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Passam-se às vezes dois ou três dias sem ver Ofélia. E nunca me pergunto o que faz depois dos ensaios da nova montagem da Casa da Comédia, dirigida por José Morais e Castro e com outras seis mais ou menos jovens actrizes irrogantes para que forneço subsídios. Pela primeira vez tenta-se montar em Portugal uma peça de Nelson Rodrigues, o polémico dramaturgo brasileiro, que dá raiva pelo reaccionarismo mas que força ao máximo respeito por ser o primeiro grande autor teatral moderno no seu país e pela prosa magnífica das suas crónicas sobre futebol À Sombra das Chuteiras Imortais, que acompanho embasbacado no jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e logo arquivo. O acachapante dualismo do autor e a qualidade indesmentível do seu texto deixam-me perplexo. Recortes e livros sobre teatro brasileiro e com parte da obra de N.R., comprados no Centro do Livro Brasileiro, entrego-os a Ofélia como material de estudo que, a par com o conteúdo de Doroteia, a peça em que está a trabalhar, deixa-a igualmente estupefacta. Está-se nessa até que na noite de estreia do filme Meus Amigos, de António Cunha Teles, após comes e bebes com Noémia Delgado e companhia bela, ao atravessarem, uns mais ébrios outros menos, a ponte do comboio da Ave de Roma, a ver se passa um táxi que nos leve ao Bolero, caem-lhe a ela os óculos no chão. O filme, num preto e branco porreiro, é uma boa merda, mas a nossa actriz safa-se muito bem. Entre interessados mais ou menos directos nem se toca no assunto durante o repasto na Cervejaria Roma. Não haverá de ficar na história. Não há motivo para grandes alegrias nem tão pouco, aparentemente, para frustração. Apresto-me a apanhar os óculos e, ao vê-los quebrados, Ofélia quase cai em pranto. - E agora, como é que eu vou fazer, sem dinheiro para comprar outros? - Não te preocupes, compro-te uns novos – retruco. Para quê... - Rá, rá, rá! És tu a pagar-me os óculos e o outro os desmanchos! – gargalha a partenaire, a produzir o efeito do desdém de Marlene pelo Professor Unrat. Sinto-me o próprio no cabaré homónimo, onde Ofélia faz questão de flertar com este e aquele noutras mesas enquanto a cada chibatada respondo com mais cerveja para o bucho – e não foram as gambas ao alhinho que comemos que me fazem sedento como nunca. Apatetado tento por uma vez sentar-me à sua mesa, mas de pronto ela reage aos berros e com todo o escárnio de que só uma mulher – e uma ganda actriz – é capaz: - Mas o que é que o senhor está a fazer aqui? Vá curtir a sua dor de corno para a sua mesa, seu badamerdas. Aqui comigo, ó, kaputt! Finito! AufWiedersehen! Goodbye, my boy. Rá! Rá! Rá! – olhando para os convivas a dar espectáculo e como que a pedir palmas, com um ar de troça que o código Hays jamais permitiu a Hollywood exibir em películas. Sem mais o que fazer, quatro e meia da manhã e a duas horas e meia de entrar de serviço, peço a primeira das duas sopas alentejanas com que, adicionadas ao conteúdo de duas cafeteiras, procuro curar a bebedeira e a tremenda ressaca que já sinto, neófito, antes de ir trabalhar. É a primeira vez que saio directamente de um cabaré – e logo qual - para o trabalho. Balbucio e engano-me mais que a conta no primeiro noticiário e decido gravar os outros, alegando forte dor de barriga por alguma coisa que comi e fez-me mal, Despertar às sete e meia e uma dose de E depois do adeus. Programa Armando Marques Ferreira e outra dose. Enquanto for bom dia e mais uma dose de E depois do amor e depooois de nós... Na cabeça, além da forte pressão e da dor, um nó de dar dó. Pela primeira vez vejo tudo às voltas e tudo em volta em ruínas. O que é mais ruim nem é tanto a separação mas a humilhação com os convivas da noite – Vergonha! Que vergonha, deus meu! – digo de mim para mim no meio do caos que me ribomba latejante na cabeça, a expressão contorcida, contorcendo-me de mal-estar, a cada flashback da noite que não termina. Durmo a sonhar sonhos absurdos, com a cabeça enfiada numa grande cabeça de piranha, a levar pontapés na cara através da abertura da bocarra do bicho desferidos por uma valquíria vestida com trajes sado-masô, talvez porque um dos livros da sua estante que mais me chamaram a atenção foi Marat/Sade, de Peter Weiss, como que saída de um trip circense de Fellini e que a mim parece ter a cara de Ofélia e a própria a atirar-me um par de óculos e a gritar: e o outro paga os desmanchos! Rá! Rá! Rá! - e só acordo na manhã seguinte, à hora de zarpar para o trabalho. E depois do amor e depois de nós... a azucrinar-me a paxorra a cada período de trabalho, pela escuta do Serviço de Noticiários. |
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