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Cultura é essencialmente o que se faz aí fora – cinema, teatro, artes plásticas e literatura. Até uma apresentação de Maurice Béjart na Gulbenkian foi proibida porque ele se manifestou contra a guerra nas colônias. Ah, sim, há a Gulbenkian, os extraordinários edifício e jardins e memoráveis retrospectivas cinematográficas, concertos e recitais. A censura não permite a exibição em Portugal de toda a cinematografia produzida, mas em compensação é cada vez maior o número de retrospectivas com que também se perde a noção de se estar fora do mundo: de Farenheit 451, de Truffaut, um crítico não pode sequer enunciar o tema, por tratar precisamente de um dos aspectos tenebrosos do que aqui se vive, não na evocação de um passado recente e como hipótese num futuro próximo, como no filme e no conto de Bradbury, mas num presente ultrapassado, nos dois sentidos. Antigamente os bombeiros não serviam para apagar fogos, em vez de queimar livros? – pergunta angelicamente uma personagem ao ‘bombeiro’, que entretanto os tem bem escondidos em casa para lê-los às escondidas da própria mulher. Como muita gente do meio vejo até seis filmes por semana, antigos ou novos, de alta intensidade e densidade, grande arte também de se manter mudo, só a domar.
Ainda sem estro no discurso articulado, mais ouço que falo. Mas o pessoal é também muito lacónico. Fala muito para dentro para os meus hábitos auditivos e muito por subentendidos, a deixar frases pelo meio e a dizer tás a ver? - e eu a ver cataratas..., donde essa abstrusa falta de entendimento claro do que se passa. Mas quem o tem afinal? Vive-se cegueta a tactear terreno à cata de referências para captar algum elemento vivo. Em Portugal, simbiose raríssima. Como se, ao adquirir estilo próprio também em inglês, um escritor russo emigrado como Nabokov passasse subitamente a ser inglês ou americano. A língua dá-me a sensação de estar num outro estado de um Brasil alargado a todo o mundo da língua portuguesa, embora nunca me passe pela cabeça que também em África se fala português. Rapidamente, por ambição profissional – escrever e falar como os portugueses - mesmerizo a visão, a vivência, o modo de ser português, embora os vícios de sotaque quase sempre sobressaiam. Em Portugal há também mais informação sobre o Brasil, o que dá-me a permanente sensação de - sem saber quanto tempo permanecerei longe - estar só a viver uma fase a milhas de problemas de que entretanto me informo como posso, a ler nas entrelinhas, embora sejam de outra ordem e escala no Brasil. Sou até por incipiência um outsider. Lutar contra as injustiças – belíssima proposta. Todos os que o fazem, no meio muito meio, tiveram de um modo ou outro um pé ou os dois na pobreza. É a mesma luta de classes: uns quantos pés-rapados, no máximo enjeitados, e um ou outro borra-botas solidário, e a mim dá-me para a vergonha na cara ou então não há alternativa mesmo, nem penso duas vezes: continuo underground nos subterrâneos portugueses. Como nos anos 60 os cinemas Monumental, Império e S. Jorge foram palco de espectáculos de music hall e concursos de conjuntos de rock, em 72 o Alvalade é balão de ensaio de uma experiência inusitada, três concertos de rock com o óptimo Brian Auger’s Oblivion Express, o deutsche rock do Embryo e Beggar’s Opera, pobre representante do progressive sound, já a dar de frosque. Sente-se ao menos uma lufada d’ar diferente no ambiente claustrofóbico de primavera marcelista, que é de arrancar os cabelos (compridos). No cenário nacional, Jorge Lima Barreto faz experiências do arco-da-velha, sobretudo ao redor do Porto, com a sua Anar Jazz Band e no livro A Revolução do Jazz, caso único na modalidade. Foi lançado recentemente um jornal quinzenal de cultura, & ETC., revolucionário na forma e no aspecto gráfico, mas que apesar de osanar sobretudo o surrealismo ainda me parece bastante sisudo. E ainda em português, no RCP-FM Nuno Martins passa quase todos os dias mais uma aula de contestação nas entrelinhas de Chico Buarque, ouça um bom conselho que eu lhe dou de graça, inútil dormir, a dor não passa. |
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