revoluciomnibus.com  James   Anhanguera ERa   Uma   Vez  A   RevolUÇÃo. ...I I I     MEDO ATRASO E ROCK NAS BERÇAS  BOLERO

             Intervalo na hollywoodiana reportagem. Sem o terceiro mosqueteiro de armas sonoras encontro-me com JCP após sessão especial de Hiroshima, Meu Amor e instalamo-nos no balcão de uma cervejaria onde já se senta uma sua ex-namorada e o novo namorado. Trinta e poucos anos, morena de olhos verdes claros faiscantes, passa umas boas duas horas a receber quase em surdina uma metralhada de piropos do ex, que muito compreensivelmente não se conforma com a perda.

           Vão-se ela e o sócio num táxi que parte na madrugada da Ave de Roma no sentido do cruzamento com a dos EUA e JCP, que não é lá dessas coisas, ainda ensaia uma corrida atrás do carro até parar, puxar a mecha de cabelo para o lado e pôr o braço no meu.

           - Ed, Ed!... As princesas que passam sem passar, que ficam e roem-nos todinhos depois de nos foder bem fodidinhos, pobres de nós que desde o berço estamos presos a esta roda viva, mulheres da mama à cova, sempre a dar-nos cabo da moleirinha! Mas o que seria a vida sem elas? – ri. – Que tal, muito bonita, não?

           Aproveito um rasto de vento deixado por um camião que passa, abro os braços e dou uma volta sobre mim mesmo a imitar o matador de cangaceiros em António das Mortes.

             - Tal e qual o filme – diz JCP, a reaproximar-se e apertar o braço no meu com a ajuda da outra mão.

             - Pisando forte o asfalto – cantarolo no ritmo do nosso andamento.

             - Não desejarás a mulher do próximo. É um pecado mortal ou um mandamento?

           - Não sei. Quiseram tanto inculcar-me essas noções que à primeira oportunidade fiz questão de esquecer-me de tudo rapidinho.

             - Pecado mortal! Ela já não é minha, já tem outro... – estala a língua e faz um muxoxo.

             - Pisando forte o asfalto... – repito frase e melodia a marcar o tempo com os passos. – Isto dá música.

             - Fazendo fortaleza da nossa fragilidade – junta JCP, letra e melodia, que de Miles em tom menor a conhece toda.

             - É um bolero – antevejo, enquanto já desbobino a cassete à procura de um pedaço livre para gravar.

             - Vamos fazer um bolero sobre os pecados mortais? – propõe o outro a rir.

     - Pecados mortais?! Que ideia!

     - É. Primeiro: não matarás. Segundo – ou será o terceiro? -, não cobiçarás.... Não, isto são os mandamentos. Mas quais são e quantos são os pecados mortais?

             E a cogitar chegamos ao cruzamento onde o táxi tomara o rumo de Entrecampos.

     - Pisando forte o asfalto

             fazendo fortaleza da nossa fragilidade – canta agora JCP, a vincar o tempo com a batida dos passos no chão.

             - Pecado mortal – acrescento em notas adequadas à sequência.

            São três da manhã, a esplanada do Vavá está deserta, sentamos em delírio manso a cantar para o vasto círculo vazio em frente.

             - Pecado mortal levado à letra

             Num apartamento da gare central....

    - Apartamento da gare central... Boa imagem. Estás a ver – como uma cena daqueles primeiros filmes em preto e branco da nouvelle vague.

    Toda a sequência do bolero sai frase a frase em harmonia, como por encanto. Verso a verso, muda palavra aqui outra ali, ensaia uma e depois outra entrada de frase melódica, não é obra-prima mas fica crónica exacta - embora aleatória - da noite.

    - Não salto...

    - ... Levo à mão o revolver do tempo...

    - Afinal o perdão...

    - ... constitui...

    - ... o pecado mortal.

    - Quem é Deus?...

    Um cão rafeiro aproxima-se e senta-se em frente aos dois.

    - Xô! Xô! – faz JCP a tentar enxotá-lo, mas ele nem se move. Fica especado a mirar-nos com os olhos bem abertos e a boca fechada. – Xô! Vai-te embora! Nada... parece que está a gostar... E tu, sabes ao menos quem é Deus? Talvez só tu o saibas. Quem é Deus, ó malander?!

    Como numa finta de futebol, o cão finge que vai mover-se mas permanece sentado, estático, com a língua de fora, a babar-se.

    JCP, que se curvara à sua frente, volta para a cadeira a ajeitar a madeixa.

   - Isto faz-me lembrar aquelas maluquices do Kerouac. Um cão poderia ser a imagem de Deus? Pode ser um cão o deus desconhecido? És Deus ou quê?! – a alçar de novo a voz até ao grito. – Deus! Responde, ó seu badameco! Deus, és tu que olhas para mim através desse cão abandonado como eu?! Um cão vadio?! Um badamerdas?!... Tá maltratadito, mas até que não é feio... Ou será como com as mulheres que às vezes, já bastante tocados, levamos pra cama – já te aconteceu isso ou não? Pois a mim já - tás a ver? De noite até marcham, mas no dia seguinte parecem bruxas...

   - Quem é Deus, diz-me tu com o olhar espantado...

   Aproxima-se o segundo Cascais Jazz, organizado por Manuel Vilas Boas, que faz do Vavá uma espécie de escritório, e onde páram também alguns críticos de jazz, como JCMC, personagem-título de um poema de JCP. Falamos sobre isso e juntamos ao bolero:

   - Há uma nota de jazz e um bolero

   - Sentido contrário ao do táxi ocupado

              Na noite sem fim

   - Pecado mortal...

   - ... Sinal dalgum sonho que...

   - ... a fragilidade...

   - ... não leva ao final

   - Tom-tom-tom – faço a sequência de síncopes finais de um bolero tradicional.

           - Pecado mortal...

25 antes durante depois

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