revoluciomnibus.com James Anhanguera:Era Uma Vez A Revolução V Era Uma Vez a VAGABUNDAGEM GABRIEEELAa!
Como tudo mudou e nós mudámos. O choque do 25 alargou o espectro de vivências a produzir por um lado o boom da Bolsa de Valores e por outro a desintegração mental e física (nomeadamente dos dentes) dos heroinómanos. Em dois anos o país arrepiou caminho na trajectória cumprida em décadas nos grandes centros industriais. Lauren Bacall, que há muito desapareceu do Cantinho, agora é vista com muita frequência no Camões, que definitivamente é o (pequeno e obscuro) Picadilly Circus lisboeta, com ‘droga’ à farta. A heroína e a coca que ali se vende são misturadas a toda a sorte de produto, do mais inofensivo leite em pó ao pó de mármore. O haxe com graxa. Lauren Bacall representa à sua maneira a evolução do quadro geral de consumo de drogas ilícitas no país. Em pouquíssimo tempo perde a beleza, a magreza acentua-se, fazendo-a assumir feições cadavéricas a que uma veloz perda de dentes deu o toque definitivo. A pose altiva que fazia lembrar a heroína de Ter ou Não Ter deu lugar a um andar trôpego e desconjuntado de quem não anda lá muito bem da cabeça, do estômago e das pernas. Heroína de um outro tipo de fita. Anti-heroína de verdade. A imagem acabada do ponto a que se pode chegar quando não se tem condições de sustentar o vício. Pepe e eu vamos visitar Júlio da Maianga, que a esta altura está a viver com uma garina numa pensão atrás do Rossio, em cuja ‘pedra’ ele e o irmão, personagem dos mais famosos entre o jovem lumpen luandense do período imediatamente anterior e posterior ao 25, montam banca. Encontramo-lo acamado em função de uma manque. E comentamos o facto. Nem um joint para fumar, teso pra caralho, a precisar de um chuto e sem ter como obtê-lo. Digo que nunca me chutaria por pavor a agulhas. - Já me apavoro face à ideia de apanhar uma injecção no rabo quanto mais eu mesmo aplicar-me uma na veia! - Eu também – junta Pepe. Não passa uma semana e uma noite encontro-o numa esquina da rua de Dio com o antigo ginasta, os dois com ar de doentes sob a luz do poste no Rego, preto e branco, como num quadro de Spirit, a queixarem-se de dores por todo o corpo. Estiveram uns dias a chutar-se com o da Maianga e estão em manque de heroína. Não tarda muito para assistir a cenas de grupo na cozinha a partilhar uma seringa para dar o chuto. Ao contrário da marijuana, que propicia a congregação de pessoas para partilhar um joint, não havendo espiga desde que ninguém ultrapasse as três passas regulamentares, a heroína produz um clima de choque entre os comparsas, cada qual muito cioso da porção que lhe cabe na dose dividida na seringa, sobretudo quando é pouca. Às vezes sobe um pouco de sangue do que chuta antes. E do outro. Coisa de doido. Desde que o usuário não ultrapasse os limites (o que depende da capacidade de cada um) poderá talvez viver toda uma vida com o vício. Haja condições de o manter. O pior é quando não há e o tipo em manque vê-se obrigado a partir para a delinquência no desespero. Após o chuto Ivan deita-se no chão com a cabeça sobre uma pequena almofada e fica estático por todo o tempo em que se ouve (ou ouço só eu?) Hardnose the Highway de Van Morrison. Chama-me e telegrafa-me em sussurro, a agarrar-me pela camisa: - Porra, pá, é uma maravilha! Porque é que não experimentas? - Já disse e repito: porque não suporto a ideia de tomar uma injecção de bom grado. E nem assim me tentas... Dezenas de personagens que se encontra no imenso bas-fond em que pouco a pouco se transforma o vasto círculo underground não-declarado da cidade e arredores são pegos pela heroína, que os põe a deambular estonteantes pelas ruas, como em toda a Europa. Festa acabada o ambiente assume aspectos sinistros – muita gente marada, flipada, entre heroinómanos e speed freaks. Com um cada vez maior número de assaltos a farmácias.
|
revoluciomnibus.com V Era uma vez a vagabundagem 13 James Anhanguera
ir para PORTAL de acesso a outros trechos e a Índice Remissivo de ►