revoluciomnibus.com  James   Anhanguera ERa   Uma   Vez  A   RevolUÇÃo. ...I I I     MEDO ATRASO E ROCK NAS BERÇAS  NO SALOON II

     Ali está parte da nata da malandragem para-intelectual lisboeta, o poeta-tradutor hiperbêbado, as excelentes actrizes histriónicas, um revisor de provas de editoras magrinho e alto como uma agulha de cabelos lisos mantidos colados ao crânio por superdoses de brilhantina e que mais parece um dançarino de tango, fauna restrita e nauseante também ela, que se posta sentada à mesa ou peripateticamente tergiversa ziguezagueando entre as mesas e os pares dançantes na pista estreita. Mesmo se esfomeado, eu – que só bebo uma ou duas cervejinhas por local – recuso-me a comer ali simplesmente porque a penumbra é tão densa que não permite saber o que é, por exemplo, o bacalhau à Brás que os empregados trazem no meio do estardalhaço. Sim, há também um nada selecto grupo de ‘meninas’ a que ninguém do efémero grupo artístico-intelectual dá cavaco mas a que, vez ou outra, num raro entremês de aliança de classes, lá se irmana numa mesa.

       Em dados momentos parece que se está numa jaula de bestas de um zoológico humano ou de um hospício, e não é para menos.

       Com o trio musical em descanso JCP alteia a voz muitos decibeis acima dos sussurros da praxe para clamar de improviso uma melopeia poéticoetílica em prosa em que, olhando para as paredes, diz-se como Zavalita a olhar as capas da New Yorker e tu, meu amigo Zavalita – e olha-me com um riso de doido e abraça-me, obrigando-me a afastar-me e a afastar as suas mãos com cuidado, sempre a temer uma reacção inusitada de destemperamento -, dias e noites em conversas na catedral enquanto Kerouac espanta os mosquitos deitado no tejadilho do carro na grande noite mexicana, e vai de declamar de cor trechos inteiros de On The Road ou Debaixo do Vulcão até interromper a cavalgada e, abrindo o sorriso em travessão grosso entre a barba densa mas sempre bem aparada, pegar o copo e sorvê-lo entre um ponto e vírgula e um ponto final de ai meu Deus.

                 Essa nega fulô!...

                 Ora se deu que chegou

                 (isso já faz muito tempo)

                 no banguê dum meu avô

                 uma negra bonitinha

                 chamada Nega Fulô

- cola o poeta-tradutor de apelido italiano a colocar-se de súbito no centro da pista declamando como um trovão a imitar o brasilês e logo a amainar, em razoável interpretação do original.

                 Essa Nega Fulô!

                 Essa Nega Fulô!

- recita aos brados como a ver a nega.

       Ou então levanta-se ou dá uma volta meio curvado e, já quase a cair pelos cantos, com um sorrisinho de louco translúcido declama também em brasilês:

Noite grande...

              Apicum da beira da água está gostoso!

(porque põe uma exclamação onde Bopp não exclama, dando ao gostoso uma subida em escada de três tons, como a deliciar-se)

              Hoje tem céu que não acaba mais

              esticado até aquele fundo...

- porque reticencia com deleite apontando o tecto com o braço esticado e a palma aberta a meia altura do corpo, a olhar para a parede escura do mafuá como se estivesse a vê-lo – o céu.

               Não galgo, olho azul,

                 fidalgo, 

                 Mas um simples cachorro

                 Já seco.

 

                 Não cão

                 de uma constelação.

                 Mas um simples cachorro

                 de beco.

- diz às vezes num sussurro a um palmo da minha cara, como a fazer-me um galanteio, sempre com o sorrisinho maroto de bêbado, lançando-me perdigotos que me fazem repeli-lo, enojado.

       Não raro, no auge do delírio das feras do Cantinho, lá para as quatro da manhã, mais contundentes que uma ducha fria explodem sons de murros e cadeiras a partir-se e voam pedaços delas até estatelarem-se junto a uma mesa dos convivas na sala, por onde de repente deslizam vindos do balcão de entrada dois ou mais corpos engalfinhados numa bulha de galos de morte em físicos de brutamontes embarcadiços que com frequência arrastam duas ou três mesas e cadeiras e as pessoas que nelas estão sentadas a levantar-se como que com medo de uma onda, numa fúria que parece destinada a incendiar de verdade aquele inferno, mas que inopinadamente, e sem que se saiba muito bem como, estanca.

       Pergunto-me que massa estranha é aquela vermelho escura que se agarrou à fita de ráfia da minha bolsa de couro até que decido raspá-la e descubro ser sangue de um embarcadiço que quase me arrastou numa dessas vagas.

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