Senti no Rio por breves instantes uma vez ou outra. Sinto agora sempre que estou acordado. No Rio era porque só eu, Jimi e Solemar sabíamos que tínhamos tomado uma daquelas decisões que podem marcar toda uma vida, embora no fundo eu não acreditasse que pudesse permanecer tanto tempo fora. Lá, porém, estava a tomar uma decisão grave mas de muito bom grado, e sentia como uma espécie de frémito de luxúria, uma sensação boa de vertigem, como quando, sofrendo dela, sente-se como que uma atracção pelo abismo para que se olha antes de... mergulhar. O passo além da ombreira da porta e... zás!

       O espírito era o de ter vindo ao mundo também a passeio, como se diz no Brasil. Cada passo pode ser decisivo e um passo errado, fatal. Ao projectar o passo decisivo para fora do casulo, no meio da jornada, sentia frissons ao mesmo tempo pavorosos e sublimes percorrer-me o corpo, das pontas dos cabelos às das unhas dos dedões dos pés. O prazer e o pavor decorrentes do rompimento dos laços sociais para uma suposta conquista da liberdade é superior a tudo, faz com que tudo o resto seja desprezível.

       Agora não. A decisão que tomo não é assumida por vontade própria. Apenas por falta de alternativa. Nunca pensei em morar lá. A ideia de ir para Lisboa não me agrada nada, porque não é centro de coisa alguma, ao contrário, parece isolada de tudo. Mas tudo somado está aqui bem perto de Londres, sinto-a ao mesmo tempo como uma etapa necessária no rumo encetado, um rumo impreciso porém já inevitável de todo o viajante, que é o de marchar porque a estrada se faz a caminhar, e uma vez na estrada não se pode parar, não há de ser nada, em breve voltarei, Jimi é um ponto de referência e o impulso para voltar, quem sabe ele mesmo não arranje um gancho para o fazer mais cedo do que imagino. Em Gatwick estende-me um tubo de folhas enroladas com um rascunho do resumo das nossas últimas pesquisas sobre Huxley, em que esteve a trabalhar enquanto eu fazia a mochila e que desenvolveremos e aperfeiçoaremos pelas décadas a vir.