40 anos da tragédia do Sarriá

                     do histórico scudetto da Roma de Falcão

        e do nascimento do futebol-indústria na Itália

                                                 

     5 de julho de 1982 – 14 de maio de 1983   

   1982-85 · 2022-2025

                        Falcão 
                          Zico Sócrates
                               Cerezo Júnior Dirceu
                                          Edinho  Batista  Pedrinho
                                                   Juary Elói Luvanor
                                                                                               

                   James Anhanguera

  A triste

  e bela

  saga dos

  brasilianos

                           da tragédia do Sarriá às arenas italianas

                            Leia o livro e assista o jogo 30 anos depois

         AO VIVO DIRETO DO BERÇO DO FUTEBOL-INDÚSTRIA

  A triste

  e bela

  saga dos

  brasilianos

        da tragédia do Sarriá às arenas italianas

O oitavo rei de Roma

O Doutor Diretas 

Rebuliço na corte do rei Arthur  

Rei morto... fim da Monarquia

veja e leia A triste e bela saga dos brasilianos   em italiano

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  A triste

  e bela

  saga dos

  brasilianos

        da tragédia do Sarriá às arenas italianas

     segundo capítulo - primeira parte

                                                O Doutor Diretas                                                            

   (agosto 1984-fevereiro 1985) 

                                              

 

Davi de Michelangelo, em sua atitude à primeira vista displicente, pois não se diria que com a aparente placidez com que olha meio de lado esteja acabando de cometer um ato sanguinário, tem o porte mais parecido com a figura apolínea de Raí, seu irmão mais novo e não menos famoso. Sócrates costuma dizer que o caçula é que nasceu para jogar bola, pela compleição física, disciplina e gosto pelos treinos. Ele fuma, bebe cerveja e como o seu célebre homônimo protesta contra o poder estabelecido. Como se, sem pêlos na língua, quisesse mudar a ordem das coisas com a mesma rapidez e naturalidade com que dá seus surpreendentes toques de calcanhar. Mas como o Mané das pernas tortas prova que não é preciso ser atleta completo para ser craque. Porque tem o dote básico de todo guri que sonha ser um grande jogador: habilidade, intuição, visão de jogo. É um ser anacrônico em um meio que em certa medida lhe é estranho e a que também é de algum modo estranho. Ser pensante, solidário e irreverente. Uma excepcional exceção à regra.

  Ma Nino non aver paura

di tirare un calcio di rigore

non è mica da questi particolari

che si vede un giocatore

un giocatore si vede dal coraggio

dall’altruismo e dalla fantasia 

La leva calcistica della classe ‘68

Mas Nino não tenha medo

de bater uma penalidade máxima

não é sequer por esses detalhes

que se avalia um grande jogador

Um jogador se afirma pela coragem

pelo altruísmo e pela fantasia

  Francesco De Gregori

   

  Os brasileiros Enéas, Orlando e Elói são casos paradigmáticos de acquisti sbagliati (compras equivocadas), item em que também poderá ser incluída a transferência de José Guimarães Dirceu para o Verona em 1982. 

  Revelado no Vasco da Gama o jogador paranaense passou pelo América do México e pelo Atlético de Madri antes de aos 30 anos de idade desembarcar na cidade banhada pelo Adige para fazer dupla estrangeira com o zagueiro polonês Zmuda. Logo à chegada prima pela simpatia, pelo espírito de camaradagem e pela serenidade e segurança com que encara a polêmica que logo sobre ele se abate.

  - Além de inútil sua compra poderá ser danosa, desequilibrando o time - reagiu sem pestanejar o técnico Osvaldo Bagnoli.

    Um ano depois Dirceu mudou-se para Nápoles dizendo que não renovou com o clube por divergências contratuais. Permanecerá todavia a impressão de que Dirceuzinho, como é chamado entre amigos, não ficou no Vêneto porque o milanês Bagnoli seria mais um desses técnicos que não gosta de jogadores brasileiros. O mal-entendido só será desfeito em 1985, quando o treinador declarar à revista Placar:

     - Os jornais disseram que eu não queria Dirceu. A verdade é que nunca coloquei em discussão o jogador e sim a maneira como ele foi contratado. O Verona trouxe Dirceu quando já havíamos formado um grupo de trabalho e traçado os planos para a temporada. Sua contratação foi uma decisão da diretoria para promover a venda antecipada de ingressos. Dirceu, com sua classe e experiência, foi um dos maiores responsáveis pela ótima campanha que realizamos em 82-83 e até hoje sua passagem por aqui é lembrada como exemplo de seriedade profissional: empenhava-se com afinco até nos amistosos mais insignificantes. Ele deixou Verona por problemas contratuais, não a meu pedido. Muito pelo contrário, gostaria que Dirceu continuasse aqui. E o Verona só não contratou outros brasileiros por questões econômicas ou pela dificuldade de ir à América do Sul para observá-los.

    

                                Foto Guido Zucchi   Guerin Sportivo

       Comprado à Portuguesa de São Paulo por 1,2 milhão de dólares Enéas já chegou ao outrora glorioso Bolonha, no trio de vanguarda dos novos brasilianos, carregando um peso. Aos 26 anos, era saudado como um novo rei do futebol.

     À despedida o Guerin Sportivo publicou um curioso perfil do primeiro moretto chegado à cidade das duas Torres, que em poucos dias seria vítima do massacre de 81 pessoas num atentado à bomba na gare da estação ferroviária cuja autoria foi atribuída aos neofascistas.

     Quem o vê hoje não acredita na imagem do Enéas que chegou a Bolonha há dez meses: óculos de sol, cabelos curtíssimos, uma camisa listrada que faria ele próprio rir. Tornou-se um verdadeiro gato, com roupas assinadas Armani, Basile e Versace compradas numa loja popularíssima entre o clã rubro-azul em que deixou uma fortuna.

     - No início do campeonato, com o Ascoli, jogou malíssimo. Depois vieram o Perugia, a Roma e finalmente também o verdadeiro Enéas, em Udine, com um gol. E poucos dias depois, a desgraça, uma lesão...

     - Puta... nem me lembre disso. Todos diziam que em pouco tempo eu me recuperaria mas naquela sexta-feira entendi que a coisa era séria. Além do mais fazia um frio medonho. O meu moral ficou no chão. Na volta andou tudo errado. Um frio de morrer e a esquadra em péssima situação.

     A reportagem-homenagem da revista bolonhesa cita o lamento de um tifoso em dialeto emiliano: Ma va là che anchál nigrazz l’era bòn. Se avesse avuto meno sfiga... (O negão até que era bom. Se tivesse tido menos azar...)

     O Guerin foi reencontrá-lo no dia da estréia com o Palmeiras, em São Paulo, onde diagnosticou um banzo ao contrário:

      - O ex-rubro-azul sente falta da Itália. Foi atingido por uma forma atípica de saudade ao contrário. Anseia pela chance de retomar a aventura no nosso país, crente de que não soubemos apreciar seu verdadeiro valor. Se tinha tanta vontade de ficar, por que não aceitou a proposta de se transferir para a Udinese?

        - Porque me ofereciam pouco, menos do que eu poderia ganhar aqui - responde o nigrazz.

       - No Bologna você jogou fora de posição.

      - (O técnico Gigi) Radice explicou-me que as exigências da equipe eram aquelas. Eu sou uma mezzala offensiva (médio-atacante), trabalho melhor surgindo de trás com a bola. No Bologna, porém, joguei quase sempre como centroavante, além do mais muito isolado.

       - Quais são as suas piores recordações da gorda, bela e douta Bolonha?

       - Fiquei muito desiludido com os dirigentes. Falam muito de futebol mas não entendem nada do assunto.

       A mesma publicação dá uma boa explicação para isso um ano após a saída de Enéas da equipe sete vezes campeã da Itália, a última em 1964. Lamenta que o Bolonha tenha descido à Série B pela primeira vez em sua história em virtude de uma gestão desregrada e maluca do presidente Tommaso Fabbretti, sujeitando-o aos contragolpes negativos da sua frenética e nem sempre cristalina atividade privada, alvo de constantes polêmicas e inquéritos judiciais.

      Gerardo Landulfo, correspondente do Guerin no Brasil, observa que apesar de ter impressionado pela grande técnica individual Enéas foi queimado pela irregularidade e por uma contusão que demorou mais do que o previsto para ser curada na fria Bolonha, o que fortaleceu uma tese racista que segundo ele corre entre os clubes italianos, a de que os jogadores de cor não têm resistência ao clima frio. Prossegue Landulfo:

      - Já Luís Sílvio, contratado pela pequena Pistoiese antes de uma meteórica passagem pela divisão principal, fez apenas cinco partidas e voltou para casa. À chegada, o garoto - que se revelara na Taça São Paulo de Juniores, jogando pelo Marília - disse ao técnico que era ponta (ala, em italiano). Este entendeu que Luís Sílvio era punta (centroavante) e o fez jogar nesta posição. Pequenino no meio de zagueirões, sozinho na frente, Luís Sílvio não pegava na bola.

      Enéas recusa-se a ir para Udine mas o diretor esportivo Franco Dal Cin é louco por brasilianos e compra ao Vasco o lateral e futuro líbero Orlando Lelé. À chegada, Orlando, o furioso nem pensa duas vezes quando o interrogam sobre como interpreta o fracasso de Enéas:

     - Não acredito em estórias de clima e posição em campo: quem sabe jogar futebol demonstra-o em qualquer tempo e lugar. Pelo que vi, na Itália o jogador goza de todas as facilidades. Os tifosi são maravilhosos, os prêmios excelentes, os dirigentes resolvem todos os seus problemas. Talvez tamanha sorte lhe tenha subido à cabeça... 

  Com Orlando dá-se um dos casos mais rocambolescos do frenético baile de contratações do calcio no limiar da industrialização, que retomamos de outro relato do Guerin Sportivo:
  - No primeiro ano não faltavam desculpas. A abertura das fronteiras futebolísticas tinha sido decidida tarde demais. Que os clubes, apanhados em contrapé, cometessem erros (em grande parte devidos a superficialidade e desinformação) e fizessem despesas supérfluas seria compreensível e justificável. Mas agora a Udinese informa à agência de notícias Ansa a contratação de “Orlando Pereira, líbero brasileiro de 27 anos”. Alguns jornais afirmam que o jogador tem 33 anos e, depois de ter dito que segundo os seus emissários Orlando tem 31 anos, Dal Cin revela que iria ao Brasil para certificar-se da sua idade. Estranho que ninguém tenha pensado em perguntar-lhe a idade. Seu futuro treinador, Enzo Ferrari, disse: “Vendo-o jogar, não aparenta mais de 25 anos”. Chegamos às compras (de meio milhão de dólares) por intuição. Evviva.
  Orlando foi substituído por Edinho após um ano em Udine.

 

    Com a industrialização do futebol o número de caça-talentos cresce na mesma proporção do vai-e-vem de jogadores. Se presidentes de clubes dizem ter ojeriza de intermediários, dependem cada vez mais deles como o toxicômano de morfina. Olheiros e procuradores multiplicam-se como ratos nos bastidores dos estádios, de que raramente saem informações dignas de crédito sobre o montante dos contratos ou formas de pagamento. E o tão osanado calcio-industria revela personagens no mínimo bizarros como Michelle Placidi, que ao apresentar-se como responsável pela operação-relâmpago de contratação de Sócrates - um operário do futebol que de um momento para o outro passa a ganhar muito mais que presidentes de multinacionais e que está no centro de uma roda de negócios de milhões de dólares - logo o reduz a um “mágico” que faz desaparecer latas de cerveja e garrafas de vinho.

   Quase todos os presidentes são a imagem de exemplo do administrador de clubes-empresas que os novos tempos exigem, mas também representam a outra face da Itália que já em pleno segundo milagre ultrapassa a Grã-Bretanha no grupo dos cinco países mais ricos do mundo. Antonio Sibilia dirige o Avellino, time de uma cidade de apenas 50 mil habitantes a poucos quilômetros de Nápoles que a cada duas semanas enche o Estádio Partenio, com 35 mil lugares, para ver um time de segundo plano que entretanto é um dos principais abastecedores de talentos da Juventus. Construtor civil, Sibilia seria um modelo de competência na gestão de uma sociedade calcistica à escala da cidade que representa, mas não tardará muito para que tenha de fugir à polícia por alegado envolvimento em desvios de verbas para a reparação dos danos do grande terremoto de 1981. Seu sucessor também irá parar na cadeia pelo mesmo motivo.

   Dono de uma empresa de comercialização de petróleo Paolo Mantovani fará da até aqui modesta Sampdoria um timaço capaz de arrebatar o scudetto em 1991, mas há três anos gere a sociedade da vizinha Suíça, porque sua firma é suspeita de contrabando do produto.

   As 24 equipes que passaram pela Série A nos últimos quatro anos investiram 80 milhões de dólares na contratação da nata do futebol europeu e sul-americano e atingiram um déficit orçamental igual ao superávit líquido do Grupo Fiat em um ano (90 milhões de dólares). Alguns presidentes parecem desesperados, como o também construtor civil Costantino Rozzi, do Ascoli, clube de uma cidade com 50 mil habitantes que tem um rombo de sete milhões de dólares. Rozzi vive dizendo não entender como os grandes patrões do calcio investem fortunas na contratação de jogadores e em clubes-empresas que parecem estar sendo sugados por um Maëlstrom.

   O conde Flavio e o filho Ranieri Pontello, patrono e presidente da Fiorentina, são alvo de frequentes críticas da imprensa por sua petulância de novos Médicis. O uniforme azul-violeta condiz com a atmosfera requintada que se respira em Florença, uma das cidades mais belas do mundo cujos habitantes são altivos como devem ser os de uma região que produz o vinho Brunello di Montalcino, foi berço da cultura moderna e da língua italiana e de gênios como Michelangelo e Leonardo e que graças a suas prestigiosas escolas até hoje dita regras no mundo artístico-cultural. Mas a massa que joga e que tifa é feita do mesmo barro que a de qualquer periferia de grande centro industrial. E despotismo é com Florença mesmo desde o período de maior esplendor da sua história. Na hora de torcer, os florentinos e os habitantes dos pequenos centros fabris e dormitórios da periferia da cidade-museu são intransigentes como poucos. Não raro assiste-se a cenas de violência nas imediações do seu Estádio Comunale e onde quer que os tifosi viola cheguem.

  

 

De que país vem Sócrates?   

Esta foto foi publicada sem identificação do autor pelo jornal O Dia do Rio de Janeiro em março 2009 e reflete a realidade em um dos BRIC - "países realmente emergentes". Há mais de um milhão de jogadores de futebol profissionais no Brasil. A maior parte deles aprende - e como... sabemos bem - a arte do drible em campos como esse e com arquibancadas dessas aí Oitenta por cento dos profissionais do drible no Brasil ganham até dois salários mínimos. Eis "o país do futebol" 30 anos depois dos fatos desta narrativa. Justo como o Brasil, onde apenas 20 por cento da população podem ser considerados verdadeiramente bem de vida, ou pouco mais ou menos.

 

      De que país vem Sócrates? De um Brasil ainda sob ditadura em cujas cidades até há poucos anos presos políticos eram mortos em sessões de tortura. Que viveu entretanto um movimento grevista de proporções inéditas e que levou ao lançamento de um partido a que aderiram personalidades do mundo artístico e intelectual como o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, seu filho Chico, o crítico literário Antonio Candido e o jogador Sócrates Brasileiro Sampaio de Sousa de Oliveira. Um país na senda da redemocratização e grávido de esperanças.

    Um país subdesenvolvido mas com bolsões de riqueza comparáveis à da Itália, embora sem o mesmo grau de desenvolvimento, e com uma desigualdade de distribuição de renda sem paralelo entre países com o seu potencial. Que fabrica bens de primeira linha vendidos no exterior, como as próprias viaturas Fiat que circulam na Itália com um autocolante com a bandeirinha verde e amarela. Mas a própria atividade da Fiat na Itália e no Brasil reflete a distância entre dois momentos históricos absolutamente distintos. Enquanto no Brasil os metalúrgicos que fabricam os seus carros são a vanguarda do um movimento laboral recém-consolidado, na Itália o sindicalismo operário está em pleno ocaso, banido pela crise da indústria transformadora e dos portos e pela automatização das linhas de montagem - a de Fiorino, sede da Fiat em Turim, já está quase totalmente robotizada. Neste aspecto a Itália está no mínimo 20 anos à frente do Brasil.

          Ironia à parte, o toque de calcanhar das diretas é recebido com festa em Florença num momento em que também se cogita a eleição do Presidente italiano (que não tem funções executivas) pelo voto universal.      

 

         Sócrates regressa acompanhado de mulher, sogra, quatro filhos e duas empregadas e instala-se na colina de Grassina.

         - Não é uma aventura, uma coisa que você faz sem saber o que vai acontecer. Desta vez estou sabendo de tudo - assegura.        Questionado sobre como vê a mudança da democracia corintiana - que implantou um regime de co-gestão do time por direção, técnico e jogadores - para a Fiorentina, desvia para a lateral dizendo que jamais jogaria num clube autoritário como a Juventus. À chegada é informado que o processo de calcificação dos ossos da perna de Antognoni vai bem e que o capitão do time deverá voltar aos campos em outubro, um mês após a abertura oficial da temporada italiana.

       No ritiro da equipe em Pinzolo, a norte do Lago de Garda, ressente-se da súbita troca da atmosfera poluída de São Paulo, da intoxicação das férias, da cerveja e dos cigarros, do ar rarefeito das montanhas pré-alpinas do vale de Rendena e do duro regime de treinos físicos que segundo a imprensa leva o jogador ao colapso e faz com que se tema pela sua carreira no calcio. É a sua primeira concentração desde a Copa do Mundo da Espanha.

       - Montanha abaixo, montanha acima. Se contasse no Brasil o que estou fazendo aqui ninguém acreditaria - comenta. Sua disponibilidade para o duro regime de treino e preparação física chega a espantar. Tem problemas com o músculo do fêmur da perna esquerda que o obrigam a fazer treinos específicos, teme não poder jogar a primeira partida da Copa Itália contra o Napoli de Maradona mas num amistoso faz o seu primeiro gol italiano, classificado de bellissimo. Brinca muito e ri com os colegas. Galli é o nariz de Pisa, cidade onde o goleiro nasceu. Acelera o aprendizado de italiano lendo Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, História dos Partidos Políticos Italianos, de Giorgio Bocca, e obras de Brecht na língua de Dante. Evita falar de futebol, dizendo que com isso não se aprende nada, e reitera que o assunto que mais lhe interessa é a política, porque ela é vida e todo mundo depende dela.

                                                                FotoSabe  Guerin Sportivo

O "nariz de Pisa" em ação no Fiorentina-Torino do campeonato 1982-83 com o argentino Daniel Passarella protegendo-o do conterrâneo Patrizio Hernandez, que foi substituído por Junior como o segundo estrangeiro dos  "granata".

        Bagnoli, o técnico veronês, diz em entrevista que entre os novos estrangeiros do calcio ele é o jogador que mais admira, porque tem personalidade e é muito culto, e eu invejo quem tem cultura.

 

 

       No primeiro grande furo empresarial da temporada o presidente da Inter Ernesto Pellegrini manda embora o diretor esportivo Sandro Mazzola e o substitui pelo mago Dal Cin. Com um déficit de quase sete milhões de dólares não posso cometer erros - justifica.
       78 mil torcedores napolitanos compraram carnês de ingressos antecipados para a temporada 84-85 no Estádio San Paolo, a Buitoni investiu 500 mil dólares em cotas de patrocínio do Napoli e prevê-se que o clube arrecade 20 milhões de dólares ao longo da temporada, recuperando o investimento feito na compra de jogadores. As empresas investiram 11,5 milhões de dólares no patrocínio das equipes da Série A.

      Os jornais italianos dizem que as lacunas do Napoli são camufladas pelos números do craque argentino. Ainda que bem abaixo da sua melhor forma, Maradona incanta, fazendo gols e dando-os a marcar.

       Zico continua se queixando de ser o único autor de gols da Udinese e diz que a solução para os problemas do time será uma maior aplicação dos colegas nos treinos, sobretudo em remates ao gol.

      Júnior é que se deu bem, entusiasmando os torcedores do Torino com o toque de bola, a distribuição de jogo e as finalizações, mas segundo a crítica seu time não joga bom futebol sobretudo pela ausência do austríaco Schachner na hora das finalizações.

       O substituto oficial de Liedholm na Roma é o italiano Roberto Clagluna, que treinou a Lazio após o seu regresso à Primeira Divisão. Eriksson ganhou a Recopa com o Goteborg, sua única vitória além de três títulos portugueses com o Benfica. A Roma joga com mais desenvoltura e velocidade no ataque. Uma versão melhorada da zona de Liedholm, diz-se. Mas os tifosi não estão nada satisfeitos e esperam que seus defeitos sejam devidos apenas às ausências de Falcão, Conti e Pruzzo por contusão. Cerezo foi expulso pela primeira vez em toda a carreira em jogo contra o Varese, da Segunda Divisão. Falcão apressa-se a dizer que gosta dos métodos do novo técnico e o segundo brasileiro dá mostras de poder vir a ser o volante ideal para o jogo rápido que Eriksson pretende fazer o time praticar.

       De azar em azar a Fiorentina não agrada. Os tifosi viola aguardam com ansiedade incontida o regresso de Antognoni quando De Sisti é vítima de um aneurisma que o afasta do comando da equipe.

 

       Ao contrário das caudalosas goleadas do ano passado a primeira rodada do campeonato registra apenas 13 gols e só dois resultados com mais de dois, Milan-Udinese e Verona-Napoli, ambos com empates a dois gols, nenhum de Maradona, que foi muito bem marcado pelo antigo declatleta Briegel.

 

 

 

      Pleno sucesso para Sócrates e a Fiorentina, que vencem a Lazio no Estádio Olímpico através de um gol do capitão Eraldo Pecci.

      Para o presidente da Lazio, Chinaglia, Batista é o único jogador com vontade de jogar e vencer. Sócrates diz-se surpreendido com o conterrâneo, que não via jogar desde que o gaúcho saiu do Brasil: É o mesmo bom jogador de sempre, mas com muito mais personalidade, considera.

     Ainda que a ressentir-se de uma contusão num joelho que o faz estar embaixo de forma Sócrates pareceu muito bem entrosado no time viola. De seus toques de primeira na zona limítrofe da grande área nasceram as jogadas mais emocionantes da equipe. Como sentiu a mudança?

      - Tudo normal. Ao nível de jogo a diferença fundamental que encontro é em termos táticos. De resto, já me adaptei a Florença e à Fiorentina. O que faz falta é a democracia que a gente tinha lá.

      A calma do Doutor em coletiva improvisada à saída do vestiário contrasta com o nervosismo dos jornalistas romanos por estarem frente ao craque pela primeira vez.

       - Como se sentiu na estréia no campeonato italiano?

      - Não senti nada. Minha verdadeira estréia foi na Copa Itália e desde então já tive tempo para me ambientar. O que acontece é que nos jogos de campeonato há muito mais público e isso influi bastante no clima de um jogo. É claro que o espírito é diferente do Brasil. Aqui estou conhecendo coisas novas, vendo um mundo diferente e tentando entendê-lo. Mas em campo sinto a mesma disposição. Procuro sempre estar calmo, até para que seja mais gostoso jogar futebol. Não só por obrigação mas também por prazer. Como numa pelada.

     Minutos antes o substituto do técnico Giancarlo De Sisti no banco da Fiorentina, Onesti, deu-se por satisfeito com o trabalho de Sócrates.

     - Foi sua melhor partida na Itália. Esperava vê-lo assim mesmo como jogou e numa conversinha que tivemos esta manhã fiquei ainda mais convencido de que ele é realmente um líder.

      E Sócrates, sente-se mesmo um líder?

      - Sou um ser humano que procura transmitir seus conhecimentos e sua personalidade aos outros, mais nada.

     Durante o jogo Sócrates teve de correr muito para fugir à marcação dos adversários e destacou-se cinco vezes, quando colocou os companheiros na cara do gol com seus sublimes toques de primeira. Talvez por isso os tifosi viram uma Fiorentina diferente, baseando seu jogo numa maior troca de bola através em rápidos.             - Acho que a equipe está bem, embora ainda tenha algumas coisas a melhorar.

      Mas em conversa com Onesti os jornalistas demonstram insatisfação com a produção irregular de Sócrates ao longo do jogo, dizendo que em certos momentos pareceu não sentir a partida.

      - Nada disso. Ele é que se esconde muito bem - rebateu o técnico.

      Afirmando não ser de sua competência falar de medicina o Corriere dello Sport prefere esquecer o Doutor que normalmente precede o seu nome para chamá-lo de Professor. Belos números, fulgurantes momentos, exulta o jornal, enquanto a Gazzetta dello Sport diz que a Fiorentina ficou conhecendo o verdadeiro Sócrates.

 

 

 

      Presente ao Milan-Udinese o comissário técnico da seleção italiana Enzo Bearzot diz ter finalmente visto Zico, agora sob a direção de um técnico brasileiro, jogando na posição correta, a de um meia que se movimenta por todo o campo, como um meio campista clássico.

- O verdadeiro Zico, um campeão.

       A Roma de Eriksson (ou de Clagluna?) vive clima de tensão com o empate a zero em Avellino e no dia seguinte o técnico repreendeu severamente os jogadores. Falcão ainda se ressente da contusão no joelho. Graças ao goleiro Tancredi a equipe consegue um magro 1 a 0 com o Steaua de Bucareste na partida de ida do primeiro turno da Recopa, em que Cerezo volta a mostrar boa adaptação ao esquema de jogo do novo técnico, que a maioria dos colegas ainda não assimilou. Eriksson tenta fazer com que eles esqueçam o futebol técnico de Liedholm, baseado na habilidade individual dos atletas, jogando mais rápido e pressionando os adversários no seu setor defensivo.

       Sócrates estreou em competições européias vencendo e convencendo no 1 a 0 em Istambul contra o fraco Fenerbahce para a Copa Uefa, com novo gol do camisa 10 Pecci. Os comentaristas italianos voltam a dizer que o Doutor jogou pouco, embora reconheçam que todas as jogadas da equipe passaram pelos seus pés. O número 8 foi substituído a um minuto do fim do encontro por Stefano Carobbi, de 20 anos.

       Jogando sozinho por quase toda a equipe Cerezo faz o gol da Roma no empate a um tento em casa com o Como, válido para a segunda rodada do campeonato, que registrou uma média de 40 mil assistentes por jogo e 25 gols. A Udinese goleia a Lazio por 5 a 0, com Zico fazendo um gol de placa, e l’empereur Platini, em sua estréia no certame, causa sensação e faz dois belíssimos gols no Juventus 5x1 Atalanta.

      Apesar deles, o de Zico é considerado o gol mais bonito da rodada: três tabelas com o jovem mediano Mauro, chapéu num adversário e, isolado frente ao goleiro, não perdoa.

      Após duas derrotas Chinaglia despede o técnico Paolo Carosi e o substitui pelo argentino Juan Carlos Lorenzo, de 62 anos, que lançou o atual presidente no time azul-e-branco em 1969.

      O Torino perde em Cremona para a Cremonese - a única esquadra toda italiana do campeonato - mas o recém-chegado Júnior mostra-se bem entrosado, impondo-se com charme, classe e precisão.

      Apesar dos dois empates consecutivos Eriksson garante que o conjunto da Roma é forte e que em breve estará muito melhor.       - Daqui a quanto tempo?

      - É uma boa pergunta.

      A associação italiana de técnicos de futebol censura pela segunda vez o vice do técnico por topar representar a farsa de figurante de um cargo que efetivamente não exerce.

      A Fiorentina empata a zero no Comunale com o Milan, que jogou quase toda a partida com menos um jogador por expulsão do zagueiro Tassotti. O ataque é o setor menos eficiente dos viola, faltando-lhe um goleador, e parte da imprensa italiana começa a perder a paciência com Sócrates, a quem atribui a culpa pela lentidão da equipe em certas ocasiões. Nils Liedholm discorda: É um grandíssimo jogador e no dia em que a equipe entender o seu estilo de jogo todas as outras terão problemas para vencê-la.

      Perspectivas melhores agora para o quase esquecido Elói, que com o seu Genoa sob a condução de Tarcisio Burgnich volta a ser titular nos rubro-negros. Pedrinho continua bem cotado no Catania, enquanto Luvanor parece estar apenas criando calo. Júnior junta-se ao coro dos que afirmam que o centroavante veio cedo demais para a Itália.  

      Da incômoda situação de indesejado Dirceu passa a ser um dos jogadores mais bem pagos da Itália. Assinou por um ano com o Ascoli em troca de 160 mil dólares uma semana após ter recebido do Napoli outros 400 mil de indenização por quebra de contrato.

      A grande sensação da terceira rodada, em que Dirceu estréia com uma derrota para a Sampdoria em Gênova por 2-0, é a goleada (3-0) do Torino de Júnior no Napoli de Maradona, que fica em penúltimo lugar com um ponto ganho, tendo sofrido sete gols e feito três. El Pibe não se conforma: Do jeito que está não dá.

      Nápoles atesta que um craque sozinho não faz um time, como se tem visto com Zico, que com nova distensão muscular não participa no Verona 1x0 Udinese. O time de Bagnoli surpreende no início do campeonato pelo terceiro ano consecutivo e isola-se no primeiro lugar com seis pontos ganhos.

      Mark Hateley confirma as expectativas e marca os dois gols com que o Milan vence a Cremonese (2-1) em Milão. O inglês é o artilheiro do campeonato com três tentos. A rodada teve apenas oito gols, talvez em virtude da chuva intensa que cai em toda a península.

      Batista faz grande atuação no Lazio 1x1 Inter, em que seu time conquista o primeiro ponto. A equipe mostra muito mais garra que nos jogos anteriores, como denota o chute raivoso com que o centroavante Giordano - comprado pela Iuve com um ano de antecedência apenas para que a Roma não o contratasse - abriu o placar.

 

 

 

      O novo técnico Lorenzo reafirma Batista como pilar do time e o presidente Pellegrini da Inter aproveita sua passagem pelo corredor dos vestiários para cumprimentá-lo.

       - E dê meus cumprimentos e votos de felicidades ao presidente Chinaglia. Ele fez muito bem em contratá-lo. É fantástico como em apenas 24 horas você conseguiu dar toda essa força ao time.

        - Auguri anche a lei - rebate Lorenzo, que morou 30 anos na Itália. - Também me espanta como o senhor, tão novo, já se tenha afirmado como um bom presidente (Pellegrini tem 44 anos).

  O gol de empate da Inter, por Altobelli, partiu dos pés de Rummenigge, físico de aço e muito bom de bola.

    - É entusiasmante jogar para tanta gente. Na Alemanha, com essa chuva toda, nem sonhar em ter tanta gente num estádio de futebol.

      Altobelli viu a Lazio com muito mais pegada.

    - Mérito do coletivo, que não é assim tão mau como o pintam, mas também de Batista, que é o seu uomo-faro.

                  

  Allessandro Altobelli empata o jogo   Foto Guerin Sportivo

            Batista não parece muito entusiasmado.

            - Jogamos muito melhor, mas não dá para soltar foguetes. Só temos um ponto e ainda faltam 27 jogos

.          Surpresa para Sócrates, que há 15 dias o viu metamorfoseado como líder da equipe, e homem-farol para Altobelli. No início da sua segunda temporada na Itália Batista parece melhor adaptado ao futebol local. Braços cruzados, entre humilde e auto-confiante, ele diz:

            - Quando cheguei continuei jogando como no Brasil, ajudando a defesa e tentando bloquear o jogo do adversário no meio campo. Foi só perceber que aqui você tem que ser pau para toda a obra, batalhar em todo o campo, da defesa ao ataque, para tudo mudar.

 

   

Sócrates desiludiu os 19 mil tifosi que lotaram o pequeno estádio ao lado do famoso lago no Como 0x0 Fiorentina. O Doutor foi substituído por Occhipinti minutos antes do final da partida, mas não empolou:

         - No Brasil só fui substituído uma vez, num jogo da seleção, mas quem sabe dos problemas técnicos é Onesti.

        Ainda convalescente De Sisti apressa-se a conversar com o mediano.
        - Temos de estar muito perto dele, porque ele tem que dar três passos na direção da equipe e esta apenas um em sua direção. A minha conversa foi mais com o homem que com o jogador - relatou. Os jornais começam a manifestar impaciência, dizendo que Sócrates está mais interessado em fazer comícios do que em jogar futebol.
        Em comentário à rodada, Gianni Brera do la Repubblica equipara o caso de Sócrates ao de Maradona e é como sempre jocoso ao falar na ingenuidade dos desadaptados do calcio. O acinte, sem dúvida extemporâneo, reporta-nos a carta em que um leitor do Guerin, a propósito do insucesso de Enéas e Orlando, afirma que os tifosi são impacientes demais: Se um jogador não mostra logo todas as suas qualidades está acabado. Mas não são só eles os precipitados...  

       So-cra-te!... So-cra-te!... So-cra-te!...

       Basta uma hora, três dias depois, para que todas as dúvidas se dissipem. Cada toque de mestre, que movimenta todo o time, levanta as arquibancadas do Municipal de Florença num grito unânime. Acabam as polêmicas. Todos vêm que basta o Doutor jogar tranquilo para dizer muito também no discurso da bola. Tiros de primeira, imprevisíveis lançamentos curtos e longos, todos os movimentos de Sócrates excitam e galvanizam equipe e público. Na noite de Sócrates a Fiorentina vence o Fenerbahce por 2 a 0 e assegura a permanência na Copa Uefa.
        Quatro dias depois, em jogo do campeonato, a Fiorentina vencia o Atalanta por 2 a 0 quando, isolado à entrada da grande área mas com o gol bem protegido pelo goleiro bergamasco, Sócrates tem uma iluminação e decide fazer a bola passar sobre o corpo de Benevelli. O estádio explode em gritos e aplausos. O Doutor sela seu contrato de afeto com a torcida viola.
        - O gol não foi assim tão importante. Foi só o terceiro do time - desdenha o 8 violeta, não abrindo mão do distanciamento com que encara os altos e baixos do futebol. Ainda assim dedica o capolavoro, como o classificou a crítica, a Antognoni.
        Pergunto-lhe como se sente na semana da consagração definitiva na Fiorentina e do entusiasmo criado à sua volta e ele, frio e realista:

         - É sempre assim. Uma vez melhor, outra pior...

           

A triste   e bela   saga dos   brasilianos

O oitavo rei de Roma

O Doutor Diretas 

Rebuliço na corte do rei Arthur  

Rei morto... fim da Monarquia  

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Parece como com uma mulher. Fica-se sem saber se não se olhou bem as outras ou se só o Guerin Sportivo nos fazia ver o balé do futebol em toda sua beleza plástica.Havia outras revistas talvez mais bonitas que o Guerin. Mas nenhuma tinha fotografias com a qualidade estética do "velho" semanário bolonhês (fundado em 1912) "de crítica e política esportiva" que os jornalistas de todas as publicações ou seções de esporte de publicações de informação geral no estrangeiro consultavam nem que fosse só para ver  como se deve fotografar um esporte como o futebol, que faz com que todos os participantes se movam em total harmonia ou então em grande contraste de movimentos.Reproduzindo ao longo da narrativa de A triste e bela saga dos brasilianos algumas fotos históricas do Guerin queremos também render homenagem a um dos melhores produtos entre os muitos de raríssima qualidade com que a "douta e gorda" Bolonha encanta o mundo.

     

                    

                                                            

                           

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créditos autorais: Era Uma Vez a Revolução, fotos de James Anhanguera; bairro La Victoria, Santiago do Chile, 1993 ... A triste e bela saga dos brasilianos, Falcão/Barilla: FotoReporters 81(Guerin Sportivo, Bolonha, 1982); Zico: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão Zico, Sócrates, Cerezo, Júnior e seleção brasileira de 1982: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Edinho: Briguglio, Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Antognoni: FotoReporters 81, Guerin Sportivo, Bolonha, 1981. E-mAIL

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