma sobrevida admirável, de antigo dancing do tempo das big bands a antro soturno, para variar sempre hiperlotado, onde se apresentam novas e antigas bandas marginais. O nobre Príncipe Negro transformou-se num bar de strip tease. Olho pro Tivoli do passeio do outro lado e acoplado ao belo prédio em cujo miolo, segundo as folhas, capitais espanhois cortaram meio palco, que antes no entanto só servia de base para o telão do cinema, ergue-se espampanante novo building hipermoderno. Espanta-me que o susto não seja só meu, acabado de chegar, pelo bulício por toda a cidade e arredores e as mudanças arquitectonicó-paisagísticas em curso. Reconhecem? - pergunta-me o título de uma foto-notícia de revista semanal com gramagem exacta e impressão catita como não se imaginaria por aqui até há uma dúzia d'anos, quando revistas abriam e fechavam num pisgar d'olhos. Se eu não visse, não acreditava. Isto é um bocadinho do 'miolo' do Espaço Tivoli. Os tempos mudam, e eu que o diga... - diz a legenda. E eu, que direi?

         W.I.P., work in progress, nome de um novo bar acabadinho d'abrir no Bairro Alto, as mudanças em marcha, a cada dia, a olhos jamais vistos e pensados. Com o 25, tudo muda radicalmente, de forma imediata e também em prospectiva, num processo de revolução permanente e cada vez mais acelerada, que dura há três décadas e agora não pára mais, as autoestradas de Cavaco, que se não fosse o acidente de Camarate estaria talvez fadado a ser no máximo Ministro das Finanças dos consulados Sá Carneiro, a fazer o papel de vendilhão das dúzias da Quinta Salazar, que fora de Lisboa e Porto vivia às escuras, como no tempo de Corvelo e Gonçalo Ramires.

 

Aqui e ali um ocasional Brel, Mozart, Zappa e M. Iglésias. Não há música no meu filme para registar o choque com as mudanças e refazer percursos. Só sons ‘naturais’, alguns ancestrais como as pancadas metálicas de aviso e o estrilo dos eléctricos a dar a curva na Poiais de São Bento para subir a Estrela, como a dizer que nada mudou. Damas enfarpeladas, mais novas ou muito velhas, com os mesmos tailleurs e casacos de sempre, esperam o eléctrico ou passam em carros com motorista rumo ao chàzito no Chiado, como se nada tivesse acontecido e como quando eram ainda meninas a acompanhar mães, primas e tias.

Nos bairros históricos, a nova classe média dos gabinetes misturou-se a uma réstia de plebe rude. Todos os jornais do Bairro Alto, com a excepção dos desportivos A Bola e Record, faliram com o PREC, as ocupações e ‘nacionalizações’. Ficaram os restaurantes, disseminaram-se os bares modernosos e as galerias d’arte. Bairro antigo, bares modernos, lojas e ateliês de artistas plásticos e oficinas de artesãos e classe média endinheirada e/ou endividada. Lisboa antiga, com excepção do Chiado e do Largo do Camões, esburacado, repousa no torpor dos séculos, Al Fama, Mouraria, Madres-de-Goa.

         Do Jardim de D. Pedro de Alcântara, a olhar para a frente ou para trás, absolutamente nada mudou.

         Causa espanto, por contraste, a mesma antiga inospitalidade do Martim Moniz.

         Pouco muda também ao olhar-se a cidade do alto do Castelo de São Jorge na direcção da barra do Tejo e ouvir-se o burburinho da cidade do Jardim do Torel ou do Miradouro do Alto da Senhora do Monte. Dois encantos de uma só em aparência contraditória expansão de horizonte e recolhimento.

         Largo do Camões escavacado, tudo em pantanas. Praça da Figueira, Cais das Colunas em obras antes da construção de mais parques de estacionamento subterrâneos. Trajos, vestígios de já priscas eras, eh lá, estou na Praça do Comércio expressamente para fotografar eléctricos novos e antigos em alto contraste, do século XIX ao XXI num só plano, abordo-a pelo Cais das Colunas em obras e pelas marquises laterais e à sua frente abancam os ambulantes que a UE não integrou ao mercado de trabalho, pudera!, e – hélas! - lá está uma mulher quase igual às daqueles tempos, de expressões rudes e com um arremedo de pregão antigo, ondulante e plangente como os das varinas de antigamente. Ali António Castro, sentado nos degraus do cais, vinte-e-oito anos atrás declamou para a nova manhã, entre a bruma da opressão ditatorial, a Ode Marítima.

 

         Olho o mapa antigo e desenho um outro à volta do antigo círculo da cidade: só na Margem Norte é três vezes maior e a população aumentou na mesma proporção. ESCALA ORIENTE e outrotanto quando se pensa na faixa que vai de Vila Franca de Xira a Azeitão ou Setúbal, de Alcochete a Sintra e Mafra, entre esses limites quase tudo preenchido por um longuíssimo dormitório que vimos nascer pedra a pedra, ou melhor, parede a parede, no sistema pré-moldado J. Pimenta.

         A escala triplicada de Lisboa, bem preenchidinha ao longo e ao largo de toda a sua região metropolitana, muda a cabeça das pessoas (?): tudo, em crédito e consumo, está à mão e portanto é possível. O lisboeta prova o perfume do consumo pela primeira vez, gosta e, claro, cai no pecado. Com tanta sede que o excesso causa espanto. Faz lembrar aquela do se Deus não existe, então tudo é permitido. Lisboa expandiu-se até aos saloios, aos sadinos e às lezírias. E dentro dos antigos limites, Olivais, Lumiar, Campo de Ourique e Belém, preencheu os vazios com novos bairros entre as vias rápidas. Tornou-se uma Eurolândia em toda a região central do cais de Bom Sucesso à Expo, ao longo da faixa ribeirinha. Reabriu-se ao rio, para que virara as costas há séculos. A dimensão triplicada, não é mais a cidade branca. Adeus feira da Malveira, viva a nova alfacinha de uma periferia distante.

Telefono a Félix Duprait, excelente fonte de informação de um certo ponto de vista. Além dos contactos normais, ouço gente de todas as frentes para colher impressões técnicas, leituras mais racionais e metodologizadas do processo de mudança e as opiniões as mais díspares, cada um na sua, como sempre, e eu como sempre sem saber qual é a minha, na de um e de outro. Não fica mal, no ofício. E assim os inquiro e os obrigo a palrar. Um jornalista e, por acaso, um olisipógrafo com raízes em Sintra, mais um arquitecto, alternando contactos com técnicos camarários dos sectores do turismo e do restauro urbano, inclusive dos bairros de barracas, e a administração da Expo 98, com sessões de estudo e excursões aos sítios, ou seja, aos pólos extremos da cidade, do extremo oeste (Doca de Pedrouços) ao leste (Expo), de norte a sul, além de Sintra e entre muros para sessões de fotos.

         O encontro é n'A Brasileira às dez da noite, entre cafés e Macieira. Sorumbático, não ri, não se digna mais sequer a esboçar os sorrisos em que era pródigo há 20 anos atrás, o que na sua biografia sedentária deve ser muito tempo. Está invariavelmente, literalmente, de trombas, aquele ar tão típico entre os lisboetas mais cépticos/cáusticos/críticos, antiacacianos.

Sentamo-nos junto aos espelhos que dão uma perspectiva orsonwellesiana e aumentam o espaço do bistrô estreito para escalas transplanetárias. Meio da noite. O café não mudou nada. Continua a lenda, mas parece-me muito mais decadente. As madeiras precisam de um polimento. Talvez porque quando fechava às onze da noite mantivesse o ar fresquinho, agora vai até às duas e tantas da manhã e, à saída do metro, local de rendez-vous nocturnos, é muito agitado. No dia seguinte ainda está com o bodum da véspera, ambiente pesado de quase bas-fond. Havia quem passasse tardes esquecidas protegido do calor tórrido a tomar bicas e a folhear um livro, revista ou jornal e a ver o fundo do funil iluminado. Os antigos bons vivants estão n'Outras paragens, só por cá passam quando o rei faz anos.

         - Isto hoje em dia, filho, anda-se cá numa bisga - comenta Chico Coelho da Mata, o olisipógrafo, que está ‘de passagem’, mas senta-se e fica. Noto como a ‘fauna’ mudou e A Brasileira deixou de ser point de encontros não-agendados.

Engato a falar de um dos meus pontos fixos de partida de análise, o das analogias possíveis com o estudo de Walter Benjamin sobre Paris no século XIX, quando segundo ele a abertura de galerias dá uma dimensão mais cosmopolita à capital francesa, que se consolida como ponto de referência internacional. Busco fazer uma espécie de jogo de espelhos para certificar-me da justeza ou não dos meus pontos de vista a quente, sob o choque. Em Lisboa, o metro dobrou de tamanho e, com a expansão das suas linhas e ramais, a proliferação de escadas rolantes e labirintos mais a explosão de centros comerciais, dá-se um salto porventura maior.

         - Mas o que é que tem a ver o Benjamin?! Deixa pra lá o Benjamin, pá! – resmungou Armando Daudet quando lhe lancei de jacto a imagem, que me ocorre porque os ‘labirintos’ do século XXI são as galerias do século XIX. As ‘passages’, para Benjamin, mudam a escala, assim como os labirintos dos túneis de acesso ao metropolitano e dos centros comerciais. E junto-lhe hipóteses de axiomas: as cabeças são as mesmas mas a escala bem maior; a escala é muito maior mas as cabeças são as mesmas lesmas; a escala é muito maior e muda as cabeças, mas não todas, não o bastante; a escala é muito maior mas não obstante as cabeças são as mesmas.

- A mudança de escala é realmente fantástica. E isso muda as cabeças, é claro – adianta-se CCM. - A escala em que se passou a pensar tudo é muito maior. Hoje Lisboa chega a Vila Franca, a Sintra, Setúbal quase. Mais dinheiro, mais gente, tás a ver, isto tornou-se um pouco mais complicado, estamos num outro universo em relação àquela Lisboa pacata que a gente conheceu. Torna-se talvez um projecto de metrópole, com virtudes e defeitos inerentes às novas dimensões. Antigamente tinha-se a cidade por sua conta. Muda a escala, muda a dimensão, e isso requer um raciocínio completamente diferente. Vá-se lá entender isto tudo. Sais daqui, entras ali no metro e sais na Expo e parece que estás num outro mundo. Hoje em dia tens o centro, Belém e aquilo lá. Três grandes pólos, e a Expo é importante em termos de equilíbrio disto tudo, para equilibrar a cidade, que antes não existia nada para aquelas bandas. É um processo muita complicado que ainda vai demorar muito tempo, porque ainda há muita coisa a fazer, isto está num processo imparável, com uma data de problemas mais ou menos novos, como o dos automóveis, que é uma loucura. Vende-se em Lisboa cinquenta mil carros por ano e onde é que se vai pôr tanto carro?

Duprait apoia os braços na sua mesa de mármore, ao lado, pernas cruzadas, olha de baixo para cima, e chuta a frase do Abecasis.

- Que era o prenúncio do político-executivo da era do esvaziamento do papel do político, de ausência de ideologia e saturação de modelos, num espectáculo de marionetes em que quem efectivamente exerce o poder não aparece ou só aparece a pular de mão em mão na forma de cheque ou cartão de crédito. Quem tudo controla é o Directório dos Grandes Países em Bruxelas e vemo-nos em pano de fundo envolvidos em esquemas e a assumir atitudes que não eram próprias da nossa índole. A cultura autóctone subsistente, subsidiada pelo governo, é a cultura da moda, a cultura digestiva. Os sucessivos governos transformaram a cultura portuguesa numa hamburgueria, dão migalhas de hamburguer aos esfomeados, promovendo um excesso de oferta desordenada que já redundou na saturação também desse modelo. Como previu o Pasolini.

A cacofonia de pratos e copos em som de fundo, o balcão quase sempre cheio de gente que vem e vai, com uma fauna totalmente diferente. Não conheço ninguém. Já não bastava o Benjamin...

         - Escritos Corsários. Curioso, acabei de relê-lo e de facto tem tudo a ver, porque como ele mesmo escrevia parte de Itália já atingira um alto índice de desenvolvimento e tudo somado aquilo lá tem uma história e uma geografia social e política muito diferente da portuguesa mas boa parte do ‘país real’ era tão arcaica como aqui.

         De 28 de Março de 1974. Reagindo a quente à hipotética tentativa de golpe de onze dias antes, escreve que, para os grandes centros capitalistas internacionais, Portugal deveria por força deixar de ser aquela sociedade severa, parcimoniosa, arcaica e entrar na roda viva do consumismo hedonista.

         Visto de hoje é como se o cineasta, romancista e poeta fosse também vidente. A 10 de Junho, ao tergiversar sobre o fascismo em Itália no pós-guerra, diz que ‘o fascismo de Spinola’ seria um fascismo ainda pior que o tradicional, mas que não seria mais precisamente fascismo. Entre os dois, Marcelo e Spínola, o pior fascista reale é Spínola porque considero pior o totalitarismo do capitalismo de consumo que o totalitarismo do velho poder. De facto, guarda caso, o totalitarismo do velho poder não conseguiu sequer ‘arranhar’ o povo português: o 1o de Maio demonstra-o. O povo festejou o mundo do trabalho – depois de quarenta anos sem o fazer – com um frescor, um entusiasmo, uma sinceridade absolutamente intactos, como se a última vez tivesse sido ontem. É de prever no entanto que cinco anos de ‘fascismo consumista’ mudarão as coisas radicalmente: começará o emburguesamento sistemático também do povo, e não haverá mais espaço nem coração para as ingénuas esperanças revolucionárias. E cita o líder radical Marco Panella: São paleofascistas; portanto, não fascistas. Talvez o escandaloso visionário só se tenha enganado na interpretação a quente do 1o de Maio, que terá sido a Marcha Triunfal do 25.

         - Pois - diz Duprait, que retoma o seu discurso:

- A perda de África teve profundas repercussões no tónus psicológico das pessoas. Nos últimos vinte anos os portugueses viveram duas grandes ilusões muito intensas. Primeiro, o 25, com as suas promessas de paraíso, felicidade para todos. Depois, a entrada na CEE e a ilusão de uma rápida subida do nível de vida. O cavaquismo abriu um novo ciclo e com o seu fim veio a grande desilusão. Hoje vivemos uma espécie de recusa da realidade, as pessoas estão a viver como que numa ficção, com um governo virtual, uma hamburgueria, futebol e telenovelas. Sangue e touros, pão e circo à farta, como sempre. Passámos da ditadura ideológica para a ditadura de mercado. A ditadura controla pelo silêncio, a democracia pelo excesso de oferta. Vive-se exclusivamente do efémero. Não interessa reflectir, aprofundar, questionar as coisas. Trocou-se a cultura de valor pela da rentabilidade de cada acção, de cada gesto, sobretudo os mais efémeros e inócuos. A cultura da moda é a mais digestiva, inócua. A cultura pimba. O Lux não passa de um desfile de moda e de modelos. Escritores não aparecem na TV. Antes era por questão ideológica, agora porque não são mediáticos.

Abre o saco, põe o açúcar no café, mexe-o com vagar com a colherinha e sorve-o.

- O axioma do momento é, isto sim: aos 30, sucesso, aos 40, dinheiro e aos 50, ataque cardíaco – retoma a passada. - A distância Portugal-Europa é em muitos aspectos abissal, e a Grécia já nos voltou a ultrapassar em índices de produção e desenvolvimento. A população alimenta-se pior hoje, com o junk food. O actual modelo transformou Portugal numa hamburgueria. Em vez da essência, a espuma. O futebol não ganha nada há não sei quantos anos e a literatura produziu ao menos um Prémio Nobel, mas na televisão só se ouve falar de bola. Com a sua política de subsídios, o governo dá migalhas - de hamburguer... - aos esfomeados. Guterres ao menos passa às pessoas uma imagem mais tranquila que a do febrilismo alpinista do consulado do financista Cavaco Silva, a nossa Margareth Thatcher, que dividia para reinar e gerava um clima de tensão e instabilidade permanente, e o que as pessoas mais anseiam é por estabilidade, não aguentam mais tantos problemas, porque este modelo aprofundou o fosso que separa os endinheirados dos excluídos.

- E quem houvera de pensar, há dois dias o Benfica perdeu de sete-secos para o Celta de Vigo. CABAZADA HISTÓRICA. Os jornais de que vejo os títulos maiores de primeira página são de ‘grande informação’, mas parece que nada de mais importante acontece no país. Títulos e chamadas de primeira página falam de ‘comoção nacional’ pela maior goleada sofrida pelo ‘glorioso’ na sua história, que repercute como uma verdadeira hecatombe, quanto exagero. O tempo passa, o mundo gira, tudo muda tanto e todavia nada muda. Ou pior, porque hoje o futebol é dominado pelo FC Porto de Jardel, o imbatível cabeceador de um onze de uma só jogada: acertar na sua cabeça para ele rematar, e o ‘glorioso’, além de subalterno, presta-se a humilhações de que não há memória, algo impensável nos sinistros tempos da outra senhora. Mas também se então até os encarnados andassem a levar assim de sete-secos de um obscuro Celta, porque quem não era do Benfica não era bom chefe de família, mais cedo o regime teria caído. Antes eu até estranhava a falta de debate-bolas televisivos como em Itália e no Brasil, onde é da tradição exagerar-se na matéria, e hoje aqui já se foi longe demais, como em mais um sinal de que se por um lado fica bem estar-se numa de low profile, por outro, em termos mediáticos, o tom é over, porque se não, não pega. Cabazada histérica.

Mando uma talagada de Macieira de arrepiar mas também não perco o pedal:

- Agora, diz-me cá uma coisa. Na saúde, a ‘presidência aberta’ do Sampaio em ronda por hospitais do Centro-Norte comprovou que, como antes, quem pode vai ao médico particular e quem não pode sujeita-se ao mau serviço público. As estatísticas mostram que Portugal tem o pior nível de formação da UE. Um economista fala no ‘desgoverno das instituições portuguesas, nomeadamente nos domínios da justiça, saúde, ensino, administração pública central e local e empresas públicas’ – falta o quê, já que outro fala também do descontrolo da segurança social? E como se explica um desemprego de quatro por cento quando a média europeia é de onze?

        - Porque o sector agrícola não entra nas contas do desemprego, como os subempregados dos contratos a prazo, dos antigos recibos verdes. Agostinho da Silva dizia que no futuro haveria três novas minorias: desempregados, deslocados e aposentados que, no conjunto, assumem a maioria. Hoje a questão põe-se em termos de saber o que é preciso dar às pessoas, mais polícia ou solidariedade. 

         O olisipógrafo acaba de publicar mais um ensaio de estalo. Sabe-a toda em matéria de Lisboa e Sintra - e quiçá de Portugal, embora não o assuma. Assume sim com indisfarçado orgulho os seus conhecimentos sobre Olísipo, a mítica urbe que talvez não tenha mudado tanto quanto as aparências. Segundo ele, a circular radial interna (CRIL) e a radial externa (CREL) – as circunbalações lisboetas – são uma espécie de novas cercas de uma realidade ainda em gestação, e ainda é cedo para ensaiar qualquer tipo de balanço, mas a experiência diz-nos ser sempre bom tentar perceber a quente a história que se está a viver.

- É óbvio que isso não implica necessariamente numa melhoria de qualidade, porventura melhora, porventura piora, não dá para prever agora. Há com certeza uma mudança de estilo, e para já é quanto basta. O limpa-chaminés, Aniki Bobó, o fadista tipo Vasco Santana n’A Canção de Lisboa, o mangas do António Silva n’O Leão da Estrela, o leiteiro de porta em porta ficaram lá devidamente documentados no celulóide. Pode-se discutir se o que se faz ou apresenta é bom ou não, mas não se pode fechar os olhos ao que isso representa em termos de mudança. Agora mesmo estavam previstas duas apresentações de Carmina Burana, mas foram três, com um total de 35 mil pessoas a assistir, com bilhetes a quatro, cinco contos, no Pavilhão Atlântico, onde cabem 16 000 espectadores. O mercado alterou-se. Antigamente ia ser no Coliseu, e olhe lá. De qualquer modo, é uma diferença abissal em relação ao passado. Agora, concordo em que há de durar ainda algum tempo até haver maior qualidade... porque as pessoas não têm referências. Isto vai aos poucos. O que é certo é que a pequena clique de antes já era.

- E Sintra e esse novo museu do magnata Joe Berardo, que segundo as más línguas compra obras de arte para lavar dinheiro?

- Sabes como é, aqui há ódio ao dinheiro e inveja de quem o tem. Quem tem dinheiro tem de forçosamente ser sujo; o português é muita desconfiado em relação ao dinheiro – rebate, a demonstrar como a sua cabeça está bem mais longe do outro do que parece, ao vê-lo quase abraçado a Duprait.

- Sintra tem de dar o salto, saber explorar o potencial com grande qualidade, não prosseguir nessa loucura, que já está toda cercada de loteamentos e hipermercados.

- Não sei se foi só da estação ou o que seja, mas quando fui lá notei que já não é como dantes, quando se chegava à Portela e sentia-se uma súbita mudança de ares.

         - Ó filho, sente-se até falta d’ar! Aos domingos nem saio de casa. O Algueirão já está a pegar por trás, já dá a volta pelo vale todo, já tá tudo ligado até Pero Pinheiro e Mafra. Qualquer dia vai-se de Lisboa a Mafra e é só cimento. Tá tudo pegado de Lisboa a Sintra.

 

 

 

Antonioni. Incomunicado. O vazio sobre a mesa. Mas pera lá. Sou íntimo como o caraças da cidade, apesar desse ar, desse cheiro, desse sabor de distância. Por dá cá aquela palha sou capaz de reconhecer cada antiga falha nas pedras do emblema das caravelas na calçada da estátua dos Restauradores, cada antiga falha remendada há lustros.

Saramago diz que as mudanças urbanísticas de Lisboa dariam um filme.

Sim. Mudo.

Após 40 e mais uns quantos anos antes de isolamento/breu passa pelo vendaval e entre a mesmice restaurada/reinstaurada/renovada muitos escombros/detritos da folia e muita novidade para dar no mesmo: pimba!

Esta terra não é para encontrar ninguém... Esta terra é feita de pessoas que partiram, de gente que foi para o mar. É um lugar perfeito para desaparecer, perder alguém ou perder-se, sussurra-me ao ouvido Alex de Terra Estrangeira.

Em mais uma sessão de fotos refaço percurso seminal às segundas-feiras, quando ao pessoal do Cinéfilo, após reunião da redacção, juntavam-se os colaboradores na fabulosa tasca da cinematográfica Rua da Academia de Ciências, que vejo agora deu lugar a mais um restaurante delux, para um nababesco bacalhau cozido com todos e tintol da casa.

       O vento traz nuvens escuras carregadas de chuva que cai com abundância em aguaceiros esporádicos. Atravesso o B. Alto até São Pedro de Alcântara, em cujo miradouro tento bons flashes da batidíssima panorâmica do castelo. Chove de novo. Refugio-me debaixo de uma árvore e quando ela passa vou até à descida a sul para o jardim de baixo, há tanto tempo abandonado. Enquadro o castelo. Uma mancha entra em campo e quando percebo que é uma gaivota a esvoaçar no imenso céu nublado sobre o castelo já é tarde para disparar. Imerso na operação, nem dou conta da entrada na banda sonora de um som estranho que, pela persistência, obriga-me a sintonizá-lo e sentir tratar-se de metal raspado numa pedra, olho e vejo abaixo de mim um mânfio dos seus 30 anos com ar de quem acabou de acordar de uma noite mal dormida e barba de uma semana, curvado, a afiar uma naifa num degrau e a olhar-me como um lobo mau para os três pastorinhos. Congelo, máquina alçada por altura do pescoço, e devo estampar uma expressão de pânico - João Bafodeonça!!! -, porque o modié diz em meio tom:

      - Não tenhas medo que não vou fazer-te nenhum mal.

     Não me passa pela cabeça ponderar para aferir o seu grau de sinceridade. Dou meia volta e raspo-me em passo apressado rumo ao Elevador da Glória, enquanto o homem grita:

      - Anda cá, não vou te fazer mal! - e põe-se a correr atrás de mim.

     O tempo está mesmo de feição para uma corrida. Vem a dez passos de mim e não há ninguém por perto. Chego ao alto da ladeira e vejo um elevador parado. Corro até ele, entro, tiro o dinheiro do bolso, pago e vejo o tipo a galar-me do alto das escadas com a mão que segurava a naifa no bolso das calças. Safei-me por um triz. Em mais de dez anos, antes, só fui vítima de um assalto rocambolesco a bem dizer entre amigos, o gajo pensou que eu era um turista (e não o sou?), escapei de um bis ou...

A luz às vezes ténue, às vezes resplandecente dourada, azul e branca torna-se um flash ofuscante em que no branco quase estourado do sol de Inverno a lâmina da naifa faísca como na cena crucial d’O Estrangeiro. Pierrot-Belmondo-Le Fou aponta a arma para a câmara e faz Pow! Olhando para a câmara, aponta o cano para a cabeça e faz Puff... O junkie espeta a naifa. Dou um giro e vejo lá embaixo no alto do meu écran a rua dos Condes. Rápido fade out. Silêncio. Fim do mangas que pilotou o cargueiro da existência barra adentro para um destino inglório em S.P. d’Alcântara ou fim da fita.

Um outro aumento de escala, o da violência, em vista da propagação do uso da heroa, que já levou Muriel e muda o perfil da criminalidade numa cidade até há pouco quase sem violência. O delfim de Salazar, que na verdade não o era, mas um tubarão de dentes afiados, tinha razão, haveriam de pensar os caretas se se lembrassem da sua última conversa em família, quando já devia estar a antever a queda da cadeira, a 29 de março de 1974: À medida que se vai implantando a convicção de que esta vida são dois dias, dos quais importa tirar o máximo de prazer sem fazer esforço, desfazem-se as famílias, desmoronam-se os exércitos e ruem os Estados.

         Notei no mangas uma ponta de sotaque brasileiro. Deve ser um sem brilhantes que não se deu bem e caiu de borco no vício.

  

 

 

 

Com e por consequência de muita gente não se fala porque em primeiro lugar não há tempo nem disponibilidade. Depois porque não lhes sei do paradeiro e ainda sou do tempo em que, mesmo sem procurar, mais noite menos noite sempre se acabava por encontrar toda a gente e mais alguma numa das poucas baiúcas frequentadas pelo tout Lisbonne. Com alguns os últimos encontros não foram lá muito agradáveis e não é hora de pôr nada em pratos limpos. E há os de que ‘não se recomenda’ o reencontro, porque não está nada bem.

         Um porém torna-se imprescindível, já se sabe por quem é que será sessão nostalgia, quantas vezes um Prof. Unrat decadente a mais não poder, o fígado destruído por tanto álcool, mas a mim nunca me faltou ao respeito, ou seja, nunca chegou a perpretar streakings em locais públicos em que a dado ponto da trajectória mal sucedida – como a de um tal Luís Pacheco, por exemplo, o mesmo é dizer de todos os beats lisboetas - passou a prodigalizar-se.

 

 

JCP ao telefone:

- Ôôôô!... Edinho! De onde é que apareces? De onde é que desencantas? Estás cá, em Lisboa?! - como se falasse com alguém vindo de outro mundo - e que vem de outro mundo, não há dúvida.

Mas quem sempre esteve noutro mundo, un soir, un train, é ele.

- E porque não, ‘como antigamente’- e bota aspas e antigamente nisso - British Bar? Importas-te de irmos a lugar de priscas eras ou fazes questão de novidade?

        Imperiais brancas, pretas, mistas, guiness, uma salada dos diachos, como antigamente... Sande de chouriço, o mesmo ambiente austero de pub lúgubre e envelhecido – vais a ver e sai daqui a vituperar contra a nova ordem com insultos do mau humor pós-PREC e as mesmas injúrias de sempre.

         Mas a abrir pergunta por Jimi Sawyer.

         - O que é feito daquele maluco? Morreu ou quê?

         - Quê. Está vivíssimo e bem. Continuamos na velha camaradagem e sempre a tentar e a não conseguir trabalhar juntos, por falta de oportunidade. Ele na verdade nunca chegou a engrenar. Por sorte tem uns trocados e casa herdada da família. Teve até um período em que foi actor, pouco depois de voltar naquela viagem maluca com o Caio Monicelli. Trabalhou como figurante e em papéis secundários em várias encenações. Uma delas, em São Paulo, é curioso, com um gajo doidésimo que conheci aqui em Lisboa e reencontrei em Paris em 78. Olha que coisa curiosa. Nunca pensei que Buru voltasse ao Brasil tão cedo... E muito menos que, ao voltar, conheceria e trabalharia com Jimi. A história é muito louca...

         - ... o que achas de homenagearmos agora aqueles velhos tempos com ele aqui e pedirmos umas gingerbeers para refrescar?

         - Pois bem, vamos nessa. Mas deixa-me contar-te essa história. Estou em Paris em 78 e em contacto com o Saci, um grupo de músicos negros brasileiros que esteve uma temporada aqui pouco antes. Buru morava perto da Place d’Italie com uma francesa, uma fotógrafa branca mais velha e nada atraente, mas muito simpática por sinal. Dizia-se que casara com ela só por causa da carte de séjour. Doidão. Com ele, fumava-se muito e bebia-se o chamado vin du clochard. Com ele, e graças à chave de interpretação de Ivan, de quem mal sabia ainda de eventuais problemas em relação ao facto de ser mulato, é que vim finalmente a ter noção de racismo de preto em relação a brancos e mulatos, em que confesso nunca ter pensado antes. Uma noite o marado do Ivan estava lá e fomos à casa do Buru para ver de um colega dele com quem fiz amizade, que não estava. Fumámos e bebemos e saímos com o Buru, já para lá de Timbuctu, negro e feio como a fera, até à praça de Mouffetard, onde todos se encontravam – inclusive o Bonga. Eu sem carte de séjour nem o que me valesse, além do passaporte com o visto vencido. Ivan, ok, tinha chegado há pouco tempo. Buru? Não sabia ainda da história. Vê só. Eu bronzeadão e de bigode, com pinta de árabe. Ivan, mulato... e Buru. Ao chegar ao sixième, dois fliques interpelam-nos:  - M’ssieurs, vos documents, s’il vous plaît? Gelei. Vou ser recambiado, pensei, sempre com o velho dilema: para onde? Pro Brasil?! Porra, ainda em ditadura, tás a ver? Aí, quê? Buru resolve radicalizar. - Nos documents? Vous voulez nos documents?! On commence allors par les miens. Voilà mes documents! E trata de sacar da barguilha a tralha dele. Os flics, de sisudos e autoritários, ficam embaraçadíssimos. Embatucam. Mãos nas costas, não sabem como reagir. Eu naquela: daqui pra choldra e de lá extraditado... pro Brasil, onde nem sequer tinha domicílio mas, quem sabe, um destino seguro, porque não tenho dúvidas de que tinha fichinha política lá, uma prisão militar ou algo que o valha. A cara do chanfrado parecia uma máscara do carnaval de Veneza en noir, a rir que nem um desalmado. Aí, trata de pôr os documentos para dentro das calças, põe uma cara séria e saca a carte do gibão. Foi quando soube que estava forrado. Ó, nem sei como os dois gendarmes deixaram-nos ir embora. Acto seguinte, estou em Lisboa a folhear um jornal brasileiro e, para grande surpresa, vejo que Jimi Sawyer está a trabalhar numa nova montagem em São Paulo de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, com quem? com quem? – Marcelino Buru. Como é que ele voltou tão cedo? Por quê? Anos depois, soube da história. Buru teria morto a mulher nem sei como, nem se sabe como conseguiu ilibar-se da acusação e ao voltar ao Brasil consegue um papel em... Navalha na Carne! Quel loucure, hein? E tu?

         - Ó, filho... A descar... Um cabide. Sempre fui e continuo a ser vítima da pequenez do meio... Fizeste tu bem em abrir? Faço eu melhor em ficar? Mas também para onde haveria de ir? Tu vieste de outras bandas, tens outras bandas para onde ir. Pouca diferença... Em resumo, desco a metro...

- ... a centímetros...

- ... a centímetros, sim, tens razão. Até porque sou o chefe e faço pouco, como no fundo convém. Quanto menos mexeres na merda melhor.

Apoia-se em mim para atravessar a Rua do Alecrim - não por... necessidade. Difícil, tantos anos passados, galgar com ele a do Alecrim e a da Misericórdia até ao Primavera, como antigamente. E, como antigamente, as belas lulas recheadas com arroz de açafrão e mais uma e meia de tintol Du Bon.

Trip nostalgia aos anos 70, no estilo, nos tiques e na linguagem. Uma colagem de outros tempos. Fala-se às tantas do Bairro Alto. Bairro Alto e seus amores tão desiguais... Meu Deus, o que mudou, exclama João Carlos, a pôr as mechas de cabelo sem um fio de cabelo branco perceptível sobre a testa com os dedos em ancinho e a olhar em contreplongé com um riso satânico nos lábios, e como se pusesse uma cassete dos anos 70 desata a delirar:

- É um labirinto. É importante não perder o fio à meada. Percorrer ruas e vielas, às tantas é tudo igual, entrar nas múltiplas tabernas, ouvir o fado vadio, correr os pequenos restaurantes - e o que dizer do magnífico escabeche da antiga casa Jerónimo, a Primavera, de algumas videntes conhecedoras do tarot..., do Manel, dos almoços dos dois simpáticos irmãos da Trave, na Ruas das Gáveas, da Isabel do Alfaia, da Travessa dos Fiéis de Deus, da Travessa da Espera, dos tipógrafos do Século a pagar os copos...

- ... e do Cunhal das Bolas!

Olha-me de lado como que para me repreender, mas reabre o sorriso.

        - Do Cunhal das Bolas, por que não? O que eu mais apreciava era o fado vadio, repentista, surgindo numa ou noutra taberna, em fins de tarde de fins de semana. A Mascote, da Rua da Atalaia, uma taberna vulgar, com óptimo vinhinho branco, foi uma das primeiras a desaparecer. Era quase uma escola, ia a dizer catedral, onde velhos fadistas amadores, escorropichado o copinho, aclarando o pigarro da garganta, soltavam as quadras, as estrofes, o verso quase livre, do fado social, tipo Não entres na Igreja, ó cavador. Ou Há um crime monstruoso/ De que o operário é culpado/ Forjar canhões assassinos/ Roubando o aço ao arado. Era o fado do velho - heróico - tempo do anarco-sindicalismo, o fado social. Lágrimas escorrem pelos rostos curtidos, uma nova rodada de branco é paga por alguém, à porta juntavam-se passantes, calados, boina na mão, rugas profundas na testa. Morreu a Mascote, morreu... Morreu tudo! Tudinho.

- Tenho estado a magicar sobre aquela ideia de Lisboa Dans la Ville Blanche. Lisboa, cidade branca e pacata. O melhor dela ainda estava só, como sempre, nas tascas e nos bairros típicos, como também Wenders a filmou vista da Rua de São Paulo, frente ao arco da do Alecrim, recanto de uma beleza sinistra quando o eléctrico do século XIX passa à noite em preto e branco.

        - Gostava também de ir ouvir fado vadio ali ao lado, ao Cantinho do Rosmaninho, duas portas a seguir ao 90 da Barroca, mas também fechou... Ninguém vai sair daqui vivo, não fica ninguém para contar a história. Pouco a pouco, na cabeça de um, na cabeça do outro, ela se apaga. E a escrita, de que vale, para que serve? Queimem-se os livros! Megabaites, não há lá nada disto!... Lembras-te do Cabeça de Vaca?

- Claro que sim, quem houvera de esquecer! Diz que um dia, sem dinheiro para os copos, pôs no prego o céu da boca de platina da mulher, filha do Almada...

- ... o filho da puta. Incrível é como aguentou tanto, o sacana... Não houve outro mais boémio, quer-se dizer, mais assíduo frequentador dos antros mais ordinários desta choldra de que te pisgaste, meu malandro. Não falhei essa. Estava lá, já muito torto, quando ele finalmente deu de frosque. Muita bêbado! Morreu afogado em terra firme, não pra ele, é bom de ver, grande marinheiro do Triângulo das Bermudas e adjacências. E agora, apetece-te ir pras lides ou quê?

- Quê.

        - Então, vamos até minha casa. Tenho um uisquito do bom e um haxe do cão, se nos apetecer mais tarde vamos até ao Snob, que ainda é frequentável, apesar de a fauna ser quase sempre a mesma. Uma musiquinha...

- ... e aquela vista do Tejo!

        Camarotes de sonho, esses apartamentos avarandados que o pessoal tem estado a ocupar com vista para o rio – e o transmontano JCP foi um dos pioneiros. Vista daqui, a Lisboa antiga e o Mar da Palha, apesar do aberrante estaleiro, parecem imutáveis.

        Lá se vai em flashback até a última noitada memorável a dois: a passagem de ano 79-80. A velha ocarina - ô, garina, brincava eu - e cónica extravagante e o que pensa ele disso e disto tudo?... Bebe-se e fuma-se um e baixa-se ao Snob, cheio de jornalistas e comparsas, como há 20 anos, onde tomamos uma cervejinha ao balcão ao lado do Arnaldo – que por incrível que pareça mantém a mesma relação distanciada com todos, como se não fossem já irmãos, uma vida juntos.

 

Senhoras e senhores, podem entrar. Pouco barulho, ó meninos! A escrita é uma tauromaquia. Bom proveito, ó mangas. Olá minha amiga Sindbad! Meu Largo da Princesa, quantas histórias! É um ver se te avias! Uma cegada das antigas... – exclama já quase em delirium tremens mas manso, tão familiar, daqueles que a mim nunca inspiraram percalços.

          A ocarina que trouxe da Guiné - sempre prezou muito a memória e, por isso, era muito ligado aos mais curiosos objectos colectados aqui e ali nas suas andanças, hoje deve necessitar ainda mais dela e deles - ainda está sobre a mesa de centro, onde como sempre repousam em pilha quatro ou cinco livros de um lado, o cinzeiro ao centro, noto que o livro de cima chama-se O Sorriso de Uma Gueixa, o que me ateia curiosidade, mas com a evolução da conversa e dos acontecimentos esqueço-me de perguntar de que se trata e de ver o nome do autor. Aqui o tempo não passou, tudo a saber a passado. E vá, esporra-te na página, de passagem para a casa de banho pego um livro seu numa das estantes que cobrem todas as paredes do quarto-sala, o T1 à antiga, e a pedidos damos um pouco de ordem a uma pequena desarrumação de um possível desatino da véspera.

Só faltava, no delírio, despir-se e sair em disparate Príncipe Real e Academia de Ciências fora nu em pêlo, em streaking, como em 1976! Que fígado, però!... A cara bastante mais enrugada, pudera. Mas na cabeça, que exibe-me orgulhoso, baixando-a para a ver melhor, só um pouco de fios de cabelo brancos nas raízes das longas madeixas castanho-escuras e nem se diria que há séculos, noite após noite, está a perder partes de fígado. Mas no que dele resta o álcool deve transformar-se em formol. 

 

 

 

 

Sais daqui, entras ali no metro e certificas-te que a mudança de escala mede-se também pelos quilómetros de túneis de ligação de uma linha de metro a outra onde pode-se comprar de tudo. Olaias. Aqui deixaram os tubos. À pós-moderna. Outra longa galeria, de escada rolante até o explosivo sol de inverno e - sais na Expo e parece que estás num outro mundo – deparas-te com mais uma construção futurista, o choque do presente com tudo o que há do bom e do melhor no tão propalado Centro Comercial Vasco da Gama, Oriente mais ocidental ou Xangai pós-moderna.

Rebobino até o trimodal para conhecer a estação de Santiago Calatrava, que segundo os panfletos e o que vejo tem a leveza de filigrana mas que o arquitecto Nuno Portas desancou fazendo gargalhar o Teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro lotado de estudantes de arquitectura para ouvi-lo palestrar, definindo-a como uma ‘catedral gótica feita alegadamente em homenagem ao nosso famoso estilo manuelino mas que no caso poderia chamar-se de manuelinho’.

        Ainda bem que com tanto chão a palmilhar levam-me em travelling de carrinho a ver as maravilhas do Parque das Nações. O novo bairro, hoje: três mil habitantes, cinco mil trabalhadores. Em 2008, 25 mil habitantes, 18 mil trabalhadores. Um salto num presente estupefaciente projectado num futuro indivisável, com um pano de fundo de brado, a Ponte Vasco da Gama. Lisboa no mesmo embalo de Berlim e Barcelona.

Quanto custa produzir e realizar um filme? – tema de Le Mépris, de Godard, que filma Fritz Lang no maior oceanário do mundo. Fecho as contas e começo a coser as notas a quente, que é como melhor se transmite dados e sensações, a partir de mais este amplo espaço da solidão moderna em que me vejo num filme de Tati dirigido por Wim Wenders a acentuar-lhe o toque de Metrópolis com um close no próprio Lang a passear no teleférico. O Oceanário tanto pode lembrar o Beaubourg de Paris como uma torre de prospecção marítima de petróleo. Siza Vieira plantou quase ao lado uma enorme casa mediterrânea pós-moderna. A torre é uma vela de barco em ferro. Tudo a ver com o Mar da Palha. E em perfeita harmonia, apesar da disparidade de estilos. Que não se chocam porque houve muito chão virgem para estendê-los e sem contestação por questões de forma ou proporção, ao passo que por exemplo o Centro Pompidou, no coração de Paris, levantou muita poeira com a destruição dos Halles e a celeuma, assim como muitos torcem o nariz para o Centro Cultural de Belém porque esmagou o Mosteiro dos Jerónimos na Praça do Império, ainda que tendo-a brindado com mais um dos jardins suspensos em que a cidade é pródiga.

 

Ninguém critica abertamente a realização da Expo e a montagem do cenário que deu à cidade uma Disneylândia do showbiz (incluindo o da ciência) a Oriente, nem quando o assunto cai no suposto saco sem fundo dos investimentos. O alfacinha ainda não perdeu traços fortes tradicionais do seu carácter, como a dar uma de conselheiro Acácio ao falar do mar de corrupção que os megaeventos terão gerado, segundo algumas denúncias: uma mão lava a outra, o que importa é que todos ganham com isso. A política já não mora mais no Chiado e já não há cá tempo nem espaço para tertúlias. Mas não falta quem proteste contra a ‘farsa’ e a ‘ilusão’ da entrada em catadupa dos subsídios comunitários a fundo perdido.

- Lentos como somos, não fosse a Expo não teríamos feito as obras que fizemos em tão pouco tempo - contrapõe uma artista plástica da geração do imediato pós-guerra numa Trindade com mesa e serviço também repaginados, onde já não se serve mais cerveja em copo d’água mas em tulipa, a propósito do impulso à modernização dado pela organização de megaeventos.

O país ainda não debelou graves anomalias nas áreas da educação, saúde e emprego, que apesar do que dizem os governos continua em falta ou é temporário, consumo de álcool e mortes nas estradas. Mas o que q’rias? Tamos na zona do euro, ora o tanas, ora e vez lá se preside a UE por seis meses, já cá temos um Prémio Nobel de literatura  e - hélas! – somos a sede do Euro 2004, o que quer dizer mais obras! Que não não nos faltem heróis e megaeventos!...

Expo, CCB, estradas e a imensa infraestrutura montada à volta da cidade, como o metro de superfície que liga a Praça de Espanha ao Barreiro, são cenários de uma superprodução de meios e modus vivendi aviada a toque-de-caixa graças aos créditos comunitários a fundo perdido para que uma vez por todas Lisboa assuma, se não de todo a identidade, ao menos um porte mais europeu, o que na certa trará mudanças. A longuíssimo prazo, talvez, como o pagamento de certas dívidas.

 

         Manifestações de mal-estar só são gritantes nos engarrafamentos:

- Essas obras nunca mais acabam, estamos há mais de dez anos em obras, gaita!

Nenhuma cidade europeia, com excepção de Berlim, mudou tanto em tão pouco tempo - mas Berlim não se americanizou como as colinas de Lisboa atrás do Tejo, que mudaram o ritmo de vida e a cara da antiga periferia da cidade. Lisboa é de novo - pela primeira vez desde a era dos Descobrimentos - uma coqueluche europeia. A presença na cidade de milhares de funcionários de organismos da União Europeia e de empresas privadas estrangeiras ampliou a demanda de bens de consumo. Luxo e opulência são ostentados sem pruridos, como nos tempos do beato rei D. João V. Torna-se ainda mais insensato, visto à distância de 25 anos, o plano de alguns líderes da Revolução dos Cravos de manter o país de costas para a Europa e aproximá-lo dos novos países africanos de língua portuguesa e do Brasil, num remake do triângulo do mar. Lisboa talvez fosse hoje uma África incrustrada no velho continente. Não a metrópole que pretende ombrear, em atracções históricas e paisagísticas mas também em parques de diversões, centros comerciais, megastores, estacionamentos subterrâneos, transportes e viadutos, com as mais agitadas cidades da Europa.

 

Lisboa é, como nunca antes, uma capital de contrastes, mosaico de justaposições do antigo e do moderno, em diálogo permanente com o passado e antenada no futuro. É também mais um pedaço do melting pot racial em que toda a Europa a contragosto se transforma.

 Afonso ou o melting pot

 

        Acabado o trabalhinho, Afonso dá uns giros e sempre volta a casa com um ‘trofeu’. Entre as garinas de um mês particularmente agitado, a única mais certa é uma filha de emigrantes que fala um português forrrtemente afrrrancesado, uma nova categoria de portugueses, na que finalmente transformou-se num melting pot, gente de quase todas as origens ou pontos extremos de referência. 

Indianos, africanos do leste e do oeste, caboverdianos & guineenses, macaenses. Cá não falta nada. Findo o ciclo da emigração, é a vez dos ingleses, franceses, suíços, luxemburgueses e alemães, milhares de investidores e agentes comunitários, mais a catadupa de brasileiros, oriundos ou nados, brasileiras e brasileiros de todas as origens com dinheiro para comprar o bilhete de avião. Literalmente, gente de todo o mundo, até os japoneses do sushi, sashimi e tempura.

Um filho de alemão emigrante será sempre um alemão. Forçosamente, tendo crescido nas estranjas, com uma outra índole, apesar de pejado de referências do passado o mais das vezes chulo do antigo modo de ser português. O Portugal e o português portuguesmente do Lusitânia Expresso estão condenados a desaparecer numa década, quando a mola propulsora do 25 atingirá fatalmente o seu ponto máximo desde o big bang de uma madrugada insone, há trinta anos. Por enquanto, isto se traduz num universo de quantas pessoas sob outras influências? Um quarto, daqui a nada metade da população?

Para quem vem de fora, há muito tempo é um choque. Carlos da Maia e Basílio ficariam banzados.

     As ruas cheias de gente de todas as cores, como nunca antes, porque os macaenses eram poucos ou nenhuns e havia muito menos monhés e há 30 anos os negros das colónias sequer eram cidadãos de segunda e não viajavam nem por atractivo exótico, a não ser o Duo Ouro Negro, sempre todas as semanas nas duas, três sessões de Variedades que a RTP exibia como verbo de encher – na época em que nem havia opção de segundo canal e não restava outra hipótese se não ver ou desligar e ligar a telefonia ou a aparelhagem e fazer a uma festa íntima, porque as ruas eram um deserto.

     Fecha-se aqui também um ciclo. No século XIX, com o fim da escravidão negra, a mestiçada reduziu-se à de antes das primeiras excursões a África, ou quase: tipos com ar nórdico de celtas, alanos e visigodos, sobretudo a norte, e mais mouriscos, sarracenos, mauritanos a sul, meio ciganos – do tempo das espanholas – dos pueblos de Andaluzia e, para variar, negros e mulatada caboverdiana no Poço dos Negros.

Os caboverdianos são em maior número dos que já trabalhavam nas obras no início dos anos 70, sempre a trabalhar nas obras, agora com um contingente de mulheres que fazem o trabalho de preto, árabe ou filipino em toda a Europa, o de mulher a dias, muito mais bem remunerado que até há poucos anos. Sedimentou-se por outro lado a legião de retornados e, com a miscigenação, aumentou o número de mulatos, voltando a cidade, no conjunto, a apresentar um aspecto mais parecido com o que teve a partir do século XV, quando começaram a chegar os pretos da Guiné. Mais o gangstarap à la Maianga de que se ouviu falar mas desconhece-se.

        O Brasil é um caso à parte. O flagelo em que se transformaram as novelas e a profusão de música pimba brazuca irradiada pelas rádios, acrescido de uma legião de alpinistas da quase extinta classe média baixa brasileira, muitos com duplo passaporte, filhos de ‘brasileiros’, mais a sua petulância e maus modos e costumes, nomeadamente em ambientes de trabalho, provocou rejeição visceral junto às categorias mais esclarecidas.

- Odeio brasileiros! - costuma esbravejar uma executiva de um dos nóveis canais de TV privados, que não é propriamente uma intelectual. Entre os intelectuais continua a não haver nenhum preconceito, embora como qualquer pessoa culta não aguentem mais a tal de cultura de massas brasileira, que invadiu a sua própria privacidade. Sabem como tudo pode ser apenas parte de um todo. Mas vez ou outra não se deixa de ouvir a tacada: Vêem esses gajos do Brasil... Lá vem esse gajo do Brasil... Compreende-se.

É ponto assente, como reza um dos cartapácios que consulto, que ‘a modernização da sociedade portuguesa foi profunda e foi sobretudo muito rápida a aproximação aos padrões de vida e aos modelos de organização social das sociedades europeias’, mas o ‘lobo ibérico’ continua aí ao lado a fazer sombra – e como, já porta dentro. Como se já cá não bastassem os brasileiros... António Sousa Franco, que acaba de se demitir do Ministério das Finanças rosa, alerta para o perigo da presença dominante da economia espanhola no país se não houver uma estratégia nacional. A invasão espanhola incomoda ainda mais porque de lá nunca veio bom casamento. E dá-lhe de novo com Ega: ‘Portugal não necessita de reformas, o que precisa é a invasão espanhola.’

Ninguém sorri na praça de Montparnasse e tão pouco aqui. À primeira vista a cidade, ocidentalizando-se, ou seja, americanizando-se (e não parisiando-se, por exemplo), perdeu os sinais mais evidentes de subdesenvolvimento e ostracismo. Madrid está agora a seis horas de carro, o que não leva muitos mais portugas lá, e sim o contrário, porque os espanhois mais a Ocidente estão a apenas duas horas de Lisboa.

- Eu cá já nem vou mais ao Chiado aos fins de semana, já não posso nem ouvir falar espanhol - lamuria-se Frida no nosso reencontro.

 

 

 

 

Quase atlântica, sendo o rio que a banha uma espécie de braço do mar, a ‘velha cidade’ remoçou, está mais limpa, ordenada e bem iluminada, enquanto o próprio caos no tráfego mostra estar também perfeitamente adaptada ao sonho/pesadelo europeu de prosperidade económica e... entupimento urbano.

         Obras em andamento, a metamorfose lisboeta é um processo em curso... a longo andar. Pouco ou nada já tem a ver com os tempos da pacata, provinciana e austera capital da pax salazarista, cujas figuras mais populares eram o fadista e a varina mais os seus trinados e pregões, que emudeceram para sempre. Ouve-se quando muito agora uma cantilena com tons mouriscos na boca de vendedoras ambulantes. Ao ingressar na Europa, os lisboetas aceleraram o ritmo de vida e pela primeira vez locupletam-se no consumo. O crédito é barato e abundante e Portugal, que era um dos países com maior índice de poupança, hoje é uma nação de endividados.

         A entrada na UE é o Plano Marshall português a operar um suposto milagre. Toda a sociedade vive um acelerado processo de mudanças. Fez-se aqui em duas décadas o que outros países fizeram em quatro ou cinco, atesta um dos economistas em disparada. Lisboa é agora uma cidade de porte médio, buliçosa, engarrafada e stressada. Mas ainda é possível tomar calmamente um café no Nicola, point de Bocage e Eça de Queirós, subir o Chiado como um personagem de A Capital, sentar-se no café A Brasileira e imaginar que a estátua de Fernando Pessoa, que os turistas afagam como um velho conhecido, tome vida e ele desate a escrever versos à Casa Havaneza, atrás da sua mesa de terraço.

         O restauro do Chiado após o incêndio que destruiu-lhe os quarteirões centrais em 1988 chega ao fim com a reinauguração dos Grandes Armazéns do Chiado, antes uma loja de departamentos sem nenhum atractivo, hoje mais um centro comercial a que não faltam grandes marcas. Tudo muda. Nada muda. Lisboetas choraram ao ver o velho Chiado das páginas de Eça e das suas vidas em chamas. No balanço do sinistro, o facto mais lamentável talvez seja o desaparecimento da Pastelaria Ferrari, cujos pães de leite, doces e milk shakes deixaram saudades.

 

Afonso chega às onze da manhã a chorar baba&ranho, desta vez não é a Praça de Londres ou de Espanha, numa nova explosão revolucionária, mas o Chiado que está a arder. Só assim entendo a ligação carnal a uma cidade de quem nasceu na Maternidade Alfredo da Costa.

O apelo da terra. Nunca me senti como Glauber Rocha auto-exilado compulsório, que depois de fumar um d'Angola no seu quarto do Hospital da CUF gritava: - Eu sou um tigre enjaulado! Ou Miguel Arraes, o ex-e-futuro governador, coronel, oligarca, hierarca de esquerda de Pernambuco, que os mentideros dizem ter chorado sobre a feijoada na sua casa de exílio forçado em Genebra ao lado de eminências dos anos 60, entre os quais o próprio cineasta de Der Leone Has Sept Cabezas, D. Hélder Câmara e Celso Furtado - só faltou Josué de Castro, já morto, para compor mesa pé de galo nordestina do mais alto gabarito.

Mas saudade tinha. Se me esquecia, ora e vez lá me batia o canto do bem-te-vi e a fragância matinal à distância das orquídeas que floresciam no tronco da mangueira em Santa Teresa, alvorada lá no morro que beleza. Não era nem Gonçalves Dias a versejar entre sardinhas marinadas e face a uma dos frapistas em Bruxelas, noutro célebre exílio, Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá, mas ó se tinha, ó se cantam. Estrangeiro, não se pertence a lugar algum, é-se alieno, diferente, especial, e com Lisboa também era assim, pudera. Pior é que, após tanto tempo distante, acaba-se por se ser estrangeiro na própria terra. Mais em relação a pessoas do que a outros seres e coisas, posto que estes TÊM memória e não cultivam só afeições de circunstância ou preconceitos. Tudo depende apenas de cada um e da sua capacidade de adaptação.

    País-nação, entidades abstractas - o que comanda é a terra em que elas foram criadas, o que leva a que uma coisa se confunda com a outra e afinal não é tão importante. Ivan - e Peter! - nasceram em mais um desses artifícios que os sortilégios da História encarregaram-se de mudar para uma outra coisa radicalmente diferente de um momento para o outro, deixando-os a zanzar, baratas tontas sem eira nem beira, sem nunca encontrar o tino, o Norte. O resto, bem ou mal, lá se readequou à afinal de contas mesma velha vidinha.

         Remoçado, e com o país de novo nos eixos, o Chiado readquire o padrão de vida sofisticado de antes do 25, o golpe de Estado militar que quase gerou uma revolução. Apesar do bulício e de continuar entupido de carros, o velho bairro parece às vezes parado em tempos queirosianos, com as suas tradicionais livrarias e famosas casas de chá quase intactas (estas algo mal tratadas).

         Mas o ritmo é outro e algumas inovações são chocantes, como um espampanante Tropical Burguer, Chicken & Fast Food na vetusta Rua Augusta e a transformação do velho Animatographo - o mais antigo cinema da cidade e um dos seus melhores exemplos de art nouveau - em casa de show porno. A subcultura de massas desenvolveu-se no novo pasto de junk food, mas o mercado não absorve tudo o que se produz – ‘dinheiro não é elástico e a torneira da UE vai fechar um dia’, prevê-se. Oferta há de sobra, sobretudo de subcultura pimba, principal responsável pela venda record de 16 milhões de CDs em 1998. Antes essencialmente um país agrícola - que se poderia chamar Quinta Salazar -, Portugal tem hoje uma cara urbana, porque as pequenas capitais também cresceram e integram a rede da próspera central de serviços em que o país tem de transformar-se.

 

          Lisboa não é um mostruário de arte porque quase todas as suas riquezas do tempo do ouro & dos diamantes sumiram Tejo abaixo com o terramoto e os saques napoleónicos. O que não lhe faltam são os esplêndidos panoramas que fizeram Byron destacá-la como a terceira das ‘vistas de mar’ da Europa, apesar do ‘panorama fluvial’. Além da barriga, com a sua excelente gastronomia, a cidade enche os olhos com a soberba situação sobre o Tejo. Os novos ícones dos 500 anos dos Descobrimentos e centenas de locais de cultura, entretenimento e lazer enriqueceram grandemente o cenário do Parque das Nações à outra ponta, com o CCB e o seu Jardim das Oliveiras. Cada vez mais sem tipo fixo de habitante nem tipo fixo de arquitectura, já não é mais também a cidade descorada e suja cartografada por Fialho de Almeida em 1924. As mudanças a que se submete remetem definitivamente ao passado a cidade feíssima apesar do porto, bisonha apesar do céu, insalubre apesar do clima descrita pelo autor de Os gatos. E apesar dos viadutos!

         Reconciliou-se com o rio-mar para que voltara as costas, apesar do porto, ou talvez em função dele, que a impedia de dialogar com o Tejo, alargando os horizontes muito além do rio que embalou naus, caravelas e galeões para o mar das odes marítimas, e em que agora redescobre a sua vocação de Babilónia translinguística e racial, com jardins suspensos sobre cenários de sonho. Com enorme sede de diversão. E consumo.

  

 

 

 

Monologando - e não estive sempre? Incomunicado - e não estamos todos? O que leva alguém a estar-se nas tintas, procurando elefantes no ‘banheiro’, como Clarice? O que leva alguém a chorar baba&ranho também numoutra noite na casa sobre o lago de Trevignano e depois, só porque não se escreve... mais um caso clássico de falha de comunicação, ainda mais imperdoável, talvez, na era dela.

         Faltou dizer-lhe: olha...

O que ele diria? Estou-me nas tintas?! O que leva alguém...

O tempo, talvez o tempo, que tudo estiola, e eu vivo também sempre lá, num tempo bom num lugar excelente que, como muitos outros talvez melhores que o meu, não me pertencia. E no meu - como noutros antes - também é pouco mais que eu e a(s) paisagem(ns). Eu e um Tom mistificado.

Que me valha a estrada. A realidade sempre me escapa. Em lugares intemporais como os de um piloto de cargueiro a adentrar o porto e a cidade.

                            Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...

 

         Uma amizade de juventude que passa, como passaram outras, embora nenhuma como essa, como passaram as mulheres, engraçado, aqui e ali tão importantes, de importância vital, totais desconhecidas que o acaso coloca na nossa vida tornando-se íntimas algumas até dos sonhos, e depois... ZAP... desaparecem no éter, nada. Outro canal de TV, porque passa-se sem compromisso e tem o mesmo efeito, o rápido esquecimento. Quais terão já morrido, quantas ainda estão vivas e o que fazem? Estrelas no céu nocturno da memória.

Estão num campo inalcançável pela câmara: na memória – que as projecta e exibe-as em flashback no próprio cenário das divagações. Há uma talvez Maria e uma isto e aquilo – (e uma Amália?), uma Amália, uma Mília, uma Cília, uma Zinha, outras com nomes de santa do mais alto coturno e, para que se veja como são as coisas, uma Nancy, qual Joni Mitchel em quem de facto pensava (09-28-1974).

Portrait of Nancy. Ou o conto ficário de uma fada nórdica.

Meias-noites do Londres no último Inverno do nosso descontentamento. Ela desce as escadas atapetadas de vermelho uma valquíria nas passadas longas, de longos cabelos louros muito lisos divididos ao meio, bolsa de couro cru a tiracolo, blue jeans e botas de cano alto quase Greta com quase tanto garbo, o mito sai da tela, ou está ela só ou com ela o jovem de longos cabelos castanhos encaracolados e ela só – e eu cá a matutar... - até que ele chega (...) ou não chega - ... -, um par rockmântico, up to date na Lísbia cavernosa, em declinacão. O par perfeito.

Mordo-me de inveja. Sonho acordado com ela na madrugada de 09-28-1974 a lembrar a da pacata Lésbia de antes do 25, sem sombras das convulsões na rua, nos gabinetes políticos e eventualmente nos quarteis após uma meia-noite tranquila no Castil a ver Z – Estado de Sítio... pensando em nós a ouvir Blue de Joni Mitchell talvez num apartamento daquele edifício com melenas e meses depois do 25 de Novembro finalmente encontro-a disponível na sua própria casa – que dividia com o ex – e nada... Em poucos dias caio das nuvens do tempo etéreo e me desiludo com a sua falta de sensualidade, os gestos secos, as mãos ásperas, enfim...

         Uma de sonhos gaélicos e das arábias e Woodstock... uma atriz... uma tragicamente morta após o desenlace e longo suplício em tempos de sublevações... uma Carmo, Muriel, Micaela dos aidos de moçambique, uma Teresa, uma talvez Maria, uma brasileira, uma inglesa no continente, uma italiana, uma lá outra acolá, tudo em remotos aqui e algures, nenhuma realmente aqui, em Lisboa ou no Porto, de onde de facto nunca se é.

 

Medito a bunda a dois dias da partida enquanto leio e tomo o pequeno almoço às oito e meia da manhã antes de ir a Sintra para uma subida a Seteais na última sessão de recolha de dados e fotos quando ouço o barulho da fechadura, a porta a bater, passos no longo corredor de madeira. Caradanjo chega com ar de directa.

- Bom dia, bom dia! Já de pé?! E eu ainda! Doidice, pá, estive a noite inteira no estúdio com os jovens daquela noite, lembras?, a baratinar-lhes a mistura toda - passa a palma da mão no cotovelo e ri, encatarrado. - No final, foi um desatino, desorganizei-lhes o esquema todo.

Desenrosca a tampa da garrafa de J&B à minha frente, na mesa da cozinha, e sorve um golaço, grande pedalada, tira dos bolsos mortalhas, um Marlboro Light King Size e uma pedra de uns dez gramas e põe-se a fazer uma cónica, que degustamos enquanto, a propósito da minha digressão à Expo e à Estação Oriente, falamos de arquitectura moderna e das múltiplas intervenções em Lisboa e do Guggenheim de Bilbau, onde estivera e que mostra em fotos tiradas meses antes.

- Porra, tenho até pensado, pá, que estás cá há quase um mês e já quase a ir embora e nós mal tivemos tempo de estar juntos, uma merda!

O coração dispara. 

- Vidas modernas. Já não há nem tempo para se perguntar o que faz correr Sam...

Cara vai dormir. Ponho a máquina a tiracolo para mais uma digressão a Sintra, tantas e quantas vezes encarada sempre com o mesmo prazer, um deleite incomensurável, ainda para mais numa manhã de radioso sol de Inverno e com a ‘cabeça feita’.

         O comboio parte sempre com apenas 25 segundos de atraso.

Sintra  de  encanto  e  mistério

Sintra mantém inviolados a flora exuberante e o mistério que fizeram a sua lenda. O panorama visto do mirante de Seteais não mudou muito desde Eça e o Lawrence’s está de novo pronto para receber Carlos da Maia e Byron. Mas Álvaro de Campos levaria um susto.

Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente na Lisboa-Sintra hoje em dia o poeta teria de fazer muito mais esforço da própria imaginação para se sentir ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite, cada vez mais perto de mim. As curvas da estrada de Sintra perderam quase todos as matas e hortas que a ladeavam. Nalguns trechos ela perdeu até as curvas. Hoje, seria impensável um passeio ao luar e ao sonho, na estrada deserta. Prédios feios e uniformes das cidades-dormitórios brotaram no lugar das hortas, causando mais danos à natureza que uma nova invasão bárbara ousaria.

Os novos bárbaros da especulação imobiliária cercaram perigosamente a serra, num ataque que lhe será fatal se conseguirem sufocá-la privando-a do seu famoso e único ar puro. A velha estrada Lisboa-Sintra é hoje uma via rápida, que deveria levar os lisboetas mais depressa de e para as cidades-dormitórios mas os engarrafamentos não deixam.

Hoje não se sente mais nem a súbita mudança de clima ao passar-se pela Portela de Sintra, à entrada do ecossistema da montanha, nem a paz das grandes sombras captada por Eça ao adentrar o Ramalhão, pouco adiante, como se a penetrar no glorioso Éden vislumbrado por Byron e o mais que ao longo dos séculos viajantes mais ou menos ilustres, sobretudo ingleses, não se cansaram de osanar. O eixo rodoviário Cascais-Sintra-Mafra raspa-lhe as costas e nos últimos anos o tráfego na região cresceu muito, poluindo os ares do pé-de-serra. A vegetação exuberante, feita de espécies de todos os recantos, não sendo mais alvo dos desvelos de reis, condes, barões e plebeus milionários, também corre perigo. Qual exército de bárbaros ou cristãos - embora uns e outros não a tenham destratado, pelo contrário -, hordas de forasteiros montados nos mais bisonhos chevrolets da pós-modernidade invadem Sintra aos domingos, gerando o caos nas escadarias e vielas da vila, tolhendo-lhe a magia que fez a sua fama. Os encantos e os mistérios de Sintra são eternos, excepto aos domingos, dia do passeio dos tristes, que enche o quase sempre pacato largo da vila de autos ligeiros e pesados que a furtam do sossego de madrigais por conta das queijadas. Estradas abaixo e acima de e até Cascais assiste-se a cenas que põem Weekend de Godard num chinelo de quarto.

Das varandas do Palácio da Pena, das ameias do Castelo dos Mouros ou do Alto das Cruzes, onde antes eram hortas e vilarejos a perder de vista até Mafra, a norte, ou lençóis de vinha moscatel nas colinas de Palmela, a sul, o que se vê em dias claros é a triste sucessão de dormitórios uniformes de classe média e média-baixa em que se transformaram os arredores de Lisboa. E que assediam como nunca a antiga praça estratégica e estância balnear e de montanha de fenícios, celtas, visigodos, romanos, muçulmanos e cristãos.

Nos caminhos que serpenteiam na senda dos altos da Pena e das Cruzes poucas quintas parecem abandonadas, mas em muitos trechos o mato não é capinado, dando melhor pasto às chamas quando há incêndios na floresta por séculos cultivada por reis, príncipes, viscondes e barões.

Vista de muito alto a serra ainda exibe um vasto manto verde que se estende até ao ponto mais ocidental da Europa. Só uma construção é visível a olho nu, o Palácio da Pena, com a sua torre dourada igual a uma cúpula de observatório astronómico faiscante ao sol. Mais abaixo, ao lado do Penedo da Saudade, a natureza também parece imbatível. O majestoso panorama do mirante de 180 graus a poente, nas traseiras do Palácio de Seteais, hoje hotel delux, pouco mudou em relação ao que Eça via há mais de um século, com a rica vastidão de arvoredo cerrado em primeiro plano, uma grande planície a seguir e cada pôr de sol de cinema.

O encanto é imorredouro e da Estefânia até cá mantém-se intacto porque desde então a única mudança paisagística visível, fora o monstruoso Hotel Tivoli na vila, é o alcatroamento das estradas estreitas entre a densa vegetação. O acaso brinda-me com as melhores luzes para fotografar, mas em fins de tarde brumosos o clima é o mesmo, a impelir-nos para mergulhos insondáveis em sonhos interiores no silêncio pétreo, só interrompido pelo crepitar do carvalho em chamas na lareira.

‘Servil e curvada diante dos mestres’ não é certamente a mocidade que nos sucede. ‘Imitadora, copista’, sim. Nada idólatra também, ao que me parece, para o seu bem, mas no entanto sim nada ‘inventiva, audaz, revolucionária’. Pode-se dizer em seu abono que este fim de século é o do pós-esgotamento da linguagem, que no outro apenas começava a rebentar pelas costuras. De resto nada mudou. O chão aqui já devia estar empedrado, como Eça. Quem pode se gabar de trilhar um caminho além do que lhe foi destinado?

Do vão do arco triunfal do Palácio de Seteais, como dentro de uma pesada moldura de pedra, ainda se aprecia o quadro maravilhoso de uma composição quase fantástica, como a ilustração de uma bela lenda de cavalaria e de amor em que emerge em frente, abruptamente da cupada linha de bosque assoalhado, destacando vigorosamente um relevo nítido sobre o fundo do céu azul claro, o cume airoso da serra, coroado pelo castelo da Pena, romântico e solitário no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar e as cúpulas brilhando ao sol como se feitas de ouro.

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Victor Villarpando

 

Sintra não é para aves de arribação. E para pleno gozo das delícias do seu clima e sua riqueza paisagística o melhor é caminhar. Os sintrenses queixam-se da falta de serviços. Melhor para o forasteiro, que a meia hora do bulício pode desligar-se do corre-corre e mergulhar na placidez. Melhor se no conforto do Hotel de Seteais ou do Lawrence’s, antiga Estalajem dos Cavaleiros, onde o jovem Lord Byron sentiu-se compelido a descrever as peregrinações de Childe Harold pela Europa meridional e exalar um Oh! em que variegado labirinto de montes e vales surge agora o glorioso Éden de Sintra! A pousada de Jane Lawrence, que também hospedou personagens de Eça e esteve 35 anos fechada, tem agora gerência holandesa. Os melhores restaurantes da região - quase todos familiares - estão nas estradas de Colares, Carrascal, Azenhas do Mar e cabo da Roca, perto das praias do Atlântico, escavadas em rochas e penhascos de ficção.

Sintra é exuberante mas só entrega os seus mistérios a quem os quiser descobrir pelas antigas sendas da serra, a dois passos do mar, nas peregrinações clássicas descritas pelo seu melhor cantor. Subir a estrada para o castelo dos mouros e a Pena. Beber água na Fonte dos Amores. Estupidificar-se com a pós-queirosiana Quinta da Regaleira, subir a Seteais e descer pela estrada velha de Colares entre os muros das quintas cobertos de musgo, ir de mansinho da Ribeira a Colares e Praia das Maçãs pela estrada nova de Colares e, no Verão, dar um mergulho. Pena que a maioria das quintas, que conservam alguns dos melhores tesouros de Sintra, não possam ser visitadas. Mas as longas linhas de ameias amarelecidas e as maciças torres sobrepostas a eternos penhascos de granito, suspensos de mil pés e mais sobre a pequena estância e as arborizadas ravinas, justificariam por si sós uma viagem a Portugal, mesmo que os jardins dos ricos fossem mais reservados do que o são actualmente, como testemunhou o inglês Martin Hume há mais de um século. Sintra preserva ainda as belezas de toda a ordem, tanto naturais como artificiais, decifradas por Byron: palácios e jardins que se elevam no meio de fraguedos, cascatas e precipícios; conventos a alturas estupendas - uma vista longínqua do Tejo e do mar. Richard Strauss, em temporada de apresentações no Teatro S. Carlos, em Lisboa, não perdeu nenhum amigo ao dizer: Andei por meio mundo e nunca vi nada que valesse... a Pena. A piada está só na tradução, mas este é o slogan.

A redescoberta de Sintra pelos contemporâneos deu-se em plena efervescência psicadélica pós-Revolução dos Cravos, no final da década de 70, quando o beautiful people de Lisboa invadia em romarias de fim de semana, no melhor estilo neo-hippie, a Casa das Nogueiras, sobranceira à vila, no início da estrada para a Pena, última residência fixa de Glauber Rocha. Artistas de todo o mundo aqueceram corpo e mente no casarão cor-de-rosa, entre eles Glauber e Wim Wenders, que filmou parte de O Estado das Coisas na Praia Grande de Colares.

Tudo somado a cidade-serra-museu parece parada no tempo, como as madeleines de Proust ou as queijadas de Eça. Mas num domingo Álvaro de Campos - que ia dormir em Sintra por não poder fazê-lo em Lisboa - levaria um susto.

 

 

Profissão: Repórter de uma época que não produz relações duráveis, como se se estivesse num acelerador de partículas - hello, oi, chau, by-eye -, ora agora toca a ti, amanhã logo se verá. Tenho de correr se não não me safo e era um ver se te avias. Ou aviavas, porque já passou.

         Será que as pessoas, jornal dobrado debaixo do braço, mãos nos bolsos, ainda se sentam à mesa do café - um carioca de limão, se faz favor - à espera de um amigo ou dois para chalacear a troco de nada, galar as garinas que passam, comentar as últimas da bola, acender um cigarro, abrir o jornal e trocar impressões sobre uma notícia ou outra - penso enquanto entro inconscientemente n'A Brasileira obedecendo ao impulso trepidante de tomar uma bica ao balcão por um hábito de anos e anos e que parecia perdido para sempre e deparo-me com uma conhecida, a actriz Titi, a quem manifesto estupor por ainda encontrar conhecidos sem combinar. Afinal, continua-se como antigamente?

- Claro que não! - diz ela a rir. - Agora anda tudo atrás do GRANDE NADA, a abjecção feita próximo grande objecto de desejo consumista, o carro último modelo, a casa no monte alentejano... E, apesar de tudo, sempre no mesmo Portugal dos pequeninos. 

A passagem de ano 1999-2000 é a mais mediática de sempre, mas a malta não corresponde no grau de entusiasmo desejado ao enganoso apelo da indústria de turismo e dos média de fruição total da ‘passagem do milénio’. Mais ‘mediática’ é ainda porque sob o signo da cerimónia de despedida de Macau, que apesar do aparente tom de festa que as autoridades lhe quiseram dar, as TVs transmitem como um 13 de Maio ou de Outubro em Fátima.

- O que me turbina é que só daqui a mil anos se repetirá a mudança dos quatro algarismos - desconta Afonso de um súbito entusiasmo, por volta das onze da noite, pela vigília que se dará discretamente em casa de Armando Daudet, um outro antigo membro da gangue da Casa Nostra, em círculo restrito, com whisky, haxe e coca q.b. - esta apresentada pelo meu anfitrião.

         - Incrível – sublinha enquanto as bate sobre um espelho. - Aqui o Ed diz que a coca daqui é que é boa, muito melhor que no Brasil. 

- Pudera! Mas no Brasil não diria. Melhor que no Rio sim. Quando lá esteve Armando comprou em Manaus um pó que era um mimo. Em São Paulo, de boa fonte, ainda se conseguirá algo que  preste, mas dos morros do Rio só sai uma mistela ultra-cortada, uma mistura de sabe-se lá o quê que mal se cafunga e já escorre narina abaixo – argh! Eu nem lhe chego perto.

Afonso prepara as últimas linhas quando chega o filho adolescente do dono da casa. Põe o tabuleiro no parapeito de uma janela sobre o sofá onde o adolescente acaba por sentar-se e ser brindado com uns lamirés de pó de pirlimpimpim da fada de Peter Pan de neve, pedra-de-toque para um súbito desânimo que se abate sobre Cara após algumas poucas horas fora da rotina de tensão, porque já não é também in ser-se cool em Lisboa.

        Amanheceu há muito um típico brilhante dia de Ano Novo quando chegamos a casa. Extenuado após a noitada e todo o dia de caminhada da estação de Sintra a Seteais e volta, sento-me no sofá a querer desligar o som e apagar a luz. Cara, que parou a olhar o exterior pela porta envidraçada do varandim, outra vez inesperadamente desata a chorar.

-         Não estou nada satisfeito com a minha vida - soluça.

 

         Nada melhor para descansar os ossos de um réveillon de arromba após um mês de tanta caminhada, leitura e pouco sono que uma viagem transatlântica. Nada melhor talvez para vencer uma viagem transatlântica sem fumar que um réveillon de arromba após um mês de tanta caminhada, leitura e pouco sono. O check-in é ao amanhecer do dia seguinte e Afonso está mais lacónico do que nunca. Desta vez não chora.

 

Vista de muito alto a serra de Sintra ainda exibe um exuberante manto verde que se estende até ao cabo da Roca. Só uma construção é visível a olho nu, o Palácio da Pena, com a sua torre dourada de observatório astronómico faiscante ao sol.

 

 

        - Coronel Cintra, lembra-se daquela nossa aventura lá no Afeganistão, pra lá de onde Judas perdeu as botas, atrás do João Bafodeonça?

- Quem diria, hein, Mickey, que depois de tantas desventuras por este mundo e o outro ele fosse envolver-se com o cartel de Cali ou a conexão boliviana, como mula de traficantes espanhóis a serviço da máfia italiana, provar do próprio veneno, viciar-se e lerpar, como eles cá dizem, logo em Lisboa, quiçá com um hip-hop de angolanos em vez de um fadinho na banda-sonora do seu triste fim?

- Sim, mas também não lhe faltou um faducho na despedida, lá na Adega do Machado, onde foi encontrar-se com os espanhóis que o fizeram deixar de fumar... e de se picar... nas Escadinhas do Duque. Passadores galegos! Só um Bafodeonça muito tonto para tentar dar-lhes a banhada!

João Bafodeonça?!

 

 

 

 

Antes, no clube dos 12, parecia que se estava entre A elite. Hoje já dá para ver claramente que aquilo era apenas o embrião da nova conformação político-administrativa-ó-económica da europa-do-atlântico-aos-urais agora de 25, amanhã de 32 países, onde quem não está é porque não quer ou ainda não pode mas estará e nós cá continuamos a contar o mesmo.

Uma nova dinâmica, o ritmo é outro – a cidade agora operando em corrente alternada, entre a velha modorra e o desajeitado alpinismo neoliberal – mas mais estes sonhos de grandeza se espatifam e o chão começa a estar eivado de destroços e cadáveres, porque a maioria perdeu o eléctrico alemão do século XXI. E agora, como escreveu o outro, menos de cinco anos depois, pode-se ir ao alto de uma escarpa em Las Vegas e olhar para Oeste e tendo-se olhos atilados ver a linha da maré – aquele ponto onde a onda finalmente batia e rolava de volta ao mar. Só uma construção é visível a olho nu, o Palácio da Pena, com a sua torre encarnada de observatório astronómico faiscante dourada ao sol.

 

 

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    drum’n’bossa avant l’être 2002

 

Naquela noite em Lisboa ver jaquinzinhos fritos com arroz e salada no menu do restaurante foi para mim como se estivesse face ao sobrenatural.

Recordo-me de entre idas e vindas a Portugal ter ouvido falar num projecto de um ou vários secretários de Estado das Pescas de proibição da comercialização de carapau com menos de dez centímetros ou coisa que o valha e com os anos devo ter arquivado no subconsciente que jaquinzinhos era coisa do passado. Vê-los ali à minha frente – e melhor, degustá-los - foi como que uma alucinação das melhores, um flashback mais catita que ouvir de surpresa (Sittin’ on) The Dock of the Bay por Otis Redding, porque a gravação, se não se tem já, sempre se encontra. E para mim jaquinzinhos não havia mais.

E agora não há mesmo, porque a UE finalmente os proibiu. Só a UE para repor a ‘normalidade’ em certas coisas. Mas, como se disse à época da proibição, resta-nos o consolo do leitão da Bairrada...

Que não nos falte tudo... Mas eis mais uma prova irrefutável de que as coisas mudam. Em algo tão simplório como jaquinzinhos, mas afinal tão importantes como o fado castiço. Acepipes históricos.

Eppur si muove... e sendo ponto assente que a Lei & Ordem em quadrantes como os do Brasil é a da tanga cada vez mais exígua olhando-se para Portugal de um prisma estritamente c’treite, a ver o que muda e quanto muda o panorama, também se pode chegar à síntese deste e-mail que recebi de Frida e que me reporta a tempos que, esses sim, não deveriam perpetuar-se como espectros de passados intragáveis: Aqui, por causa do déficit vai tudo raso, no bom e velho gloomy portuguese mood dos tempos cavaquistas. Andamos todos quilhados, deprimidos, à boa maneira esquizofrénica portuga.

 

Só dos tempos cavaquistas?!

E quais deles?

De cavaco em cavaco o musak do eléctrico do século XXI está mais para hip-fado ou fado-hop que fado-canção.

 

  Ou se calhar em que, ainda que caídos do cavalo e do cavaco da Europa  unida dos 15, a braços com o eterno ramerrame, apesar da revolução de meios & visual, em que os colunistas não se cansam de cogitar  sobre o fantomático "projecto" ou "desígnio" nacional (hip-fado ou fado-hop) e o estado de abjecta depressão colectiva (fado-canção), a nível de grassroots não se detecta o mais leve vestígio disso, antes pelo contrário, anda tudo muito contente e animado, as pessoas satisfeitas, por mais que os colunistas  digam o contrário, e têm razões para isso, for they never had it so good, é ver mega-shoppings e mais mega-shoppings a abrir e todos a ficar repletos de clientes!

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    drum’n’bossa avant l’être 2005

 

          De um privilegiado observatório no Porto João Fonseca segue optimista:

Não é nada disso! Ou se calhar é assim para uma minoria, pois de facto de alguma maneira dá idéia de que se mantêm zonas não afectadas, ou só minimamente, no corpo social… é difícil de explicar… a maioria das pessoas que viveu certas aventuras não conseguiu minimamente alcançar as cósmicas expectativas que chegou a albergar, donde que o down é perfeitamente compreensível.

E há ainda outra coisa: é que, por mais que leia os colunistas referirem-se ao estado de abjecta depressão colectiva que se vive em Portugal, ao contactar com pessoas no dia-a-dia surpreende-me sempre como não se detecta o mais leve vestígio disso, antes pelo contrário, anda tudo muito contente e animado, e a nível de grass roots começa p.e. a ser raríssimo ouvir aquela expressão que julgava imortal, "a culpa é do governo". Em geral as pessoas andam satisfeitas, por mais que os colunistas digam o contrário, e têm razões para isso, for they never had it so good, é ver mega-shoppings e mais mega-shoppings a abrir e todos a ficar repletos de clientes!


Ainda agora viveu-se aqui em Portugal sob o signo do Euro 2004, durante o qual se operou uma notável transformação na psique nacional, tendo nós na nossa autopercepção passado "de bestas a bestiais". Cheguei a pensar se finalmente não tinha sido vencido o nosso famoso complexo de inferioridade, e nesse sentido o teu relato do estado das coisas entrava em dissonância com a realidade que eu sentia. Mas o facto é que, passado meio ano, e sem andar propriamente a pensar nisso, fui constatando que aparentemente terá sido apenas um epifenómeno, um pequeno pico numa linha que se mantém obstinadamente na horizontal…
Cá para mim, a intelligentsia talvez seja tão culpada disso quanto o ignaro povo, pois aparentemente satisfaz-se em lhe apontar os defeitos. Mas diria mais: acho que a intelligentsia, para melhor brilhar por contraste, como não  -povo, EXAGERA o problema, obscurecendo por exemplo o facto de nunca ter havido tanta actividade cultural nem tantas oportunidades e apoios e infraestruturas nessa área, com coisas absolutamente impensáveis ainda há poucos anos atrás.


Uma coisa é certa: a partir da leitura ou audição dos pronunciamentos da intelligentsia não é possível tirar qualquer conclusão que não seja profundamente pessimista sobre o estado da nação — é absolutamente impressionante, mesmo para quem como eu foi habituando a constatar que a nossa intelligentsia pouco mais faz do que carpir os nossos atávicos problemas.


Talvez seja por agora haver mais mass media, mas a sensação que tenho é que vai por aí uma verdadeira competição para ver quem consegue encontrar as mais originais variantes do imortal "Portugal é uma choldra e uma piolheira" do D. Carlos para descrever o país actual - e esses plumistas até já começam a deparar com problemas retóricos, pois, depois de se ter declarado p.e. que Portugal desceu à fossa do Mindanau aquando do caso Casa Pia, uma pessoa  vê-se grega para conjurar profundezas ainda maiores p.e. a propósito do episódio Santana Lopes…

Um exemplo muito recente é da sempre significativa Crítica Literária que deu uma entrevista a dizer basicamente que já está farta de há anos andar a "ensinar o povo" (assim mesmo) e que se vai deixar disso porque ele não o merece. Mas há melhor ainda: hoje mesmo outro famoso colunista interrompe anos de silencioso recolhimento para voltar a humorizar — e escolheu o mote de como somos pequeninos e pobrezinhos e nunca deixaremos de o ser.

Aliás, está-me a parecer que capturas completamente esta "problemática", o contraste entre as torres das Amoreiras e a apatia lusitana… donde que, a propósito, era capaz de dizer que essa apatia me parece injustificada, porque agora há finalmente oportunidades para "se fazer coisas", ou pelo menos mais do que alguma vez antes, e no entanto as pessoas continuam a queixar-se — ou, lá está, a intelligentsia queixa-se por elas… Por exemplo, a intelligentsia adora queixar-se da falta de um "projecto" ou "desígnio" nacional. Mas quanto ao que tal bicho poderia ser exactamente não se ouve a mais pequena sugestão, para além de vagas referências a "aumentar a produtividade" e "apostar na qualidade"… E afinal qual é o desígnio dos países que temos por referência?

 

De cavaco em cavaco o musak do eléctrico do século XXI está mais para hip-fado ou fado-hop do que para fado-canção.

 

MANIFESTO NO SUICÍDIO DE JOÃO CARLOS PAIS

e nem se diria que há séculos, noite após noite, está a perder partes de fígado. Mas no que dele resta o álcool deve transformar-se em formol. 

 

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    drum’n’bossa avant l’être 2009

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