Houve até mortos e feridos na Rua António Maria Cardoso no 25, mas não há – outro facto extraordinário – qualquer limitação às liberdades democráticas. Pelo contrário.

     As horas passam e a primeira informação que chega, por volta das 21 horas, é a de que o Padre Américo foi visto a dirigir-se a um retiro religioso na região de Sintra e a dizer ao director dos Serviços Comerciais: fuja, fuja que eles ainda o matam!

     A RR volta ao ar às 23 horas com a leitura de um comunicado a dar conta de que, ao não dar cavaco sobre a reivindicação, a direcção da emissora renunciou à sua administração, que passará a estar a cargo de uma comissão a ser eleita pela assembleia geral dos trabalhadores que se reunirá imediatamente. A primeira decisão tomada é a reintegração de Rui Paulo da Cruz, ex-locutor da RR preso quando servia a tropa por alegadas actividades subversivas como militante da Frente da Esquerda Socialista Marxista-Leninista (FEC-ML), e que acaba de ser libertado de Peniche. Autogestão. Invenção da Jugoslávia de Josip Broz Tito de que só ouvi falar através de jornais e revistas estrangeiras. Portugal abre nova página histórica.

     No dia seguinte as ruas ao redor do Estádio da FNAT, em Alvalade, estão vedadas ao trânsito para dar lugar à manifestação que resulta no primeiro e único comício unitário do Dia do Trabalho e do Trabalhador, com a participação de Álvaro Cunhal e Mário Soares entre outros expoentes da chamada resistência antifascista. O carro de reportagem da RR fica estacionado em frente ao Cinema Império. Sozinho, munido de um UHER, faço todo o percurso até ao estádio, no qual encho quatro fitas de 20 minutos com gravações às vezes com reverberação porque o aparelho semiprofissional não é o mais adequado para transporte a tiracolo em reportagem e sempre que olho para o vulímetro ele está no vermelho. Faço o percurso de volta para entregar as fitas ao motorista, que as leva ao estúdio, onde são postas no ar como se a RR estivesse em directo. Regresso ao estádio, onde gravo uma hora de comício e mais entrevistas, e de novo às imediações do Império, onde entrego as três fitas ao motorista, e mais uma vez a pé ao estádio e ainda outra até ao carro. Quase não dormi na véspera em virtude dos acontecimentos. Exausto chego a casa, a 20 minutos do estádio, onde caio na cama a escutar a reportagem, tudo somado com boa qualidade de som.

     Todos os sectores não vitais de actividade conhecem uma quase total alteração da rotina, própria de um acontecimento transcendental. Na RR sob autogestão as escalas só são respeitadas pelo homem de serviço nos estúdios, quase sempre no ar, porque a programação normal é interrompida a cada momento para se dar alguma nova informação e os noticiários chegam a colar-se uns aos outros, com notícias das decisões tomadas pela Junta de Salvação Nacional e acontecimentos banais que assumem interesse extraordinário, como a mera adesão de um órgão de classe ao programa do MFA, flashes de reportagem e entrevistas com representantes da sociedade civil, que os políticos estão demasiado ocupados a discutir com Spínola, Costa Gomes e os cabeças do movimento a partilha do poder no primeiro governo provisório.

     Reunião de agenda em pé num estúdio e o chefe pergunta quem está disposto a cobrir a primeira conferência de imprensa de Mário Soares na sede provisória do PSP. Há quem torça o nariz e, sem outro compromisso, ofereço-me para ir.

     - Com que então o menino a querer cobrir a conferência de imprensa do Soares?! Aqui há marosca!... – reage o chefe com sorrisos irónicos. – Alguma inclinação social-democrata?! – interroga, já a abrir o sorriso mais a mão e uma perna para a gargalhada. Eu, até por força da idade, sem querer saber de social-democracia (oi, Rosa de Luxemburgo!) ou meia democracia. E lá vou para a minha primeira intervenção do rádiomóvel em sete meses de trabalho na emissora.