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Quase não se fala do regime e do regime de mordaça e espartilho a que ele obriga, que é como um facto consumado e um fardo com que se tem de viver – por toda a vida?, pergunta-se de si para si. Aliás, quase não se fala - por quanto tempo ainda? Depois do outro ter demorado tanto até para morrer, não se pensa nem mesmo em algo além de Marcelo Caetano. Pela lógica uma nova mudança só virá com o desaparecimento inesperado do herdeiro de Salazar, o delfim não designado, que só poderia cair de maduro, teme-se, porque por mais de quarenta anos Salazar conseguiu criar uma intrincada rede de informadores - ou ‘moscas’, como são chamados em Espanha os agentes da polícia política de Franco - que não deixam passar nada na sua malha fina de ouvidos. Um dos maiores êxitos na rádio é Construção/Deus lhe Pague, de Chico Buarque – por esse pão pra comer por esse chão pra dormir, Deus lheee pagueee... – por uma vez quase sem exemplo um êxito comercial diferente da foleirice costumeira e uma forma diferente de protesto em português.
As 168 maiores empresas nacionais, que controlam metade da riqueza do país, pertencem a apenas dez famílias-donatárias, contra toda a lógica da livre concorrência capitalista. Para a maioria da população portuguesa a Idade Média não acabou. Algo surpreendente é que quase todos os lusíadas que conheço, homens ou mulheres, acumulam poemas na gaveta. Há quem os organize em pastas e até os leve a passear ao café, quando sem conteúdo político explícito, ou os mostre à socapa em casa às visitas, os livros sobre marxismo ou similares escondidos atrás dos romances. E o que dizer dos telefones, em que, quando se quer dizer alguma coisa, não se diz coisa com coisa? É como um permanente recolher obrigatório, recolhimento de alma, pensamentos, sentimentos mais profundos. Passa-se horas no paleio sobre uma música, um poema, livro, filme, artigo ou entrevista, falando-se por subentendidos. E quase só se fala em surdina, como Miles faz soar a sua trompete. Nunca se fala de livros proibidos, além de uma ou outra menção en passant com sorriso e olhar de subentendido, como do Delfim, do Dinossauro Excelentíssimo ou dAs Três Marias, cuja interdição seguida de processo às autoras deu brado na imprensa internacional. Ninguém é tolo de andar com livros comprometedores. Compra-se, quando se os acha, e vai-se directamente para casa arrumá-lo atrás de um ‘clássico da literatura universal’. Quem gosta não sai de casa sem um livro, de preferência importado, que o mais das vezes alguém mudo pega para olhar e mudo devolve ou pousa onde o pegou. Notícias como as do Vietname são mudas. Porque o Vietname parece muita longe e ninguém é parvo de se pôr a comentar a tragédia provocada por um povo branco que foi ao outro lado do mundo lutar contra amarelos para defender a terra que roubou ao povo vermelho, como resumiram os autores de Hair. A foto da rapariguinha a correr nua na estrada, da ponta dos dedos à cara convulsionada a clamar por ajuda, é muda (e é assim que os americanos perdem a guerra). O Vietname é mudo, sem som, vanguarda das inclementes guerras de autóctones contra invasores. Os vietcongs estão na mais pura clandestinidade também em Portugal. Mas os jornais reportam (quase) tudo do que se passa no ‘lado de fora’, enquanto a RTP, que não vai além dos teleteatros naturalistas e das sacrossantas variedades, pretende congelar-nos num tempo de Histórias Simples da Gente Cá do Meu Bairro ou das berças à luz de querosene e ao redor do fogo. |
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