Quase todas as noites de Lisboa, para o lumpen artístico-literário, começam por um encontro de boa parte da fauna, dividida em diferentes turmas, pelas mesas do Café Monte Carlo, da entrada ao restaurante, mesas do corredor e nichos do outro lado do bilhar. Há o grupo ‘dos cinemas’, o ‘dos teatros’, ‘dos jornais’, ‘dos poetas e tradutores’ e, entre eles, o fotógrafo Pedro Sousa Dias, quase sempre drufadíssimo mas mais rápido e certeiro no gatilho que Gary Cooper no duelo decisivo de High Noon, ou seja, O Comboio Apitou Três Vezes, a fazer o registo das belas e patéticas expressões de um período tudo somado nada alegre. Dali, a partir da meia-noite segue-se para o Monumental, ao lado, com um piso superior a sugerir um pequeno anfiteatro.

Lá sou apresentado por JCP à actriz Ofélia Lima. Perfil facial de Greta Garbo sem tirar nem pôr nada, ou a tirar e pôr somente o nariz, que no entanto se fosse substituído desequilibrar-lhe-ia as feições, bem ao contrário da diva entre as divas, pequena e um pouco acima do peso, o que é compensado q.b. pelo andar elegante sobre os sapatos meio demodés de sola grossa e salto alto, como ‘alta’ já ela está, sentada de lado com as costas apoiadas à parede, olhos verdes faiscantes de ternura mas muito inquieta, que se levanta para dizer alguma coisa numa ou noutra mesa, informa que está em cena numa montagem que os convivas não podem perder, no que chega Diogo que parece todinho feito para ela esta noite e que apesar dos dardos de ternura que lhe são lançados nem pede um copo e já vai de saída, a descer pela escada que eu e JCP subimos quando entrámos e ela, cerveja numa mão erguida e a outra mão apoiada ao espaldar sobranceiro ao anfiteatro, lança o brado inesperado:

       - EU PRECISO DE UM HOMEM!

        Como num teatro, a plateia explode em gritos e ovações. Olha a actriz primeiro para um lado e depois para o outro a rir, como a zombar de si mesma, e a agradecer a acolhida. Monumental fechado, vamos ao pub SamPaio, onde numa das mesas um homem gordo com um grande cachucho no dedo e cebola de ouro dá show de bêbada truculência frente a duas damas, a molestá-las com expressões inconvenientes e a espalhar uma aura de má vibração por todo o ambiente e com Jimi, que entretanto se nos agregou no Monumental, acrescento à primeira parte do tango da semana anterior outro toque de crónica de ocasião:

            Não há luz que corte as costas lisas num açoite

            Nem sol que rompa esta pernoita

            Há simplesmente um grito ao mijo retardado

            E a bededeira louca de um bobo a brilhar

       Samba, bolero e tango, ritmos da noite, da fossa, da piroseira, e se o samba fosse samba-canção a receita seria um retrato musicado preciso do ambiente fossilizado que se vive em Lisboa em Novembro de 1973, quando a noite e eu ainda somos duas crianças.