revoluciomnibus.com                              

o livro do rock & da contracultura

               e da eterna rebeldia

com relato inédito do antes durante e depois do 25 de Abril de 1974 em Portugal

EBOOK  em português luso À VENDA em Amazon.com

revoluciomnibus.com

janela   com   vista   para   a   contracultura   e   o para   a   cultura   contra   natura

ciberzine & narrativas de james anhanguera

      

         almanaque das ideias cores e sons do maior movimento de juventude da história

                        da era do rock & da contracultura

                                      o livro do rock   e da contracultura

        um vagalume vagamundo na era do rock e da contracultura

              narrativas em f(r)icçao para tempos mornos

         vida aventureira de um jovem viajante no underground e no bas-fond entre os anos 1960 e 80  

 

Cedo se apercebeu de que o remédio era cavalgar o tigre em que montara sem pensar muito no destino, cavalgar só para não ficar parado sobre a fera que a todo instante ameaça engoli-lo.

...

- Mas vem cá, tá tudo muito careta à nossa volta e os caretas desbundando tanto nas ondas mais vergonhosas que a gente até se retrai.

...

                       divertissement ilustrado, cronistória romanceada, docudrama

      

                                                                                      Terra da Dama Eletroacústica

                                                                                                                                 capítulo 2 de  

                  Por dentro e por fora em Londres

                   Terra da Dama Eletroacústica

                  Medo, atraso e rock no grotão

                  Era uma vez a revolução

                  Droga, Loucura e Vagabundagem

                          

                          - Da Teoria à Prática ou Vice-Versa

 

                             Rumo às ilhas da Utopia  

                             Era uma vez as revoluções

 so listen to the rhythm of the gentle bossa nova

 narrativas de rock estrada e assuntos ligados

 

                             

                          Terra da Dama Eletroacústica   

Lisboa, 1970. Portugal é um pequeno país quase esquecido do mundo, separado do resto da Europa pela Espanha e como ela sob ditadura. Esquecido e quase totalmente isolado do mundo de onde a microcosmos isolados em ilhas da fantasia chegam ecos de novas e vibrantes experiências de vida que ali só se podem reproduzir na imaginação. 

 

     Terra da Dama Eletroacústica  
                                                                                      

                                                                                           

                                             

 

A terra da dama elétrica e a ilha envolta pelo nevoeiro imaginada pela dama eletroacústica são a ilha do visionário do Surrey, a utopia que se pode captar em sobrevôos psicodélicos, por exemplo, mas não viver em pleno, porque imaterializável – sonho de Atlântidas, Ítacas, Utopias, Lilliputs, Nações de Woodstock; fantasia da terra do nunca, talvez a maior das sonhadas pelo homem; o paraíso em vida, dentro de nós e em tudo ao redor.

 

                                                               

             Sob    o    sol    de    Parador

                                 Barco Negro: tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado

 

     Na terceira saída de casa após a chegada as sabrinas à la Bolan já não saem do armário. Nos primeiros meses como que flutuo sobre as ruas de gente lúgubre, velhos e novos, homens, mulheres e até crianças me insultam com olhares e expressões de escárnio pelas roupas que uso e os cabelos cacheados caindo sobre os ombros, ar angelical-endemoniado de jovem caravaggio em fuga, fora do tempo e do lugar. As radiosas auroras tropicais arquivei-as na memória em Londres mas não há meio de me adaptar às manhãs tardias. Recém-chegado, o acaso - companheiro constante do caminhante errante - volta a operar mudança. Numa manhã ensolarada de domingo de início de outono, ainda na cama ouvindo a emissão da  Rádio Universidade, que transmite através da Emissora Nacional, minha vida sofre uma guinada decisiva.

     És estudante universitário ou pré-universitário?! 

      Gostas de rádio?!

      Queres aprender a fazer rádio?! 

     Então vem inscrever-te!!

       Vou de jato no dia seguinte. Uma oportunidade servida de bandeja de fazer algo em que jamais pensei: adentrar o universo mágico do rádio, que desde sempre povoa o meu imaginário. Fico espantado na primeira aula de edição e montagem, em que o professor João David Nunes passa um trecho do programa POP 3-9-7 METROS como exemplo de como se edita e mistura sons, com a colocação de voz e a dicção, o timing, o ritmo e a técnica de mistura de voz e sons de um jovem disc-jóquei português, Nuno Martins. Que parece melhor que os melhores de Londres. Como no melhor cinema.

       Mergulho de cabeça na concepção, escrita, produção e sonorização de programinhas de quinze minutos, porque as emissões são muito curtas. Meu lugar não é aqui. Lisboa é a alternativa mais viável e mais próxima a Londres, onde não poderia sobreviver só lavando pratas. Vou ver com calma se há meios de voltar com o mínimo para viver lá.

        A nova e vibrante atividade alivia um pouco a angústia e os engulhos que me assaltam desde a chegada. Quem sabe Lisboa não há de ser melhor do que se pensa, dizia Jimi. Não é, escrevo-lhe, e me parece ainda mais incaracterística e feia vista das Avenidas Novas, como chamam a zona mais moderna e arejada, a norte das sete colinas de onde a cidade se expandiu. Soa melhor do Miradouro da Senhora do Monte, a que me levaram um dia depois da chegada para ter uma ideia de como é vista do alto, e de fato aqui ao menos os horizontes são bem amplos, não atarracados e simplórios como os de lá de baixo, onde a cidade parece mais velha do que antiga, muito suja e pobre. Não conheço ninguém da minha idade fora da RU. Tudo parece... fuleiro, cafona, retrógrado, atrasado. Como a quase inexistência de grandes anúncios luminosos, o que aos meus olhos quase infantis torna a noite lisboeta ainda mais soturna.

Não que o país esteja totalmente isolado do resto do mundo - ainda não estamos na Albânia. Ao contrário, na falta de noticiário interno, porque as notícias das guerras nas colônias africanas, de que nem me apercebo, são censuradas e além dela só é dado ler sobre um famoso processo judicial que se arrasta há anos com um belo nome de policial, o Caso Sommer, e de que não percebo bulhufas porque já peguei o folhetim quase no fim, ou as inaugurações de obras do presidente gagá almirante Américo Thomaz, os jornais publicam tudo o que podem de noticiário do exterior e exclusivos de jornais e revistas ingleses e franceses.

      As circunstâncias me obrigam a deixar passar o tempo apesar do marasmo e me deleitar com as perspectivas insuspeitáveis e excepcionais que a RU me abre, porque apesar de iniciante e amador o pessoal leva o trabalho muito a sério. A maior parte encara-o como trampolim para uma carreira que todavia poucos seguirão, porque os caminhos são muito estreitos e não compensa, em termos financeiros... e lá se vai o bichinho (como é chamado o estranho vício que logo assalta quem experimenta fazer rádio) pro brejo. Ponto assente básico e de princípio é respeitar as regras do jogo e jamais pisar o risco. Em termos ético-existenciais no entanto acabo por me sentir totalmente fora dos padrões. O clima de camaradagem nos estúdios e sobretudo quando aos domingos, após a emissão, se vai em grupo ao Café Tarantela tomar um mata-bicho almoçarado, é muito bacana. Mas o ambiente em volta, embora não inamistoso, é quase sempre pesado, pelas insinuações torpes e os risinhos de troça com que frequentemente sou brindado pelo meu aspecto, a refletir o clima nas ruas.

Nem sei o que veio antes: o cabelo e as roupas que me dão ares de menino selvagem e que me põem à margem num país em que, por questões políticas e morais incrustadas no inconsciente coletivo e reforçadas pelo regime vigente, não há espaço para um mínimo de contestação de qualquer tipo de valor, ou se já era a própria cabecinha talvez insana que me empurrou para a perdição, que sem que me aperceba tenha nascido já torto, a contestar além do próprio raciocínio tudo o que cheire a star system, primarismo comercialóide ou alienação. E não será assim apenas porque estou em Portugal. Afinal até Peter, Paul and Mary cantavam há anos que if I really say it the radio won’t play it, unless I lay it between the lines, se ousar falar o rádio não vai tocar, a menos que o diga entre as linhas. Entre as linhas engreno num ofício. Sendo o sistema o mesmo, a diferença é apenas de amplitude de controle. O ambiente é sinistro e por isso escrevo em tradução de uma canção, em vez de revoltos, meus cabelos revoltados.

Só compensa - e muito - o prazer maluco, como me disse shakespearianamente Peel certa vez em Londres e fiz questão de anotar, de estar twixt the turntables pulling the triggers on the forty-fives and thirty-threes and seventy-eights, entre os pratos engatilhando os quarenta-e-cinco e trinta-e-três e setenta-e-oito.

 

                  
OU COMO FAZER ROTEIROS DE PROGRAMAS DE RÁDIO
 

 

Take me back

Take me way, way, way back

where we can feel the silence

at half past eleven on long summer nights

as the wireless played Radio  Luxembourg.

Hyndford Street, St. Donald’s

Church, Sunday six bells.

And in between the silence there was

conversation and laughter and music    

and shivers on the back of the neck.

And tuning in to Luxembourg late at night

and jazz and blues records during the day.

Also Debussy on the Third Program

early in the morning 

when contemplation is best.

And reading  mr. Jelly Roll 

and  Big Bill Broonzy

and Really the Blues 

by Mezz Mezzrow                          

and Dharma Bums by Jack Kerouac

over and over again.

Can you feel the silence?

And it’s always been night

And it’s always been NIGHT

           Van Morrison  

 

Me leva lá               

Me leva lá, lá, lá atrás

onde se pode sentir o silêncio

às onze e meia em longas 

noites estivais

e do sem-fio ouvia-se Radio Luxembourg.

Rua Hyndford, S.Donaldo, sinos   

de igrejas a repicar domingos.

E entre o silêncio ficava-se

à conversa, soavam  gargalhadas e ouvia-se

música com a nuca arrepiada.

Sintonizar a Radio Luxembourg na calada

e ouvir discos de jazz e blues de dia.

Também Debussy no Canal 3 à alba, 

a melhor hora para a contemplação.

E ler o sr. Jelly Roll 

Big Bill Broonzy

e Really the Blues 

de Mezz Mezzrow

e Vagabundos do Dharma de Jack Kerouac

uma e outra e ainda outra vez.

Pode sentir o silêncio?

E tem sido sempre noite  

E tem sido sempre NOITE

 

On Hyndford Street

 

Sempre que posso sintonizo o meu velho Crown que agora tem um elástico segurando a tampa na Radio Luxembourg quando ela é captável em Lisboa, às vezes já a partir das quatro da tarde, quando a sintonia é muito melhor mas quase intolerável, porque toda a emissão até o Kid Jensen Show, à meia-noite, é perfeitamente dispensável. Mas sempre fico a par do lixo pop e de alguma coisa melhorzinha que se produz. Alterno Luxemburgo com a Radio Nord See International, uma ou outra rádio portuguesa e muita onda curta. Em longas noites sombrias sintonizo as seções portuguesa e brasileira da BBC e de quando em vez as Rádios Albânia e Portugal Livre, que transmite de Argel, sempre magicando em clima de 1984 se a Pide terá de fato hipotéticas unidades móveis de que captaria os comprimentos de onda sintonizados por aparelhos domésticos, como se chega a especular.

Rádio, um meio muito quente. Quem alguma vez ouviu/viu um bom programa, mesmo só com músicas coladas umas às outras, sabe de todo o potencial, toda a carga de adrenalina que pode produzir. A única verdadeira companhia de um cão solitário, além de um bom livro. E que, como um livro quando se o lê, transmite imagens que se imagina enquanto se ouve. Com a vantagem sobre o livro de ter som, podendo ser um filme sem imagens. Cujas imagens são produzidas em conjunto por quem a faz e o ouvinte. American Graffiti dixit. Wolfman Jack chega a operar milagres.

Deu até para refazer em filme a montagem radiofônica de Orson Welles de A Guerra dos Mundos na CBS, em 1938, tão bem engendrada e realizada que causou a estrondosa repercussão do que seria um dos maiores furos de reportagem da história dos então nascentes mass media. Um projeto inconcebível em qualquer outro meio. Ninguém pode ser convocado para o fim do mundo, uma invasão de marcianos. American Graffiti mostra a influência que sons emitidos por um lobo solitário de uma saleta, rodeado de botões, sob uma luz tênue e face a um microfone pode exercer sobre toda uma comunidade. Como disse Robert Bresson,

Ao ouvir-se um ruído, recria-se uma cena. Ao ouvir um silvo de locomotiva, vê-se logo uma gare. Mas quando se vê uma locomotiva não se ouve o respectivo silvo. Creio que o ouvido é muito mais criador do que a vista. No entanto a vista também é inventiva, mas não no âmbito dos sons, ao passo que os sons podem ter um poder inventivo no âmbito da imagem. E por mim não hesito um segundo sequer. Se posso substituir um cenário por um som, prefiro o som... E daí a vantagem de dar livre curso à imaginação do público e de chegar a esse resultado tão difícil que é não mostrar as coisas mas sugeri-las. É preciso estar ciente de que as imagens que se vê no telão não são da mesma natureza que a Natureza ao passo que os sons são da mesma natureza. Aquilo que o telão nos dá como sons é da natureza do som ao passo que a imagem não é da natureza da Natureza.

Música como rádio. Para contar um causo. Dizer e tentar ir além do que diz uma poesia, sonorizando-a, pois é a forma de escrita mais próxima da arte dos sons. Nasci com ela, conheço-a bem, agora faço-a.

Espetáculos e reportagens, depois o rock, para que foi feita, como demonstra George Lucas, e os jóqueis se põem a galopar sobre aquele ritmo estonteante em Top 40 até surgir o FM, Tom Donahue e a revolussom: ganha força também o material menos palatável, muito melhor do ponto de vista ‘lírico’ que é por si mesmo documental e comentário vocal e instrumental/sonoro, e bem assim o documentário, reportagem desde A Guerra dos Mundos, com forte influência do neo-realismo nos melhores momentos no pós-guerra. Quando trabalhava como jornalista na BBC o poeta Dylan Thomas escreveu Under Milk Wood, um ‘drama radiofônico’ com texto em prosa, poesia e canções em que evocou a vida numa cidade imaginária da sua costa galesa natal.

Ao ler e ser informado sobre isso tomo melhor tino de um meio muito mais complexo e abrangente que o emissor de folhetins, programas humorísticos, noticiário e música que cresci ouvindo. Algumas emissões são já pós-modernas, fazendo a síntese da matéria dada & dadá, como Campus, de Michel Lancelot, na Radio Europe 1, que passa em revista, dos mais variados ângulos e com estilo e forma claros e diretos que seria impossível empregar em Portugal, os acontecimentos mais emocionantes dos anos 50 e 60: o ‘regresso às origens’, a luta contra a segregação racial, o movimento estudantil, a luta armada de norte a sul das Américas. Ou as reportagens que Adelino Gomes produz no Página 1 da Rádio Renascença: um repórter inato com um extraordinário dom de elocução mesmo quando transmite de um telefone de beira de estrada, como durante o Rallye Paris-Persépolis-Paris.

Num sentido completamente diferente não deixa de ser também impactante o estilo sofisticado do Em Órbita, do Rádio Clube Português, que faz escola em matéria de padrão radiofônico em FM pelo rigor e clareza dos breves textos que o ator-locutor Cândido Mota debita e, como os textos, o conteúdo musical bastante ‘elitista’ mas que cativa, ao mesmo passo em que até enerva, pela depuração e o bom gosto, folk song, folk-rock e country-rock; rock barulhento, rock mesmo, nenhum. O cada vez mais obscuro e obscurantista Bob Dylan como papa.

 

 

  Meu pretoguês causa assombro, não raro me perguntam mas o que é que estás praí a dizer quando carrego no sotaque de pivete carioca tipo é mêmo e falo com erres de brônquios acatarrados e ésses arrastados em chiados. Logo me apercebo que se a minha é a de ser disc jóquei tenho de aprender a roçar a língua na das alfacinhas, quase sem exceção pequeninas como as melhores sardinhas. E como é difícil. Não s’rá m’lhorrr desistir de vez, ou s’rá m’lhor insistire? Chiados de tês e dês dançam, ficam o tê e o dê ‘à inglesa’ ou ‘à francesa’ numa salganhada em que pululam expressões mal pronunciadas por vício de uma vida a falar o português coloquial errado de todo brasileiro médio, como quando digo ‘compania’.

     Não tenho a voz colocada e empostada mas isso aprende-se. O tom de voz é meloso e suave, mas ainda não perdi a mania de emiti-la em falseto, e preciso de pensar duas vezes antes de empostá-la. Mas a pronúncia abrasileirada de português forçado, além do nervosismo, são decisivos e sou reprovado na prova de voz, um duro golpe em minha repentina pretensão de me tornar disc jóquei, ou deejei, e que me força a ter de optar por um curso de sonoplastia. Três pratos de vitrola para treinar, primeiro firmeza na mão e nos dedos para segurar as bolachinhas de 45, as bolachas maiores de 78 e os bolachões de 33 rpm enquanto o prato gira, para não alterar a velocidade, com especial cuidado pelo fato de, em função do uso, os orifícios centrais das bolachas poderem estar arreganhados e não as fazer tremer, produzindo ruídos quando o volume está no máximo, pronto para o acetato ser disparado com o som a toda. Aprender a fazer fade-ins e fade-outs. Misturar sons jogando com tonalidades similares ou antagônicas ou os compassos de uma ou outra música. Passo com louvor na prova final e num piscar de olhos sou chefe dos Serviços Musicais e de Montagem, com direito à realização de programas diários e semanais. ‘Twixt the turntables pulling the triggers on the forty-fives and thirty-threes and seventy-eights.

     O ambiente do dia-a-dia, entre técnicos, locutores e sonorizadores, estudantes e ex-estudantes, é de escola de adolescentes com tutor, o diplomata Álvaro Gonçalves Pereira, Diretor de Produção que faz os papéis de manter ordem na casa e de censor. Só se improvisa na apresentação de discos. Tudo o mais é escrito e submetido à censura prévia interna. Como programador musical tenho também a missão de escrever a apresentação de uma canção recém-lançada como uma das atrações de um programa dominical. Num domingo escolho Lady D’Arbanville, com que Cat Stevens surpreende ao relançar-se no showbiz como baladeiro-trovador, após uma primeira fase pop. O novel bardo derrama-se sobre um caso amoroso com uma jovem filha da bela nobreza francesa candidata a atriz, ou vice-versa. Tudo muito insípido, como a própria musiquinha que o futuro muçulmano Yusuf Islam irá por certo colocar no rol dos seus sucessos condenáveis - não pela má qualidade, o que até seria lógico, mas por desrespeitar os preceitos do Corão. Capricho no texto de apresentação sobre o entrecho e os bastidores da canção do anglo-grego de voz fanhosa, cujo affair pode também ser interpretado como mais uma prova da possibilidade de rompimento de barreiras sociais por que a nova geração luta, ou vice-versa. Finda a emissão sou chamado ao telefone, de onde uma jovem ouvinte fala da sua emoção pelo que acaba de ouvir, num monólogo tão envolvente que só termina seis horas depois, comigo deitado no carpete da sala de casa marcando um encontro para ir assistir Let it Be dos Beatles.

 Going Back  de Gerry Goffin-Carole King por The Byrds 

I think I’m returning to                         Parece que estou voltando

those days when I was young         aos dias em que era jovem

enough to know the truth            bastante para saber a verdade

I think I’m returning to when       Parece que estou voltando

I wasn’t afraid to reach out        ao tempo em que não temia

   to a friend           dar a mão a um amigo 

    

     O encontro é no ponto final do ônibus de Alfavila, na Rotunda. Desce esbaforida, o rosto banhado em lágrimas – Edgar, Edgar, Janis Joplin morreu, centelha para um súbito enleamento.

O Grande Hendrix se foi há poucas semanas. Agora é a vez da feia, arrepiante mas enternecedora Janis de ‘emoções baratas’.

     De mãos dadas suando também pelo calor de Verão de São Martinho, quando antes da chegada do primeiro friozinho Portugal passa por um breve veranico, subimos a Fontes Pereira de Melo até o Saldanha.

Fora talvez a performance final de One After 909, Let it Be não é propriamente um filme para pôr os espíritos em alta, com aquele clima de cerimônia fúnebre de final de um sonho em que embarcou a juventude de meio mundo, porque Leonid Brejnev e Mao Tsé-Tung mantêm a outra metade sob mão-de-ferro. Passamos todo o tempo de mãos dadas e em dois dias lá estou eu de novo esperando o ônibus que a traz de onde mora com o pai viúvo e um irmãozinho temporão.

     Subimos o Parque Eduardo VII até o café ao ar livre, onde mal prestamos atenção ao vasto panorama até o rio Tejo, banhado por um magnífico sol de meio da tarde enquanto tomamos chá preto, os olhos em close um no outro.

- Acho que nunca gostei tanto assim de um momento e de um lugar – diz ela num instante de maior ternura, inclinando o tronco do encosto da cadeira de ferro a descerrar os incisivos encavalitados e abrindo descomunalmente os olhos atrás das grossíssimas lentes dos óculos que uma miopia abissal a obriga a portar, o todo produzindo uma expressão que poderia ser aterradora não fosse a ternura que evola dos olhos castanhos e o clima de encantamento produzido pelo seu discurso envolvente.

      

O sistema colonial no Brasil fez com que escultores mulatos copiassem à risca o modelo estético europeu, de modo que até os querubins de altares e púlpitos das igrejas barrocas têm as caras rechonchudas e os cabelos louros encaracolados dos originais do Velho Continente, um modelo de gente que a própria terra quase não (re)produzia à época, por falta de homens e mulheres com esse tipo físico, e por demais contrastante com a fisionomia dos curumins e pardos de patente local. A magreza do então astro nascente Caetano Veloso, como que reproduzindo o modelo de mulato pele-e-osso de fome, me serviu de anteparo e me deu cobertura na adolescência esquelética, em que meus longos gambitos superiores e inferiores sempre foram motivo de chacota de colegas e amigos. Talvez essa diferença substancial tenha influído também na atitude de carregar nas tintas da diferenciação, deixando crescer barba e cabelo e me vestindo à teddy-boy e hippie de butique, ou pouco mais ou menos, como um dandy de pré-fim-de-século. Caetano foi além quando se pôs a defender a irmã, alvo de chacotas mais ou menos veladas por não ser o modelo de beleza à medida dos padrões estabelecidos para as misses, modelo ainda e sempre prevalecente no seu país, que juntamente com o futebol também no campo dos concursos internacionais de beleza está sempre a dois centímetros de mais um título ‘universal’. Propondo-me então a fincar o pé por uma revolução do regime de vida vigente, que esse seja também para mim um novo anti(porque tudo tem de ser anti)paradigma daquele que não se importa com as aparências, estando muito mais ligado ao miolo – a tal beleza interior. Há uma associação entre esse tipo de ‘amor novo’, diferente ou diferenciado do da velha geração, e a atitude ingênua e sã em que baseio um posicionamento ideal diversificado face ao relacionamento amoroso. Afinal um sonho velho também esse – reinventar o amor, o de todo poeta, mas as motivações dos anos 60 ainda valem e nelas continuo também bebendo para reforçar o ideal de um homem aberto/novo.

À primeira vista nada a diferencia de uma estudante secundária qualquer, a não ser talvez seu profundo envolvimento com o rock. Garotas que gostam de rock há por aí aos montes, mas ela fala como um connaisseur que se interessa não só pela música mas pelo que sons e atitudes de quem a faz representam. À minha imagem de leitor de hebdomadários ingleses, americanos e franceses, que me mantêm ao corrente de tudo o que se passa. A propósito da minha barba inculta e do meu biotipo põe-se a falar com grande intimidade de Peter Green, um dos meus músicos preferidos.

     Mãos dadas entre e sobre os braços das cadeiras logo combinamos ser amigos e que, além de nos encontrarmos, nos falaremos sempre por telefone e nos escreveremos – em inglês, impõe ela.

     - Vamos vincar a nossa diferença e a diferença da nossa relação. Somos diferentes, por enquanto parte de uma minoria que quer construir um mundo novo, onde reine a paz e a harmonia entre todos os seres humanos – proclama, antes de propor que mudemos de nome.

      - E que nome você teria?

     - April. April Sun.

- April Sun – bonito nome.

- E tu vais te chamar Eric.

- Eric?! E por quê Eric?!

- Porque é um nome viking, do tempo e dos lugares de onde vêm todas aquelas histórias maravilhosas de duendes e gnomos, de druidas e duendes da floresta, de um imaginário mágico, cósmico, e que se adapta bem à tua figura e aos teus ideais de pureza. E depois é o nome de Clapton, que amamos muito, não é verdade? Eric Sun. April e Eric Sun! Vamos construir um mundo maravilhoso à nossa volta!

     Ao chegar em casa corre para o quarto, acende duas velas sobre a escrivaninha e me escreve a primeira carta, em que diz que, se bem que inspirado nas lendas e em Clapton, aquele Eric não lhe saiu tão espontâneo: era o nome de um personagem que inventou para ser seu ‘imaginary lover’, que foi preso por se recusar a ir para a guerra ‘matar os seus irmãos’. Eric Bohannan.

 

É a minha vez de pegar o ônibus e ir ao seu encontro em Alfavila, no ponto em frente a um pequeno shopping que serve de eixo entre o dormitório que começa a crescer do outro lado da estrada e o pequeno bairro de modernos sobrados geminados que parece reproduzir o ideal do sonho americano de confortáveis refúgios suburbanos de classe média, mas que tende a dar origem a uma franja do vasto emaranhado de prédios uniformizados, drugstores e shoppings em que começa a transformar-se a periferia de Lisboa que, embora em aparência fechada a todo tipo de influências externas, está já sendo ocupada por pequenos templos de consumo acelerado, quais supermarkets, snack-bares, drugstores e cinemas de bolso.

          

     Alfavila é ainda recanto quase bucólico, porque as colinas em volta e sobranceiras à estrada Lisboa-Sintra quase não têm vestígios de civilização, além de dois moinhos em ruínas, refúgios dos poucos jovens ‘bem’ da localidade. Ali passamos tardes inteiras namorando e falando dos nossos sonhos. Ela tem um violão em que entre uma coisa e outra fico dedilhando uma das poucas coisas que sei tocar, porque toda baseada num riff de quatro notas, Love Like a Man, de Alvin Lee. Um cobertor, às vezes um livro que ela também leva, nenhum barulho além do vento e dos carros que passam ao longe, April divaga:

Pensa na nossa estrada larga, cheia de canções, guitarras, sorrisos, crianças e muito amor, com um veleiro de madeira cheio de amor.

     E como o preceptor a Emílio:

Somos a gente boa da nova geração abençoada. Temos de mostrar-lhes como somos diferentes: novos e abençoados. Chegaremos lá, meu amor, ao topo da montanha. E então, talvez antes do que pensas, seremos livres de verdade, dentro de nós, porque essa é a única liberdade que podemos preservar e manter. Faremos deste amor uma coisa nova e construiremos à sua volta um mundo aberto a todo mundo.

      

Nosso affair é selado num magusto, festa típica da estação turbinada por um vinho muito leve da região de Lisboa e castanhas assadas, numa noite de sábado no espaço condominial de um dos primeiros prédios da urbanização que brota do outro lado da estrada, abaixo do centro comercial, entre esqueletos de futuros espigões que se erguem à sua volta como assombrações: castanhas assadas, água-pé, fogueira, Neil Young, sobretudo muito Neil Young, entre os jovens, num canto, há quem ‘puxe um fumo’, mas não quero dar nas vistas logo à chegada, nem sei como April reagiria, porque enquanto o grupo fuma ela se mantém agarrada a mim sorrindo um sorriso cúmplice mas dando a entender que não quer nada com aquilo e nem ligo por deixar de ‘tirar um sarro’ após semanas de jejum.

 

 

Entre os programinhas que faço na RU em pouco tempo decido dar uma de Eric e lanço um mais à minha imagem e semelhança – Écloga, de início para transmitir o sentimento de bonomia e bucolismo em que baseio minha atitude de partida para cada dia (o resto se verá), com o apoio bibliográfico de April e música apropriada, ‘clássica’ ou rock tipo acid, folk ou country. Num ‘apontamento’ um naco de prosa de Kerouac, em outro trecho do Cântico dos Cânticos, em mais outro um protesto manso contra a reação das pessoas ao meu cabelo ‘revoltado’, enfim, até Samuel Usque em Saudações às Atribulações de Israel.

     Daí parto para o sociologismo e, numa tirada inédita em Portugal, desato a tentar difundir ideias da contracultura. O passo é mais longo que as pernas, sobretudo pelas limitações do meio.

Liberdade de reunião - zero, mas nos nichos giza-se a contestação em uma ou outra faculdade e célula clandestina. Não tenho nem perfeita consciência do que se deve ou não dizer, calar ou insinuar nas entrelinhas. E como que inconscientemente começo a chutar ideias.

Numa tarde um técnico lembra-se, vai ao arquivo e mostra uma gravação de uma das raríssimas transmissões ao vivo durante as breves emissões da RU, em que se me revela em pleno até onde pode chegar o poder da metáfora. Trata-se de um jogo de rugby CDUL-Direito em plena campanha grevista Direito 69 e Adelino Gomes, que nunca foi de gostar de bola, faz o relato como se fosse uma extensão do prélio político-estudantil entre a Reitoria da Universidade de Lisboa (o regime, representado pelo Centro Desportivo Universitário de Lisboa) e a associação de estudantes da sua Faculdade de Direito (a oposição).

Écloga me permite sentir pela primeira vez na carne os limites do exercício da profissão. Álvaro Gonçalves Pereira, com toda a jactância e sem lápis azul mas com uma Bic ponta fina da mesma cor que lhe estendi, inclinando-se sobre o pequeno maço de folhas de emissão pautadas com o símbolo das quinas da bufa ao alto à esquerda e descerrando a cortina para abrir a grande e alva dentadura:

- Isto, convenhamos, não tem lógica, não pode ser dito assim.

Tem toda a lógica, associada à subversão, num campo mais vasto e perigoso, porque em princípio apolítico e – pior – também político. O texto – ingênuo, patético? Delírios? Devaneios? Seja como for, cortam porque querem afastar qualquer hipótese de uma idéia do gênero ganhar força.

Écloga 18-3-71 – a evolução do homem e, agora, o seu incansável procurar; a pesquisa do que há a fazer para que o Homem possa acompanhar as rotações que ele mesmo imprimiu à vida dos que nesta era vivem, a partir de recém-editado The Human Zoo e de The Naked Ape de Desmond Morris – as comunidades pseudo primitivas; o retrocesso do Homem às suas origens; o incessante procurar na certeza do passado a resposta à incógnita que se lhe apresenta ao olhar para o seu futuro.

O que ele corta com riscos em círculo para borrar:

Pergunta:

 Qual é a diferença entre um grupo de nativos negros esquartejando um missionário branco e uma turba de brancos linchando um negro indefeso?

  Com uma grande cruz:

     Os feriados pagos, o trabalho, o seguro no desemprego, nada disso lhe diz respeito. Ele é de outro mundo, vai mais além do que nós, simplesmente para afirmar que a nossa vida não lhe interessa.

     Ao fazê-lo exprime a sua oposição constante a um modo de vida, uma civilização que a todos os níveis lhe inspira náuseas.

      Prossegue logo, mas aí acaba a cruz em X e há um traço até o fim do trecho antes da música:

     Ele tem a constante preocupação de exprimir o seu profundo desacordo com uma civilização que apenas considera o indivíduo em função do seu poder de compra, e portanto de consumo.

     O beatnik, puro produto de uma sociedade super-desenvolvida, não gosta desta civilização ao ponto de querer modificá-la radicalmente e de fazer tremer as bases do novo continente. A sua ambição limita-se a exigir uma sensível modificação das estruturas sociais, com o único objetivo de permitir a expressão dos seus próprios valores no quadro de uma civilização industrial.

     E mais adiante, com um risco mais fraco a circundar:

     Organizados segundo uma forma tribal copiada dos Índios em ‘comunas rurais’, os hippies reaprendem a viver em sociedade, mas fora das leis que regem a sociedade oficial americana. Assim nasceram quarenta aldeias do Canadá ao México, ao longo dos Estados Unidos; os membros da tribo cultivam as hortas, trabalham a madeira, entregam-se à serigrafia, fabricam objetos, redigem e compõem  magazines.

     Os diggers fornecem alojamento gratuito e alimentação aos adeptos desindinheirados de São Francisco, Los Angeles, Greenwich Village e Boston. Na Costa Oeste, a cooperativa Hip Job, onde estão inscritos 6 000 hippies desempregados, esforça-se por não competir com o Halb (serviços jurídicos de Haight-Ashbury) que se propõe ir em socorro dos drogados.

Tenho a sensação de que está me tirando um pedaço da pele e dá ainda mais raiva porque ri. O primeiro corte. Poderia fazê-lo longe, numa sala da direção ou em outro lugar qualquer, não ao meu lado, com a minha caneta, pondo a mão no meu ombro...

 

 

No moinho de April, envoltos em cobertores sob o pálido sol das tardes invernosas, ou cada um em sua casa, eu sempre com os pés quase queimando junto ao aquecedor elétrico, por umas duas semanas envoltos no trip de When The Music Is Over, de Jim Morrison, prosseguimos os estudos agora a seis mãos sobre Aldous Huxley e o Movimento estudando tudo o que ela encontra em casa dele e sobre eles e quilos de material de pesquisa do que há a fazer para que o Homem possa acompanhar as rotações que ele mesmo imprimiu à vida dos que nesta era vivem, por quase todos os campos do pensamento, porque o autor a isso obriga. Entre uma coisa e outra por vários meses me abstraio ainda mais da realidade em volta. Vivo nOutros Mundos. Os rascunhos de uns e outros são intercambiados, emendados e colados, por carta, de Alfavila a Lisboa e Londres, de onde Jimi me manda exemplar de nova edição conjunta de bolso de The Doors of Perception e Heaven and Hell.

Lemos sofregamente, fascinados pela escrita cristalina do autor e aturdidos pela catadupa de informações sobre matérias com que não temos nenhuma intimidade, salvo as questões relacionadas a Bergson, de que captei os princípios básicos em bibliotecas londrinas com Jimi em frenéticas pesquisas direcionadas para os assuntos que Huxley aborda. Jimi comenta numa carta de Londres em que manda notas a partir de The Devils of Loudon: Por aqui verás que aquelas poucas aulas sobre os clássicos não foram em vão.

Na nossa primeira conversa sobre o assunto April diz que nunca experimentou nenhuma droga e, em princípio e ao que concluímos por princípio, não pretende experimentar. Abro o jogo e digo que já fumei bastante marijuana e haxixe mas de outras drogas só sei do que li em tudo o que nos caiu no colo nos últimos três anos e sobretudo nas últimas três semanas em Londres, em que passei tardes inteiras sozinho e com Jimi em bibliotecas folheando jornais, revistas e livros ingleses e americanos sobre o assunto, o que não é muito mas já deu para entender mais ou menos do que se trata.

 

 Rola um clima de encantamento e erotismo ingênuo próprio da idade mas também de transe místico e sofisticação decorrente das confabulações de April, do Cabochard que usa em ocasiões especiais e da violeta murcha que depõe entre as páginas do Opium de Cocteau, que também exalam a finíssima essência do perfume de madame Grès, equilíbrio perfeito, por mistura paciente e depurada, de essência da madeira e aroma e néctar da flor. Sagaz, nas tardes de paixão incandescente no moinho não me deixa ir além dos beijos nos mamilos túrgidos e no ventre.


  

Aos 17 anos exercita sua quota de expectativa e esperança com intensidade inaudita, que se poderia pensar até em loucura, não fosse uma ainda adolescente eventualmente em crise com o pai mas tudo somado normal até demais, aplicada nos estudos e consciente do que pode e quer fazer em relação a sexo.

     Qualquer Brooks, Minelli ou Kazan faria destas cenas um esplendor na relva, um Some Came Running ou um doce pássaro da juventude sem golpes mortais ou cortes fatais, só a parte da ingenuidade, da ambição por outras glórias, singelas e pessoais, como ver uma novela publicada na Atlantic Monthly, saber de cor um ou dois poemas de Shelley ou viver em paz e sossego numa comunidade a fundar em Santa Bárbara, Califórnia. 

    O ônibus, mais antigo e menor que o Greyhound da abertura do épico de Minelli, deixa o cenário aberto aos pés do Parque Eduardo VII, sobe a Rua Castilho e alcança a auto-estrada da Parede e é inundado pelas sombras da Serra de Monsanto até chegar a Alfavila, onde ela me espera em frente ao shopping e dali, de mãos dadas ou a abraçando-nos, vamos até sua casa, quando o pai está fora, e ficamos no jardim tomando chá, ou até o moinho, para sessões de lirismo, fantasia e acessos de paixão controlada, enquanto miramos do alto sobre o descampado os carros que circulam na estrada de Sintra.

  

     April descola desses arrebatamentos para longos discursos sobre os seus projetos para os dois:

  

    - Imagina. Vai ser o lugar de April e Eric. O nosso amigo Jimi vai se sentar na sua cama e dizer: ‘Ôpa, tou tão angustiado. Por que é que essas coisas me vêm à cabeça? Por que é que estou tão só? Bem, acho que vou até a casa de April. Eles haverão de me ajudar.’ Ele dirigirá até nossa floresta e depois seguirá a pé ‘porque tudo aqui é tão bonito e agradável’. E eu irei lhe dar as boas-vindas beijando-o e irei chamar-te: ‘Aôô, Eric Sun, desce daí, Jimi está aqui.’ Deixarás os teus discos de lado e irás sentar-te na relva de pernas cruzadas com o teu cabelo muito comprido ondulando ao vento e os teus olhos muito puros e volúveis e o teu peito acariciado pelo sol. Irei também com minha túnica bem comprida e sentados na relva falaremos sobre a mensagem que o vento traz, sobre os mistérios da nossa mente e eventualmente sobre o último disco de P.A. Green ou sobre o concerto dos Steppenwolf que vimos. Para o almoço teremos vegetais, leite e torta de maçã e pela tardinha mais amigos virão (os que moram perto e costumam vir todas as tardes) e juntos faremos uma jam session com música ou teatro. Lá pelas seis todos se despedirão até o dia seguinte, dirigirás até a cidade para preparar o teu programa e irei caminhar com Jimi e as crianças ou irei contigo ou farei outra coisa qualquer. E na manhã seguinte não te esqueças de me avisar que é dia de lavar o cabelo. Lavarei o teu se em troca lavares o meu.

 

No sétimo céu, nas nuvens, em êxtase pelo clima excepcional que me provoca o enlace com April Sun, logo crispo com cenas de ter...rir. Baldeando-me do ônibus que me traz de Alfavila para a Estefânia, à aproximação do ônibus o chofer finge que vai parar para me deixar subir e acelera. Alço a mão e ponho só o dedo médio em riste, o primeiro gesto que aprendi em Lisboa.

     April não aprova as reações iradas e a atitude irriquieta de Eric face ao mundo hostil: somos parte de uma nova geração, com uma nova atitude, novas maneiras, que conquistará o mundo pela ternura, o convencimento, por meios pacíficos, não violentos.

 

I understand more than never your personal hell but we have to fight our war with a flower in one hand and a flute in the other... and only if you win this war you’re gonna be a real man, a pure and gentle hippy.

     Que entende mais que nunca o meu inferno pessoal... mas temos de lutar nossa guerra com uma flor numa mão e a flauta na outra... e só se vencer esta guerra serei um verdadeiro homem, um puro e doce - Hippy, eu?!

     Esquizóide, talvez, é muito melhor do que neurótica ou paranóica. Menina bem, de muito bem, entre lençóis macios, de luvas para ler revistas e jornais internacionais de grande informação (imagine-se, L’Express, Time, Newsweek...) e não sujar as mãos, lençóis, travesseiro e camisa de noite, banhos de sais e coisas que tais, com um universo tão expandido mas até que ponto ainda atracada ao mundo dos pais, num mero acesso de rebeldia juvenil, embora na melhor era e de posse de todos os dados para idealizá-la da forma mais envolvente, graças à bela biblioteca do pai, com todos os clássicos e contemporâneos necessários para dar lastro e asas aos sonhos e à imaginação além deles.

A maior parte da música que ouve – e que a arrebata para o hemisfério dos sonhos, devaneios, delírios – após os deveres e antes de dormir brota do Em Órbita: 

it’s a brand new day, there’s something in the air, I can feel it growing every minute Al Kooper; 

we are stardust, we are golden and we got to get ourselves back to the garden – Joni Mitchell; 

the river flows, it flows to the sea, wherever that river goes, that’s where I wanna be – the Byrds; 

you know who I am, I follow the sun, well I am the one who loves changing from nothing to one  ou 

the sun poors down in our lady of the harbour – Leonard Cohen;

thinking is the best way to travel – The Moody Blues; 

People are dancin’ on the streets, that’s the revolution, our revolution. Our generation got new, our generation got soul. This generation got nothing to hold – Jefferson Airplane; 

lay down, lay down, lay it all down, let your white bird smile up at the one who stands around – Melanie; 

Guinevere genebrina virgem, virginal had blue eyes, like yours, m’lady, like yours – Crosby, Stills & Nash.

Eric Galahad, o mais puro dos cavaleiros do rei Artur, encontrará o cálice do Graal? Ilhas mais ou menos distantes, míticas terras do norte e Arábia das mil e uma noites, romances de cavalaria – o seu côté celta láaa do fundo, dos pais de toda a ficção, com uns quantos mitos gregos e contos árabes à mistura. Bebe afinal nas fontes da origem da raça, de que mal se ouve falar talvez porque a prosápia do regime relegou-as às calendas para exaltar apenas os capítulos em que já somos donos de meio mundo e de História estão este e o outro cheios.

Atrás dos envelopes das cartas que lhe envia quase todos os dias, quer se encontrem ou não, símbolos da paz, dizeres como Make love, not war, because war is ugly and love is lovely e trechos de poemas e canções:

 

I can’t stand guns anymore          Não suporto mais tantas armas

I can’t stand screams anymore                     e tantos gritos

I can’t stand pain anymore            não suporto mais tanta dor

It’s gotta stop, it’s gotta              Há que se parar, há que

                          change                         mudar

it can’t go on                        não dá para continuar assim

find a way, I know you can           encontra um caminho, tente

I give you my hand                       dou-lhe a minha mão

Sail Away, sail away home                Veleje, veleje até casa

                  John Denver

 

Isn’t it a pity, isn’t it                    Não é uma pena, não é uma

a shame                       vergonha

how we break each other’s heart           que se viva partindo corações

and cause each other pain                    e se machucando um ao outro

                    George Harrison

 

But next time will be a                      Mas da próxima vez será

different day                                       diferente

and I’ll walk down my road                   e seguirei o meu caminho

  somewhere                                     algures

between the unseen green                     entre o verde imprevisto

and the jet blank plain                      e a planura indecifrável

and I’ll sing my song                        e cantarei minha canção

like a rebel wild                            como um rebelde selvagem

for it’s what I am and                       porque é isso que sou

I can’t deny                       e não posso negar

but at least I know now                      mas ao menos agora sei   

not to hurt, not to push,                    não magoar, não empurrar,

not to ache and God knows...                 não padecer e sabe Deus...

not to cry                                   não chorar

                        Bob Dylan

 

Where art thou, beloved                     O que engendras, terno

To-morrow?                                A-manhã?

When young and old, and                     Enquanto jovem e velho, e

strong and weak,                           forte e fraco,

Rich and poor, through joy                  Rico e teso, por dor

and sorrow,                           e manha,

Thy sweet smiles we ever                    Vive no teu doce

seek, -                        embalo, -

In thy place – ah!                          A sonhar que – ah!

Well-a-day!                 Um belo dia!

We find the thing we fled –                 Irá viver a

To-day.                          – Utopia.

        Percy B. Shelley em 1821

 

            As moradas de onde April assina as cartas são bases de devaneios e delírios: April Sun, Celtic Rock’s House, Market of Joy; April Sun, Happiness Road, Market of Joy, St. Barbara, California, U.S.A.

     Na cabeça também, claro, a mitologia da estrada e a saga dos chamados easy riders, não intuindo sequer que ele já é um: citação de excerto de The only living boy in New York, introdução: My dear easy rider e citação de Kerouac – On the road como preâmbulo de mais uma viagem:

   Viajei até o mundo de nossos pais, os beatniks... Dos beats aos easy riders e a Woodstock... O templo deles era um bar com whisky e garotas... um outro mundo de perdição... o nosso deus é o vento e as grandes árvores sagradas da floresta onde fundaremos a comunidade dos meus sonhos e viajaremos através dos tempos em que as pessoas eram puras e dançavam em volta da fogueira para reverenciar o seu deus.

 

 

The wind blows outside 

And through the open window  

I can hear the distant songs

                 it brings

Songs of peace, war, youth,  death...

And the wind still calls me!...

And there I can hear the holly song 

of some easy riders seatin’ around 

the fire, talking about life

        and dreams     

Making jokes about their past 

And drinking coffee just to

            warm their bones 

Cause their gay talks keep

their souls warm  

They are the prophets of  

       the rivers, the saints

of the woods and the rains

And I’d like to be

with those lonesome men 

And I’d like to be there with you      

and hear their stories 

Those are the songs the wind

brings to me tonight 

And there’s another one 

It’s a forgotten song 

God has sung a long time ago 

When the world was created.  

No one ever sung it afterwards 

But now here it comes. 

It’s sung by millions of young  

   voices      

It’s the holly song of peace  and love 

A song that tells how man can

                 be pure  

That talks about rivers, fountains

              and high hills 

That shows how life is simple

and free

The sacred song of the earth,

of its perfums and its flowers 

the song of the sun and of rain 

 

O vento sopra lá fora

E pela janela aberta

Posso ouvir as canções

longevas que ele traz

Canções de paz, guerra, juvenília,

                                 morte...

E o vento por mim clama!...

E posso ouvir a canção sagrada

de alguns easy riders

                  sentados em volta

do fogo, a falar da vida e de sonhos

Fazendo troça do seu passado

E tomando café só para

         esquentar os ossos

Porque para esquentar a alma

        basta conversar

São os profetas dos rios

      os santos dos bosques

      e das chuvas

E bem que eu gostaria

     de estar lá com eles

E gostaria de lá estar com você

ouvindo suas histórias

São essas as canções que

  o vento me traz esta noite

Mas há um’outra ainda

Uma canção esquecida que

Deus cantou há muito tempo

Quando o mundo foi criado.

Ninguém mais a cantou

E agora ela revém.

Cantada por milhões de vozes

   jovens

É a sagrada canção de paz e amor

Canção que conta que o

    homem pode ser puro

Que fala de rios, fontes e

             altos relevos

Que mostra como a vida é

             simples e livre

A sagrada canção da terra,

dos seus perfumes e flores

canção do sol e de chuva

 

 

 

De todo modo a abrir em Portugal um oásis de fantasia num deserto de mesmice. Tivesse eu disponibilidade – e imaginação – e embarcaria num veleiro furado como esse com ela, mas vivo afligido pela consciência de que, mais que meu interior, o que tenho de mudar é a minha conjuntura de vida – pés assentes na realidade porque não tenho o mínimo de liberdade, de condições para voar, enquanto engendro a maneira de viver melhor do meu jeito – e então sim construir os castelos mágicos com minha dama da ilha, como Willie Nash. O vento norte traz festas a deuses pagãos e dores de tristeza milenar, o do sul sonhos de mil e uma noites, e eles não sabem que a Oeste um novo mundo está nascendo. April começa a não gostar do que pressente - de que não será esse Eric a resgatá-la da modorra aquém do seu mundo particular para o dos seus sonhos:

 

You know I’d like to stay here

Until every tear run dry

My lady of the island

     Graham Willie Nash

Nash Mitchell Sebastian

 

    Imagino estar numa ilha nua coberta de nevoeiro. Há uma floresta ao longe, posso ver o topo das árvores através dos olhos nevoentos e feridos dos meus sonhos. Mas para chegar à floresta tenho de atravessar uma ponte de velhas pedras cinzentas e tenho medo de prosseguir. Por isso, construí uma casa de madeira perto da ponte e aqui estou esperando que uma mão me ajude a atravessá-la. A cada manhã vou até o rio, vestida de vermelho, com uma vela na mão gelada para ver o mar esperando uma gaivota perdida vinda de outras praias douradas. Mas há dias vi através da nevoenta manhã um veleiro... conduzido por um solitário marinheiro encantado chamado Eric Sun. Acenei-lhe e gritei o meu nome e ele gritou ‘Vou tentar aproximar-me de ti, lady. Chegaremos à floresta porque somos tão jovens e bonitos. O mundo está todo lá na floresta e é onde eu quero estar. Espere mais um pouco, minha dama da ilha!...’ Mas os dias se passaram e o veleiro continua navegando em volta da ilha em busca de um porto. Há muito vento por aqui e estou prestes a congelar, sozinha com os meus pensamentos. Há tanto nevoeiro que o marinheiro deverá levar muito tempo para vir beijar a minha solidão. E aqui estou eu numa verde e nevoenta ilha. Todo dia brota uma nova esperança e a cada dia alguma coisa morre. A cada manhã vou até a praia com uma vela na minha mão gelada e grito ‘Olá-ô, o que há de novo?’ ao meu doce marinheiro e a cada manhã os seus beijos longos e ternos acariciam minha face através do nevoeiro e do vento frio. A cada noite acendo uma fogueira para iluminar o seu coração distante e em cada sonho toco a liberdade do seu cabelo. Sei que um dia chegará para me levar. Até lá não há nada que eu possa fazer, além de acender uma vela e dançar no meu sonho encantado.

 


          

                                                                       Joni Mitchell          Setephen Stills             em uma ilha em 1971

 

Go, take a sister and by the hand              Tome a mão de uma irmã

Lead her away from this foreign land           E leve-a para longe desta terra estranha

Far away where we might laugh again            Longe, onde possamos rir de novo

We are leaving, you don’t need us              Não temos nada a fazer aqui

                Era o que ela queria, ainda que acordada quase só olhe para a realidade nua e crua e assuma afinal uma atitude quadrada. Quando se fala sobre tal hipótese ela descarta sem pejo qualquer atitude de rompimento do tipo she’s leaving home. Mas se quer reforçar o seu projeto de vida baseado num curso de psicologia na Universidade de Berkeley – pelo que ela representa como baluarte de contestação do Establishment universitário e do pacifismo e como prolongamento, no campus, das experiências psicodélicas iniciadas pelo papa do LSD Timothy Leary - não é decerto o que dou, e certa noite, após reouvir Volunteers, dispara: sem novos conhecimentos e informações não serei nada e nós...

 

... ainda não somos voluntários de nada e precisamos apressar-nos rumo à feliz terra dos espíritos livres enquanto é tempo. Temos de caminhar no ‘New Morning Moment’ a sorrir para as pessoas, simpáticos, diferentes, mas precisamos primeiro abrir-nos um ao outro se quisermos encontrar um verdadeiro amor.

    Vem a primeira crise, em que se revela uma fera e ele não entende o motivo da rebelião. Logo se arrepende e volta atrás, após mais um chá com o seu ‘deus de promessas’, e a dar o máximo em imaginação, do alto da sua torre observando o mundo aqui embaixo,

among the noises and neonlight gods

entre ruídos e deuses de luz néon (neonlight gods entreouvidos em Simon & Garfunkel) apontando-lhe o caminho:

 

     Nossa viagem para encontrar o mundo... nossa bela pequena casa e nosso verde e mágico bosque. Nossos filhos, Eric. ‘Amo Mamãe... É tão doce, veste-se de um modo diferente, sabe uma enormidade de belos contos, tem uma moto, caminha de mãos dadas com o Papai e ama todo mundo.’ Imagina Jason ou Jethro ou Marigold ou Joanna falando de nós aos outros guris na escola: ‘Mamãe e Papai são formidáveis. Papai tem um cabelão e explica tudinho e nunca diz porque quero. Mamãe escreve belos contos e poemas e Papai toca flauta e violão e trabalha toda as noites na Radio Peace... e ri muita alto quando eles falam sobre a terra de onde vêm e quando Mamãe fala sobre uma dama chamada Lady D’Arban... alguma coisa os faz olhar carinhosamente um para o outro.’ E navegaremos até algum rio no Colorado...

 I’m light and I’m glad                   Sou uma luz feliz

I’m not night              por não ser noite

But my light is my loneliness     Mas a luz é solidão

I can only accept                   Só posso conceber

a dancing God              um Deus dançarino

 

 (dancing God entreouvido em Nietzsche, é claro) 

            Embora, ao que parece, só eu seja sincero no meu desprezo pelo ‘espírito da quadra’, por uma unha o Natal não se transforma numa cerimônia completa. Vexo-me porque mais uma vez April se revela muito mais imaginativa do que eu, que só lhe dou uma muda rosa vermelha, enquanto ela me faz arregalar os olhos com um belo cartão postal com a reprodução de Mulher com Gardênia, de Gauguin, em que depõe uma elegia:

                 De repente a  tua voz – outras palavras

          crescentes

          crescente lua nova

- Vahine no te tiare –

     as mãos descrevendo vôos - passagem

                              para gestos -

criando equilíbrios onde de fato existe apenas vida. Esta.

          Por isso, por isto,

dizer-te que amo os teus olhos não é bastante.

                Nem exato.

 os dois livros do pai, um excelente cachimbo da sua coleção, uma porção de sementes... e, em mais um maço de folhas manuscritas delirantes, em diálogo com um viajante desconhecido:

 

To my man - Eric Sun                      Para o meu homem – Eric Sun

to warm some grey lonesome days       para amornar os dias de solidão

     this will be my song                    esta será a minha canção

when I’ll finally be in the              quando eu finalmente estiver

land of mind                     nas planuras da memória

 

            Ala-ô! Meu nome é April... Temos por volta de 30... Índia! Estive lá uma vez... Tenho trabalhado com jovens viciados... Escrevo bastante, faço teatro, pinto, trabalho todas as segundas com nossas crianças... sim, temos uma espécie de escola aqui... 20 adultos... uma casa de madeira... Sou psicóloga... ‘professora-de-fadas’... Incentivamos sua imaginação contando-lhes histórias... Eric trabalha na Nova Rádio Livre... Ele ocupa-se das manhãs de segundas, sextas e domingos. Duas vezes por semana vai à cidade para trabalhar numa loja de discos... E escrevemos para o Billboard e eu também para o L.A. Free Press... pôr do sol, é um adeus sempre renovado... é o Dia da Paz... toda a comunidade... teatro ambulante... quase todos nós temos motos... Você não viu Easy Rider? Nunca fiz uma viagem melhor que a da travessia da Highway 61... um autêntico happening... É um museu vivo...

A cerimônia se dá no moinho abandonado. Encantado com as oferendas pego o violão que ela só tem para que os Lancelotes de passagem o façam soar, porque não toca nada nele – ama ouvir e basta - e, para compensá-la, entoo joãogilbertianamente, quer dizer, sem encorpar a voz, sobre as duas notas básicas, For My Lady, de Steve Katz, do LP Blood Sweat & Tears II, que David Clayton-Thomas cantou antes de uma das jams do Albert Hall:

 

I’ll give you beads and rings        Te darei sementes e anéis

The earth will be your mother        A terra será tua mãe

My lady’s arms                       Os braços da minha dama

Are angel’s wings                    São asas de anjo

The sky her only lover               O céu, seu único amante

Lover                                Amante

     Mas logo se decepciona pois ao propor que façam um pacto de sangue Eric revela mais um lado piegas: de jeito nenhum, porque tenho horror a sangue... O que não é tão grave, ao que tudo indica, porque a viagem continua:

 
 

     Ao pegar na caneta para lhe escrever e deixar os meus pensamentos se desenrolarem me sinto como se estivesse numa cerimônia secreta. Sei que estou a um passo do Novo Mundo Livre. Sou uma Voluntária do Novo Mundo Livre. Nossa bandeira um sorriso e a nossa lei um beijo e uma canção. Nosso presidente é o segredo das noites ventosas e nosso exército um bando de guris com longos cabelos livres e caras sorridentes; nossa batalha é uma dança de pés descalços e uma margarida nossa arma. Lutamos pela felicidade, não por dinheiro ou ouro. Você sabe como para mim sangue é algo quase sagrado. Ele me fascina. Amo meu sangue e também o seu. Acho que é demasiado puro e sagrado para ser derramado por uma causa vã. O sangue deve escorrer nas nossas mãos quando prometermos amar-nos um ao outro para sempre mas somente Deus pode dizer quando ele deverá escorrer, porque foi Ele quem o fez, não nós. Como podem alguns poucos imbecis sentados nos seus gabinetes decidir por algum motivo imbecil quem vai morrer, quem vai matar o seu irmão? Penso que somos de fato uma geração muito importante. De nós irá brotar um novo mundo. E o faremos se acreditarmos nisso. Sei que ainda não me entreguei a você mas ainda somos novos demais e não estou tão segura em relação a isso. Não quero fazer a revolução sem senti-la de fato no meu interior... Amo TODA a Nova Nação de Woodstock; os que lá estiveram e os que gostariam de ter estado. Amo você de uma forma diferente da velha geração. Nossa revolução é a única verdadeira. Esta é a primeira revolução autêntica. O Momento do Grande Amor. Estou muito contente por ter nascido agora, não dez anos antes.

      E imagina nosso futuro, quando serei um grande d.j. na América:

 

I’m seeing us both riding our motorbikes; seeing you running home, free and longhaired rushing to listen to a new LP when you’ll be a big D.J. in America. I see you playing guitar and hear me crying  my wild poems... And I’m glad I see this ‘cause I’m finding some peace of mind. Please never break the mirror mountain you raised today.                   

    Estou nos vendo dirigindo nossas motos; vejo-te correndo para casa, livre e cabeludo, para ouvir um novo LP quando serás um grande D.J. na América. Vejo-te tocando violão e me ouço gritando os meus poemas selvagens... E assim alegre encontro alguma paz de espírito. Rogo-te: não destruas a montanha espelhada que ergueste hoje.

 

                 Certos delírios, partindo-se do princípio de que não provocados por substâncias alucinógenas, chegam a dar medo:

 

...the sea of madness calls me dear. I don’t belong here and they are gonna take me away... My thoughts are flying away and I promised them they would always be free.

 

... o mar da loucura me chama, querido. Não sou daqui e eles vão levar-me para longe... Meus pensamentos decolam e prometi-lhes que eles seriam sempre  livres.

 

I guess there’s a crowd somewhere in a deep hidden forest. I wanna go there and get light in the purity of freedom. I wanna feel those ancient trees telling stories ‘bout druids, ‘bout the holly blood and rivers like hair. I’m gonna leave my love. Take my hand and come with me if you want. If you don’t I’ll go alone.

Penso que há um monte de gente algures numa floresta bem escondida. Quero ir lá e lá encontrar luz na pureza da liberdade. Quero ouvir aquelas árvores anciãs contarem estórias de druidas, do sangue sagrado e de rios como cabelos. Toma a minha mão e vem comigo se quiseres. Se não quiseres,irei sozinha.

 

I’m gonna take you in a long trip inside my magic kingdom. You’re the first one to come. Listen to me ‘cause I’m master here in the forest of my world.  

Quero transportar-te numa longa viagem ao meu reino mágico. És o primeiro a vir. Presta-me bem atenção porque sou o senhor na floresta do meu mundo.

 

 

Something very sweet and fresh is blowing in the north wind... That nice wind brings me news of old songs burried long centuries ago... It smells of sea, wooden viking ships... I can see perfectly Enid crying at the beach, sitting on a rock, looking for the last time to the boat that took away from her forever her own fair love. The seagulls sing her song and give it as a gift to their lover, the seawind. That seawind is traveling ‘till Arabia and my face is in its way. That wind 10 centuries old that brings everyday the pain of a 10 centuries sorrow. I love the wind dear I really like to travel through time and catch the songs it brings. Now, I know it’s gonna refresh some young man in his road to Cairo. But there’s something that the north wind doesn’t know perhaps; and it’s that in the West a New World is rising, the door of my magic castle is open for everyone. Come inside and let us make the most of our imagination.

Algo muito doce e novo está sendo soprado pelo vento norte... Esse belo vento traz-me novas de antigas canções enterradas há longos séculos atrás... Ele tem cheiro de mar, barcos de madeira vikings... Posso ver claramente Enid chorando na praia, sentada numa rocha, olhando pela última vez o barco que a apartou para sempre do seu fiel amor. As gaivotas entoam sua canção com que fazem uma oferenda ao seu amante, o vento do mar. Vento que segue rumo à Arábia e o meu rosto está bem no seu caminho. Esse vento velho de 10 séculos que a cada dia me traz a dor de uma tristeza de 10 séculos. Amo o vento, querido, gosto muito de viajar através do tempo e captar as canções que ele transporta. Sei que algum jovem será por ele abençoado na sua estrada para o Cairo. Mas há uma coisa que o vento norte talvez não saiba; e é que a Oeste um Novo Mundo está nascendo, a porta do meu castelo está aberta a todos. Entra e vamos dar asas à imaginação.

 

... and we can mix with the god of the south wind that comes from Arabian lands. You know sometimes I dream about Arabia and it’s marvellous tales. All those beautiful ladies dressed in white and their lovers in their beautiful suits, all their dream houses with interior courtyards, luxuriant trees  and  shrubs  and  their fresh sprouts.

... e podemos juntar-nos ao deus do vento sul que vem da terra das Arábias. Sabes que sonho às vezes com a Arábia e seus maravilhosos contos. Todas aquelas belas damas de branco vestidas mais os seus amantes e seus lindos paramentos, todas as suas casas de contos de fadas com pátios internos, árvores luxuriantes e arbustos e seus refrescantes repuxos.

Jimi continua na Inglaterra, de onde de todos os quadrantes nos manda reações e adendas às nossas e novas notas sobre os anos 60 e notícias da Velha Albion, dela totalmente míticas, dele um pouco menos, fatos reais da vida de um jovem brasileiro na capital do rock e dos pratos que lava entre gregos e italianos e Camden, onde entra em contato com um novo ritmo vindo da Jamaica chamado bluebeat e que já ressoava com estrondo em Londres a partir de grupos como The Wailers quando eu lá estava. Numa das cartas fala de uma noite inesquecível no Royal Festival Hall. A abrir, como support, um conjunto desconhecido, Strawbs, em que o folk casa às vezes naturalmente com o Bach do tecladista, como escreve, mais Pentangle e Fairport Convention, em que espanta-o sobretudo a potência e a beleza da voz de Sandy Denny.

 

    Ele fica aquém porque, bem ao contrário dela, para quem o único problema é ter um pai reacionário, bota-de-elástico, embora viajado, culto e bom de conto, preso a circunstâncias de ordem prática prementes: ganhar dinheiro para viver sozinho, longe da família a que nada o liga além do afeto de circunstância, viver à sua maneira, deixar crescer o cabelo e vestir o que quiser sem ter de ouvir apartes, numa terra estranha de gente idem, e no fundo o que mais ambiciona é ir para uma outra terra com gente idem mas não tão retardada ou metediça.

 

Da magreza, falta de força – mesmo no futebol, onde só a exerço no chute quando pego a bola em movimento e de pé cheio – veio a atração e simpatia pelo diferente, pela alteridade, o que não é normal e parecido com os outros, o índio, o hippie, o louco, o desregrado – que no entanto ao mesmo tempo me causa como que repulsa e de que mantenho distância como que para evitar contágio. Insegurança igual a presunção aparente igual a suposta petulância. Nasci para ser querido pela doçura, timidez, inibição e introversão e erro sempre que me esqueço disso. Mas erro aqui por não ter como acertar. Eric nada tem a acrescentar ao delírio de April, cativante pelo universo de referências, dos beat a Cocteau, dos celtas às mil e uma noites, sem concessão à banalidade. Nem ela mesma, mas ainda não o sabe.

       Eric nunca se assume plenamente. Vislumbra, curte pra caramba, mas não submerge na onda – e é esse o maior entrave: não delirar. Algo lhe diz que isso de comuna, igualitarismo tribal, não é bem assim. Na verdade, pelo que pressente mais do que sabe da triste saga dos índios da sua terra e da América do Norte – vide Soldier Blue, por Buffy St. Marie -, a pureza está (ou esteve) só lá, entre eles. Como é que homens nados e criados entre outros formalismos, muitos dos quais artificiais e facilmente desmistificáveis, além da corrupção, poderiam voltar à pureza original, ‘rousseauniana’. Eric não raciocina sobre isso mas intui fortemente o que no fundo vai totalmente contra o seu ideal juvenil de garoto carioca a quem, até porque filho único de mãe viúva, a educação formal não chegou a deixar totalmente marcado.

       Quando, por causa do filme de Truffaut, me chamam de menino selvagem, se poderá incluir nisso também esse aspecto.

       Certo; também na contracultura existe a velha luta do bem contra o mal, nem o guri mais ingênuo poderia pensar na possibilidade de paraíso em vida, embora aparentemente April o faça, e Eric sabe que a por ela tão osanada Nação de Woodstock tem também sua faceta de Altamont, Hell’s Angels-gorilas que matam quem aparentemente alveja Mick Jagger, doidão sobre o palco em pleno transe de Under my Thumb. Ou assim passado em montagem no documentário Gimme Shelter, que aumentou o mito do lado satânico, diabólico do rock.

 

Quando, no moinho abandonado, em casa, enquanto tomam chá a ouvir no FM do Rádio Clube Português coisas como The Association, Simon & Garfunkel de Bookends, Dylan e quejandos, April engata os seus delírios, os olhos fixando o vazio, o sorriso de Eric manifesta encantamento mas os olhos refletem incredulidade. Estar e não estar completamente na onda, como que se colocando em cima de um muro não como atitude suicida mas como num posto de observação, seria característica básica da sua verve que muitos recriminarão. Eric nada junta aos sonhos delirantes de April porque sua imaginação não o leva a tanto, ocupado também que já está em se débrouiller no cotidiano mas também por já pensar que, por defeito, a virtude está no meio-termo. E sabe também já por intuição que o regresso às origens é mais uma hipótese de fuga de do que para alguma coisa e que quem tenta recuar termina na loucura – ou na mera literatura. A maior parte dos nossos males vêm de nós mesmos, e bem poderíamos evitá-los se aderíssemos ao modo de vida simples, uniforme e solitário que a natureza nos prescreve, leio em Rousseau. Mas ele mesmo provou que isso é impossível. Em português, ela demonstra compreensão:

 

 

Um espírito puro não pode nem começar nem acabar e jamais se transforma. A queda dos anjos é pois insensata. Quero dizer que ela não tem sentido na medida em que evoca filmes rodados ao contrário. O diabo representa por assim dizer os defeitos de Deus. Sem o diabo, Deus seria desumano. – Jean Cocteau

 

       Tenho acompanhado a tua solidão, tua fome de amor, o teu frio de desconforto e insegurança, tua dor de desencontro... Tenho visto como o rapaz que encontrei por puro acaso no cair da estação do sol iniciou o seu caminho de mãos vazias e olhos secos; tenho visto as chuvas que o têm encharcado, as tempestades que o têm derrubado, o sangue que do seu corpo sagrado tem escorrido; vi as suas mãos agarrando tremendo promessas de sol e tentando acariciar rosas cobertas de espinhos e vejo como elas se têm enchido de dor e angústia.

       Tenho visto seus olhos outrora alegres ensombrarem-se pouco a pouco pela escuridão que vai descendo até o vale. Tenho visto as lágrimas quentes e magoadas que lhe vêm inundando e queimando o rosto cansado a regar a sua verde barba. Tenho visto seu cabelo crescer como crescem as árvores e os cantares dos pardais. Tenho sentido o arfar dos seus suspiros e o terno abraço dos seus braços exaustos. Tenho visto o homem nascer e erguer-se de dentro do silêncio dos gritos agrestes; e tenho olhado ternamente para a planta trepadeira do meu amor que cresce à minha volta e me envolve lentamente.  

O rompimento surge implacável como todo rompimento é para que se concretize:

 

I promised you I’d tell you of           Prometi contar-te todas as lendas

every legend my lord tells me,           que meu mestre me conta,

every song I learn from the              todas as canções trazidas

    wind                       pelo vento

Every flower that grows gentle           Cada flor que cresce galante

                in my garden                         no meu jardim

I’m not as powerful as I may             Não sou forte como posso parecer

look and  me too I need a                e também preciso de alguém

helping hand to guide me                 para me guiar

and when I cried for your                e quando clamei pela tua

     strenght                          força

you just used to answer with             só me respondeste com tuas

              your questions                           perguntas

so, how can you blame  me                pelo que como podes culpar-me

          of going away?                       por ir embora? 

I just go to look for help in            Vou apenas buscar ajuda

                 another world                 noutro mundo             

- O que preciso agora é de alguém maduro, into his own thing. O homem de que preciso é uma criança, capaz de ser forte como homem e carinhoso, doce como um menino - reverbera.

            E a despedida:

 

To someone I loved                  

    A alguém a quem amei

 

It was winter and you were covered with snow

              Era inverno e estavas coberto de neve

I could see your face but your soul was too hidden    

    via a tua cara mas tua alma estava escondida

you could have filled the empty space someone left    

    terias preenchido o vazio que alguém deixou

you got everything but you didn’t say a word of new  

    tinhas tudo mas nada disseste de novo

you were just like a mirror                       

    foste apenas um espelho

your words weren’t but the echo of my words            

    tuas palavras foram somente o eco das minhas

think, dear, what new dream did you give me?           

    pensa, querido, que sonho novo me deste?

what new tale?                               

    que lenda nova?

what new song?                         

    que nova canção?

what new world?                        

    que mundo novo?

I could have been your lover for the rest          

    Poderia ter sido tua amante pelo resto

of my way                                              

    do meu caminho  

if you knew how to tie me up                        

    se tivesses sabido me prender

you could have tied me with tales                  

    poderias ter-me agarrado com novas lendas

of time, with poems of rivers                      

    sobre o tempo, com poemas sobre rios

with words tender or rude, but fair and clear           

    com palavras ternas ou rudes, mas precisas

 

Em mim, timidez, falta de articulação, precocidade numas coisas, primarismo noutras, tão cedo já me debatendo no imediato com questões que poderia viver no tempo devido, daqui a anos. Nela, uma acentuada ingenuidade própria da idade, e como se passasse por um surto de transe peculiar, também próprio da idade, aquela que Tennessee Williams e Richard Brooks captaram em Sweet Bird of Youth, de poder (nem que seja o da imaginação) a todo transe, a cabeça magicando a mil por hora. Cartas, expressão do transe, às vezes interregnos entre eles, outras delírio ou rescaldos de viagens fantásticas, sem haxe, LSD ou o que seja. Ou quem sabe o fungo do centeio do pão (acrescido das suas frequentes crises de desmaio às vezes em plena rua, em função de uma cataplexia, que ao que se diz provoca até alucinações diurnas) não produza efeitos especiais em seu organismo, capazes de extrair o máximo das doses infinitesimais de ergotina e processar a fermentação do fungo já no seu organismo. O nosso Werther nem pensa em suicídio mas claudica, até a viagem surgir pela primeira vez como um remédio, a deslocação de um lugar a outro que torna o objeto em primeiro plano distante, deslocando o quadro e não se tirando apenas um compósito dele. Londres outra vez. A coisa dá-se muito por acaso, de forma totalmente inesperada, como em quase todas as grandes ocasiões.

 

Estou de passagem, não sei o que fazer e quero voltar para Londres – pelo simples fato de que nunca me passou pela cabeça ir para Nova York ou São Francisco.

Mas quando ela falava em irmos para Berkeley incorporava-me ao projeto como se fosse também meu – e afinal, porque não? Califórnia, terra do sol, do zen budismo e da revolução psicodélica que chegou a Londres, Amsterdã e Copenhague... Berkeley era de qualquer modo uma quimera, coisa para no mínimo daqui a dois anos, quando ela acabasse o secundário, e nós só nos conhecíamos há alguns meses, pelo que se fosse rima... O que me importa é o que fazer entretanto, além da rádio, para sobreviver... em Lisboa, onde não há sequer trabalho temporário de sobra como nas capitais do norte da Europa e não conheço quase ninguém. Estudar matéria formal nem pensar: estudo o que afinal de contas acaba por se me revelar como algo possível e fascinante de fazer ‘profissionalmente’, não há nada melhor – rádio, afinal, é tudo a mesma coisa, um estúdio fechado, palavras e sons e, do outro lado, ouvintes – em Lisboa, Chicago ou no Burundi.

              Terra da Dama Eletroacústica  

Epílogo

trecho do capítulo  Medo atraso e rock no grotão 

     

      Escrevi ainda em Lisboa a April Sun dando-lhe o contato de Jimi em Londres, porque me escrevera dizendo que passaria uma temporada aqui. Nos encontramos num pub em Pimlico, próximo ao trabalho de Jimi. Ela, de cabeça muito mudada, publica crônicas sobre rock numa revista semanal de Lisboa – acha interessante escrever mas não se vê fazendo carreira de jornalista, com todas as suas limitações. É um passatempo interessante que leva muito a sério porque faz o que mais gosta e diz o que pensa sobre o que entende mas não se vê a envolver-se mais nisso. Faz alfabetização na clandestinidade, não me diz em que organização, e cursa Letras para talvez ser professora.

- Pois é verdade – diz, quando se olha mais nos olhos e se fica mais à vontade. Vegeto-ambulante nesta cidade-paraíso de todos os apaixonados da música, como eu e vocês, da vida agradável, o paraíso do ‘arrume-se sozinho e não olhe para o lado’. Vivam os direitos individuais acima de tudo o resto, é ou não é? Há até aqui um cantinho num parque onde se pode dizer tudo, desde que não se diga nada que ponha em perigo os ‘valores fundamentais’, e onde todas a espécie de comerciantes de ideias cosidas às pressas exibem, para turista ver, as maravilhas da democracia burguesa.

- Falas assim à-vontade, da boca para fora, porque estás aqui, na sede da democracia burguesa. Mas imagina lá, no teu Portugal, ou no nosso Brasil, falando assim abertamente –intromete-se Jimi querendo polêmica, mas ela fica por isso mesmo porque um velho com ar de marinheiro dá um, dois e três acordes numa violão e ataca uma balada sobre James Connaly e os bravos homens que no início do século fizeram de uma parte de uma colônia ocupada a República da Irlanda, e sobre os brave young kids que de Free Derry lutam pela libertação do que ainda está anexado.

     Estamos num irish pub. Ao passar por nós, ficamos sabendo que o homem é de verdade um marinheiro irlandês aposentado em Londres.

- Tá vendo. Sem saber, de repente você está num coivo do IRA e é aqui que estão congeminando os ataques – diz Jimi algo à chacota e meio a sério, nunca se sabe, porque aparenta estar envolvidíssimo na questão da Irlanda, que parece reduzida a um problema religioso e me pergunto e lhes pergunto: quererão os irlandeses ultra-católicos, ao que parece, arcar com o fardo da questão do Eire, de que se apartaram com a independência, ainda por cima tendo de lidar com uma pequena maioria de etnia protestante no enclave? E by the way, como se identifica uma etnia religiosa?!

Fica-se por aí mesmo. Jimi vai ao balcão buscar mais dois pints de ale para nós e uma gingerbeer para a comparsa e de regresso fala de uma antiga colega na pizzeria do pai de Renata, uma mulher grega que cantava canções que de início pareciam apenas melancólicas, como seria toda a música grega, mas que logo assumiam um tom muito amargo que depressa se transformava em ódio e raiva, pelo que ele apreendia das traduções.

Lembro-me das crônicas de April que lia antes de deixar Lisboa, falando do ‘evasionismo’ e ‘demissionismo’ de canções tipo Woodenships e dos easy riders, que segundo ela agora seriam jovens burgueses montados em motorizadas em luta contra supostos novos moinhos de vento – quem diria...

- Escrevi e sustento ainda que aquilo não foi mais do que uma vaga que arrastou milhares de jovens para a inércia e a inutilidade através da droga. Easy Rider transforma-se em repositório de antigos heróis transformados em anti-heróis que o não são de fato. Um artifício comercial, a explorar um filão pseudo-revolucionário, e nada mais que isso.

    - Muuuito prazer, April, Guinevere arrependida – torce o nariz e agarra-lhe uma mão com as duas Jimi.

À sua maneira, April continua exercendo a diferença ao optar por uma certa clandestinidade em campanhas de alfabetização e em leituras pseudo-marxistas, maniqueístas e dogmáticas – a linha que adotarei também à distância, em diálogo com os apesar de tudo brilhantes textos que publica como cronista de rock na revista de espetáculos.

Os devaneios e delírios dos nossos tempos de April e Eric Sun foram um interregno e talvez o mais belo momento da sua biografia desconhecida. Porque, como muita outra gente na minha, desaparece para sempre numa nuvem de distante galáxia, como os meus mortos prematuros. Revejo-a uma vez antes do 25 e depois sei que se casou e é professora do ensino secundário numa cidade da periferia. E sempre penso: destino opaco para uma estrela radiosa - será que ainda escreve? Será que um dia emergirá da obscuridade? Interessa-lhe isso? Lembro-me também – e rio com ele quando nos lembramos – da última coisa que me disse sobre Jimi no pub em Pimlico:

- É um deslumbrado, como dizem vocês na vossa terra.

   

    

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