revoluciomnibus.com  James   Anhanguera ERa   Uma   Vez  A   RevolUÇÃo. ...I I I     MEDO ATRASO E ROCK NAS BERÇAS  PELOS CABELOS

Noite invernosa, confortavelmente acolchoado em casaco de bombazina preto com gorro forrado de lã e cachecol vermelho, azul e branco, comprados semanas atrás no El Corte Inglés, de Madrid (iconologias...), entro na Ave de Roma rumo à Praça da Londres a pensar em Kerouac e no que será de mim aos 43, 46 anos, idade em que o escritor morreu de cansaço. As meias-noites do Londres estão a exibir às sextas e sábados uma série de Filmes Malditos. Hoje, A Palavra (Ordet), de Carl F. Dreyer. Minha juba é bastante grande, mas não o monumento que portava à chegada de Londres. E nada que se compare à do protagonista do filme.

        Saio, quê?, umas duas horas da manhã, e mal vejo o que se passa em volta, se não me concentro sou atropelado por um desses malucos que costumam acelerar à doida do Areeiro ao Campo Pequeno sem respeitar semáforos, fazendo da João XXI uma pista de autorama, atordoado pela porrada nos cornos, caramba, que fita mais doida, o protagonista convencido de que é Cristo ou coisa que o valha opera o milagre da ressurreição da morta, não dou por nada, envolto no turbilhão de ideias confusas que me assolam, a tentar puxar pelos cordelinhos de estranhamento que este outro transe me causou quando, por alturas da Sul América, sou despertado dos devaneios pelo chacoalhar de garrafas, olho para trás e vejo vir na brida um camião da UCAL de que, ao passar, ouço gritos, olho de novo e vejo o homem do lugar do morto a gritar em voz de falsete: Aí Jesus, meus caracóis! Ai minha Santa Maria! E com tom de macho: Vai cortar o cabelo, sua bicha de merda!

 Já me habituei a situações do género. Desde o primeiro impacto da chegada de Londres tornou-se rotina ouvir piadinhas em relação ao meu aspecto, e sempre me lembro do que John Peel contou-me certa vez ao voltar de uma das suas viagens à Dinamarca, que ficou banzado quando, à ida no ferryboat, à saída de Harwich, alguém ao seu lado gritou Is that a boy or a girl? – obviamente, acrescentou, alguém que tem parentes do sexo feminino com barba e bigode... Anyway, prosseguiu, não ouvia algo do género desde que deixei Oklahoma, pelo que foi como saudar um velho amigo. Penso de novo: acontece no ferry em Harwich e em lugares como Oklahoma, porque não aqui? Mais recentemente um homem conseguiu arrancar três quartos da manga do meu pulôver quando, nas Grutas de Santo António, eu num lado da passarela e ele noutro, começou a dirigir-se à família com insultos do género relativos à minha pessoa e sem titubear porque pensei que não tinha maneira de me alcançar, apliquei-lhe a mão no ar com o dedo médio erecto e os outros fechados.

         E nem penso. Como qualquer anti-heroi do chamado novo cinema americano, espicho o dedo enquanto marcho e o camião já vai quase na rotunda do cruzamento com a Ave da Igreja, mas eis que trava e dois matulões põem-se a descer do carro. Estaco já a ver como poderia safar-me, se entro pela Marquesa de Alorna eles ainda me apanham lá embaixo, quando ouço voz de macho atrás de mim: Fique calmo. Não faça nada. Continue a andar – e aproxima-se. Ao ver que agora também somos dois, os leiteiros põem-se na alheta.

          Solidariedade de galgo da noite, das fímbrias dos sistemas e regimes.

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