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Nenhuma geração de jovens quis e lutou como a dos anos 60 to do its own thing, tentar subverter a ordem social para fazer o que lhe apetecesse no pleno gozo dos seus direitos naturais, sem o dinheiro e as mercadorias de plástico que lhe ofereciam. A ditadura salazarista coíbe até o esboço de qualquer movimento do género em Portugal, onde a exemplo de Espanha, como ressalta Eric Hobsbawn, a prioridade é outra: o derrube da ditadura. Em tudo ainda o tosco artesanato incaracterístico. E no mais o atraso de que eu mesmo sou reflexo. O galo de Barcelos e o margalho das Caldas no poder.
Um ano e meio depois de Vilar de Mouros o Festival Internacional de Jazz de Cascais, ou Cascais Jazz, coloca finalmente Portugal na rota dos grandes acontecimentos musicais do mundo. Ainda que com condições acústicas deploráveis o Pavilhão dos Desportos de Cascais vive momentos fascinantes, a abrir com um lendário concerto de Miles Davis na primeira apresentação do septeto com que revida no chamado jazz-rock e lança Keith Jarrett, Dave Holland e Jack DeJohnette. O já veterano carola Manuel Vilas Boas está ao ponto de enfartar uma hora antes, quando comunicam-lhe que Miles se recusa a fechar a noite após o quarteto de Ornette Coleman. Volta do hotel com a mão na testa, a bufar impropérios enquanto conta que o trompetista trancou-se no guarda-roupa do quarto até ter a garantia de que Ornette aceitara trocar a ordem de entrada no palco. Imagino Miles a argumentar em surdina de dentro do armário – quem o ouvia? A música? Cachos de sons dissonantes em dodecacofónicos funkeados electronicamente. Usina de timbres quase inéditos, sendo a segunda formação em que o bruxo experimenta a mistura electroacústica que lançou em In a Silent Way, com Joe Zawinul, e que a Soft Machine reciclou e implementou em Third à mistura com o hipnotismo de Terry Riley e Steve Reich. Keith Jarrett parece Angela Davis, a pantera negra, com o cabelão russo encarapinhado e redondo como um tufo de algodão doce de açúcar mascavo. No dia seguinte à exibição do não menos emocionante videotape do concerto no segundo canal da RTP, quando tento ouvir bem o que ali se passara, uma senhora idosa comenta com uma amiga numa mesa do Café Supremo: - Viste aquilo?! Que pouca vergonha! Olha, não se pode dizer porque não se tem a certeza e é até pecado, mas aquela camisa esquisita toda cingida ao corpo, aquele cinturão... O pianista, menina! Só pode ser homossexual!... As calças... Prestaste atenção? Verde-alface, menina! É como diz o pároco, final dos tempos! Onde é que isto vai parar! O quarteto de Ornette quase provoca o encerramento à nascença da história dos grandes concertos internacionais em Portugal. Entre duas peças o contrabaixista Charlie Haden apresenta uma sua criação dizendo apenas this song is dedicated to the african liberation movements of Angola... Ainda atordoado pela miscelânia de sons desconexos que acabo de ouvir e distraído pelo burburinho em volta não atino e sou surpreendido pelo clamor crescente da maior parte das dez mil pessoas presentes, quase tudo muito jovem, enquanto Charlie já grita para se fazer ouvir, com a mão direita a segurar o contrabaixo e a esquerda, de punho fechado, ao alto do braço esticado para a frente... Mozambique and Guinea-Bissau! o público em polvorosa a aplaudir e a reagir à exortação gritando o nome dos movimentos, a sessão de música momentaneamente transformada no primeiro comício de massas de apoio aos combatentes anti-regime na frente colonial. Findo o concerto Haden é levado à António Maria Cardoso, onde borrou-se todo, segundo relato irado repetido vezes sem conta por Vilas, madrugada alta, na esplanada quase deserta do Vavá, com a reprimenda que levou dos pides, que apesar de tudo não iam ser loucos a ponto de prender um cidadão americano branco com aspecto de estudante universitário e levam-no sob escolta ao aeroporto onde lhe é dito que nunca mais ponha os pés em Portugal, mas ele os porá, quem diria, em 1981, quando compõe com Jan Garbarek o trio de Egberto Gismonti que se apresenta na Aula Magna da Universidade de Lisboa, e placidamente sentado a uma mesa comprida da Trindade solenemente reivindica: - I want some lobster tails!
Novembro de 1972. À porta do Vavá, fechado, Vilas não se cansa de alardear a sua fúria contra aquele badamerdas, que não há dúvida é um excelente músico mas tem cachola de minhoca, tás a ver, pá, política, pá, não tenho nada contra, cada um vá fazer comícios e assumir as consequências onde e como quiser, mas eu não me meto em política, pá, já é uma dificuldade do caraças pôr o festival de pé e convencer aqueles gajos de que podem estar tranquilos que não vai acontecer nada de mal e pregam-me uma rasteira dessas, tás a ver, pá, no fundo EU é que sou o responsável! Responsável por, pela primeira vez, uma multidão ter podido despejar o saco e urrar contra a primavera marcelista. |
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