revoluciomnibus.com | James Anhanguera | ERa Uma Vez A RevolUÇÃo. ...I I I | MEDO ATRASO E ROCK NAS BERÇAS | DIVISÕES |
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Em pouquíssimo tempo as coisas começam a dar para o torto. Primeiro decido escrever algo a que chamo A História de Joana dos Arcos, um pretenso quadro neo-realista sobre as trevas em que se vive nas berças, que nem um professor de português e muito menos Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, que até inconscientemente influenciaram-me muito, aprovariam, terá sido reprovado pelo chefe e ele uma noite aproveita o ensejo para comunicar-me que o texto foi proibido pelo gerente da estação, um certo Padre Américo, e que ‘por motivos financeiros’ a minha colaboração está dispensada. - Só por falta de dinheiro, se o que aqui ganho é tão pouco! O chefe hesita. Olha para o relógio ao alto da parede do pequeno estúdio, põe a mão no bolso da camisa, saca um SG Gigante, acende e sopra. - É porque temos de cortar despesas sim, mas também porque não te identificas com a linha ideológica desta merda. Leo Ferré sua em melodia chorosa de um lirismo arrepiante dulcis in fondo, bem escutado far-me-ia cair em pranto, mas o áudio da cabine está no mínimo, para o deejay manter-se concentrado no seu discurso enfático e duro. - Ma... isso não é verdade. Sendo assim também fulano não me parece enquadrado à tua linha. E sicrano não se cansa de passar Magma (grupo francês do baterista Christian Vander, cuja desconstrução da linguagem verbal, com a criação de um estranho idioma, é tida entre os musicómanos oposicionistas como tendo conotações nazis, embora ninguém de bom senso ouse dizer que a sua música é uma merda). - Talvez. Mas isso não importa. O que interessa, por exemplo, é a limitação de massas que nós temos. Outro dia fui a Paris e não tive dinheiro para comprar um disco da malta que costumamos passar aqui. Um disco sequer! Pera lá um pouquinho. Acabamos de ouvir Leo Ferré, Cette blessure. Seguimos com Georges Brassens. Pega o cigarro, que pousara no cinzeiro, dá um trago e retoma o discurso: - Como te dizia, o Zé Duarte foi a Nova York, pedi-te para fazer uma lista de discos para ele trazer e o que é que escolheste? Merda. Coisas intocáveis aqui. E apanhando a pilha de discos previamente colocada sobre a mesa: - Tom Paxton, ok, ainda tá como o outro, agora este anarquista de merda, Frank Zappa (Just Another Band From L.A.), John Lennon (Sometime in New York City)..., logo um duplo LP de pretensa consciência política, logo ele, um novo rico de merda... Joni Mitchell (For the Roses)... enfim..., agora este gajo aqui, Ludon, como é que é mesmo?, London, Loudon Wainwright – o que é isso? (com um riso de escárnio) The Third! O terceiro! Ostentando o quê? Origem aristocrática?! Tadinho. Com essa voz de aborto!... Isto é intragável... Enfim, não leves a mal, pá, és um gajo porreiro mas achamos que és um anarca e temos de dispensar-te. - Eu, anarca?! Mas o que é que te leva a pensar uma coisa dessas?! Não estou de acordo, mas não posso fazer nada mesmo, né? Dirijo-me ao aquário ao lado, onde fulano arruma uns discos e papeis no armário. - O que é que ele te disse? – inquire, com ar de quem já sabe. - Que não sou da mesma linha ideológica de vocês e que por isso estou dispensado. Ora, a mim não me parece que tu sejas da linha ideológica dele. Ou será que me engano? Sem resposta, o colega deixa de cofiar o bigode e volta ao trabalho. |
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