revoluciomnibus.com | James Anhanguera | ERa Uma Vez A RevolUÇÃo. ...I I I | MEDO ATRASO E ROCK NAS BERÇAS | Mr. 5% |
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António Castro é contratado para trabalhar na montagem de uma peça de John Osborne por Luzia Maria Martins no Teatro Estúdio de Lisboa. Antes dos ensaios vai a Barcelona para uma operação correctiva de um descolamento de retina que o ameaça de cegueira. No regresso vem com nova e já longa barba grisalha e passa a transportar na bolsa um livro da Seix-Barral sobre Proudhon, cuja expressão facial em foto de capa pretende copiar para compor o seu personagem, um velho pescador solitário que vive a divagar numa praia e em quem descortina uma mentalidade individualista muito próxima de certo tipo de anarquista e que, ao estrear, interpreta com maestria, como se na plateia quase cheia do teatro da Feira Popular não descortinasse gente mas um mar a perder de vista. A propósito da sua actuação na rádio e do regresso à cena participo numa entrevista com o colega para o Cinéfilo, em que o intrépido misto de locutor, jornalista e actor decide não medir palavras. Surjo também em destaque nas fotos da entrevista mas estranhamente não me acontece nada. Suspenso por três meses pela RR António reage com o sorriso de muitos significados de sempre e surpreendente tranquililidade. Pode até ser despedido. Embora longe de ver a vida como uma questão de estabilidade laboral ainda assim me preocupo: - E se te despedirem, o que é que vais fazer? - Sei lá, posso até vender laranjas à porta do Jardim Zoológico – responde ele, que agora mora em São Domingos de Benfica, ali a dois passos.
Integro o núcleo duro da resistência ao regime nos meios de comunicação, que se adequam como podem às limitações – alguns, na rádio, são obrigados a emigrar para a Alemanha para trabalhar na Deutsche Welle, e entre os que ficam, no grupo muito restrito, não há, é óbvio, camaleões. 3 de janeiro de 1974 – Quinta-Feira. Ed está de serviço das dez da noite à uma da manhã. Faz o noticiário das onze e fica a folhear o L’Express por absoluta falta do que fazer num turno sem notícias. Três para a meia-noite, vai à cabine onde ficam as três máquinas de telex ligadas às agências de notícias e numa delas passa os olhos por um pequeno despacho acabadinho de sair informando que o Kowait anunciou a nacionalização de 5% do petróleo que produz, explorado por uma empresa do grupo Calouste Gulbenkian. Destaca a notícia e angelicamente decide dá-la a abrir o noticiário sem esperar pelo telex em que a agência notificaria se ela está ou não autorizada pela censura. Cinco por cento não é nada, pensa, a bem dizer sem saber da importância do emirado na produção mundial de petróleo e que Gulbenkian era também conhecido como Mr. 5% - quase tudo o que possuía à época da sua morte era dividido em quotas desse porte em acções numa miríade de empresas. Mas 5% valem ao menos uma raríssima notícia de carácter interno, porque as que interessam são cortadas pela censura e as autorizadas não as dá. Volta a lê-la no noticiário da uma da manhã, num intervalo do programa Limite, o substituto do Tempo Zip, que foi proibido, arquiva o pouco trabalho feito na pasta de noticiário dado e vai à vida. Na tarde seguinte, de regresso ao bulô, o chefe recebe-o com uma mão no bolso e a outra fechada, a raspar o queixo com o polegar, sorrindo entre o embaraço e a ironia e a andar nervoso de cá para lá num pequeno espaço entre as secretárias na sala dos serviços. - Então o menino ontem fez das boas, hem? - O quê? Eu? O que é que eu fiz? - Uma burrada monumental. Deu uma notícia sem esperar pela censura – e estende-lhe a metade da folha A4 com a notícia. - O quê? Esta notícia foi censurada?! - Censuradíssima. Para a sua informação 5% do petróleo produzido no Kowait representa uma parcela importante do orçamento da Fundação Calouste Gulbenkian, o sustentáculo da actividade artística e cultural de alto nível neste país. O menino deu a notícia sem esperar pela censura, o seu colega da manhã, vendo-a dada, dá-a às oito, oito e um quarto e por aí adiante até às nove horas, quando lhe dizem que a notícia está proibida e por causa da sua veiculação o Conselho de Ministros está reunido. Agora, não sei o que vai ser de mim, que sou o chefe desta droga, e com o menino, que meteu a pata na poça. Aos 20 anos não se pensa na perda de um emprego como aos 30 ou 40, e no fundo não é essa possibilidade que o abala. Não lhe passa pela cabeça nem mesmo eventuais consequências ainda mais graves para a sua vida pessoal. O repórter de nenhuma reportagem – porque a censura leva à total inactividade da rádio nesse campo, o que é um absurdo, um gajo reduzir-se a escriba – está dependente de uma sentença determinada por interesses de altíssimo baixo nível, a ser comunicada a qualquer hora. Passam-se os dias e algumas semanas até que os jornalistas são convocados pelo chefe para uma reunião em que seriam inteirados da decisão tomada pela administração, Ed intimidadíssimo até saber que ela decidira acatar imposição do governo, através do secretário de Estado da tutela, Pedro Feytor Pinto, de submeter toda a programação da RR a uma censura oficial interna, em moldes a ser deliberados e comunicados oportunamente. A sua cabeça está a salvo. Aparentemente. A conta-gotas são comunicadas as inovações. O trabalho sujo de limpeza será feito por três profissionais destacados para a emissora, que trabalharão um à vez 18 horas por dia. Pouco a pouco é construída bem ao lado da sala de noticiários uma cabine onde os censores internos se instalariam, para nos ouvir melhor, comenta-se, não se vai nem mesmo poder conversar à vontade. António Castro regressa após três meses de inactividade e participa numa reunião em que o chefe comunica a proibição do termo guerrilheiro para designar os combatentes dos movimentos de libertação das colónias africanas, que por ordem dos esbirros só poderão ser chamados de terroristas. - Então, para quem não concorda com a imposição, e eu não estou de acordo, é claro, acabou-se a guerra... Não sei o que vocês pensam, mas por mim não se dá mais notícias da guerra. Para mim é como se tivesse acabado – sugere. E é o que se faz. Para a RR, a guerra colonial acabou em Fevereiro de 1974. |
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