GUIA A LEITURAS DE OS SERTÕES DE EUCLIDES DA CUNHA E DOS SERTÕES DO NORTE HOJE ONLINE E ON THE ROAD 

TRECHOS COM O ESSENCIAL PARA A COMPREENSÃO DO CONTEÚDO DE OS SERTÕES 

ENQUADRADOS E CONTEXTUALIZADOS NA HISTÓRIA

a partir do texto original da terceira edição de acordo com as revisões feitas pelo próprio Euclides da Cunha num exemplar que está na Academia Brasileira de Letras   

OS SERTÕES, 3ª EDIÇÃO: RIO DE JANEIRO, LAEMMERT, 1905

reproduzida em edição Livros do Brasil, Lisboa, s/d

                                                                                             

            Os Sertões

                                      

                                                                                                            NOTAS À 3ª EDIÇÃO

                                                                                            27-4-1903

[467]         

este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque [aos] singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas

[468]        

                Neste salto mortal de 466 páginas

[469]        

E compreendo que Antônio Conselheiro repontasse como uma "integração de caracteres diferenciais, vagos e indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão" - e não como simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento. 

 

                                        

                          uma série revoluciomnibus.com 

                                                                                               

 

                 Os Sertões               Euclides da Cunha & Os Sertões

                   O triste e belo fim de Joana Imaginária & Antônio Conselheiro

 Canudos Hoje: Tendão dos Milagres X O Amuleto de Ogum   

 

 

                                                  

  TRISTERESINA  

      BANGUE-BANGUE

      NA  TERRA DO SOL

 

           

           duna 

   do pôr do sol

Coriscos & Dadás Lampiões &  Marias Bonitas

  Até calango pede sombra  

 

GLAUBER ROCHA OU A POÉTICA DA LUZ DO SERTÃO NO CINEMA NOVO BRASILEIRO  

 

A INDÚSTRIA 

DA SECA

 

No Pátio dos Milagres do Padim Ciço

O triste e belo fim de Joana Imaginária & Antônio Conselheiro

INDISSECA

   índice remissivo

              Os Sertões

TRECHOS CONTEXTUALIZADOS E COMENTADOS COM O ESSENCIAL PARA A COMPREENSÃO DO CONTEÚDO DE OS SERTÕES 

 

     

                                       NOTA PRELIMINAR

[5]     Intentamos esboçar (...) os traços atuais mais expressivos das subraças sertanejas do Brasil. E fazemo-lo porque a sua instabilidade de complexos, de fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada às vicissitudes históricas e deplorável situação mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras, destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização (...)

      O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório serão em breve tipos relegados às tradições evanascentes ou extintas.

     Campanha de Canudos (...) um primeiro assalto em luta talvez longa (...) [na luta dessa] implacável "força motriz da História" que Gumplowicz, maior do que Hobbes, (...) lobrigou (...) no inevitável esmagamento das raças fracas pelas fortes.

     Campanha lembra um refluxo para o passado (...) e foi, na significação integral da palavra, um crime.

                                                                                                             São Paulo, 1901

 

 

 

 

 

                De     Os Sertões

 

 

 

 

  Tanquinho: Esse logar maldicto   

      A Província de São Paulo

     22 de setembro de 1897

     - chegada de Euclides da Cunha

          a Canudos

 

 

 

 

 

 

Euclides da Cunha segue para Canudos, na comarca de Monte de Santo, como se não fosse de ita mas por terra descrevendo a partir de estudos cartográficos o aspecto físico do litoral do sudeste ao interior de Minas Gerais, aos chapadões onde nascem o rio das Velhas e o São Francisco

             descreve a terra como se armasse um palco onde se desenrolará a tragédia de Canudos

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TRECHOS COM O ESSENCIAL PARA A COMPREENSÃO DO CONTEÚDO DE OS SERTÕES 

ENQUADRADOS E CONTEXTUALIZADOS NA HISTÓRIA

 

 

A TERRA

 

[9] até que, em plena faixa costeira da Bahia, o olhar, livre dos anteparos das serras que até lá o repulsam e abreviam, se dilata em cheio para o Ocidente, mergulhando no âmago da terra amplíssima lentamente emergindo num ondear longínquo das chapadas

Euclides e o leitor estão já

sob a linha fulgurante do trópico...

sous le soleil exactement, sur les côtés du Pernambouc, como cantou setenta anos depois Serge Gainsbourg langorosamente porque seu personagem, L'Homme À Tête de Chou, idealizando-se sob influência dos efeitos tão bem estudados por Euclides da Cunha nos tratados de climatologia, sonha a partir de folhetos de agências de viagens com as costas litorâneas desse mesmo pernambuco a que Euclides só fará referência para vincar o contraste de fulgurâncias... 

Para vincar a demarcação do território, quase um deserto atravessado pelo São Francisco, uma vez ali chegados retrocede a sudoeste, a Minas, de onde  

[10] abrem-se adiante os fundos vales de erosão do rio das Velhas e do S. Francisco

e a

[11] bacia de captação do S. Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, 

território que de outros (mesmos) sertões, os de João Guimarães Rosa, adentra o território baiano onde

a região montanhosa (...) se vai prendendo, sem ressaltos, à extensa zona dos tabuleiros do norte.

[12] Estiram-se então planuras vastas. Galgando-as pelos taludes, que as soerguem dando-lhes a aparência exata de tabuleiros suspensos, [surge] a paisagem formosíssima dos campos gerais, expandida em chapadões ondulantes - grandes tablados onde campeia a sociedade dos vaqueiros...

Atravessemo-la.

(...)

Reponta a região diamantina, na Bahia, revivendo inteiramente a de Minas, como em desdobramentos ou antes num prolongamento, porque é a mesma formação mineira

[13]    A ENTRADA DO SERTÃO

 Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte.

Demarca-o de uma banda, abrangendo dois quadrantes, em semicírculo, o rio de S. Francisco; (...) Seguindo a mediana (...) vê-se o traço de um outro rio, o Vasa-Barris, o Irapiranga [ou mel vermelho] dos tapuias, cujo trecho de Geremoabo para as cabeceiras é uma fantasia de cartógrafo (...) por onde (...) não há situações de equilíbrio para uma rede hidrográfica normal. Ali reina a drenagem caótica das torrentes, imprimindo naquele recanto da Bahia fácies excepcional e selvagem

... o ecossistema onde se desenrola o drama.

[14]      TERRA IGNOTA

Abordando-o, compreende-se que até hoje escasseiem sobre tão grande tracto de território, que quase abarcaria a Holanda, (...) notícias exatas ou pormenorizadas. As nossas melhores cartas (...) lá têm um claro expressivo, um hiato, Terra Ignota, em que se aventura o rabisco de um rio problemático ou idealização de uma corda de serras.

É que transpondo o Itapicuru, pelo lado sul, as mais avançadas turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos (...) entre os quais o decaído Monte Santo tem visos de cidade (...) lugares evitados sempre pelas vagas humanas que vinham do litoral baiano procurando o interior.

Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços.

Nenhuma lá se fixou. Não se podia fixar. O estranho território, a menos de quarenta léguas da antiga metrópole, predestinava-se a atravessar absolutamente esquecido os quatrocentos anos da nossa história.

[16] Varada a estreita faixa de cerrados, que perlongam o (...) Jacuricy, está-se em pleno agreste, no dizer expressivo dos matutos 

e que obriga o repórter a passar a exibir o não menos assombrador repertório lexicográfico em torno das mais agudas asperezas e desolações

 sertão inóspito (...)  o pardo requeimado das caatingas

colinas nuas envoltas pelos mandacarus despidos e tristes, como espectros de árvores (...)

                

A serra de Monte-Santo, comarca do epicentro do drama, em descrição tal ou mais ou menos como se vê em Deus e o Diabo na Terra do Sol, em que Glauber Rocha iniciou os seus ensaios sobre o sertão a partir d'Os Sertões

 [17]    A Serra de Monte-Santo (...) empina-se, a pique, na frente, em possante dike de quartzito branco, de azulados tons, em relevo sobre a massa gnêissica que constitui toda a base do solo. Dominante sobre a várzea que se estende para sudeste, com a linha de cumeadas quase retilínea, o seu enorme paredão, vincado pelas linhas dos estratos, expostas pela erosão eólia, afira-se cortina de muralha monumental. Termina em crista altíssima, extremando-lhe o desenvolvimento no rumo de 13º NE, a cavaleiro da vila que se lhe erige no sopé. Centraliza um horizonte vasto.

PRIMEIRAS IMPRESSÕES

      É uma paragem impressionadora.

     As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. (...) - dispondo-se em cenários em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens.

flora decídua embaralhada em esgalhos

o martírio da terra        

[19] estratos de um talco-xisto azul-escuro em placas brunidas reverberando a luz em fulgurar metálico

mangabeiras  À luz crua dos dias sertanejos  natureza torturada

[21] aquele ignoto trecho do sertão -  quase um deserto

onde os

[23] rios (...) são, antes, canais de esgotamento

[22]   DO ALTO DE MONTE SANTO

Euclides da Cunha  chegou a Canudos a 19 de setembro de 1897, no auge das investidas do desfecho da guerra ou massacre. E o repórter continua a exibir o repertório lexicográfico em torno das mais agudas asperezas e desolações

 

 griffithsianas 

Sempre evidenciado e caracterizado como um recurso para driblar as  dificuldades de lidar com uma avalanche de saberes e com as incongruências e/ou discrepâncias dos mil e um aspectos da história e da realidade contemporânea que descamba em nada mais nada menos que a guerra ou o massacre de Canudos, que o faz recorrer a apostos, paralogicismos, paráfrases discordantes e oxímoros (expressão afinal do "samba de crioulo doido" do-s contexto-s que abarca), o jogo com os paradoxos e paroxismos do escrivão baseia-se numa insuspeitável grande dose de humour - de distanciação, para quem lida com elementos e vive uma existência que se revelará tão trágica - angustiado, trágico, inquieto e torturado -, e que estabelece de imediato a distanciação mas também faz subentender um certo humor brincalhão mesmo, mesmo em meio a tanta desolação e drama, reflete-se também em seu jogo de títulos intercalares dos blocos de narrativas, com que imprime ao discurso uma dinâmica de flash / instantâneo que, se não revolucionária mesmo para a época (o que talvez fosse), imprime ao texto um estilo muito moderno e/ou atual em tempos de twitter - 140 dígitos por mensagem. Parece estar até também de brincadeira - e num dos aspectos dessa brincadeira de um modo muito sério, pois sobretudo quando os repete (Em Canudos... Do Alto da Favela... Crítica...) parece estar dando a um Glauber Rocha, em 1900, quando a narrativa cinematográfica inda nem engatinhava, sugestões de montagem com inserções griffithsianas (de D.W. Griffiths) do tipo - voltando àquele ponto, ou atualizando daquele ponto, ou enquanto isso em...  

[24]    DO ALTO DA FAVELA

E quase compreendia que os matutos crendeiros, de imaginativa ingênua, acreditassem que "ali era o céu..."

caatingas estonadas [de] matutos crendeiros

 

[25 ]                                               IV

O CLIMA

 desertus austral, como a batizou Martius

Martius por lá passou com a mira essencial de observar o aerólito que tombara à margem do Bendengó e era já, desde 1810, conhecido nas academias europeias graças a F. Mornay (...)           

[27] galhada sem flores da flora sucumbida

[28] martirizados sertanejos   (acima: natureza torturada)

[30]   AS SECAS

O sertão de Canudos é (...) de algum modo uma zona central comum (...) dos sertões do norte (...) para ele

convergindo

  as lindes interiores de seis Estados - Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauhy - que o tocam ou demoram distantes poucas léguas. (...) os seus ciclos (...) abrem-se e encerram-se com um ritmo tão notável que recordam o desdobramento de uma lei natural ainda ignorada. (...) flagelo, intercortado de intervalos pouco díspares de 9 e 12 anos

  [31]     HIPÓTESES SOBRE A GÊNESE DAS SECAS

[32] Um dos motivos das secas repousa, assim, na disposição topográfica. (...) monção de nordeste, atraída por forte aspiração de vasta superfície alargada até o Mato Grosso - o nordeste vivo passa por chapadões desnudos que o canalizam para lá, faltando o dynamic colding de cordilheiras 

    o dynamic colding de cordilheiras 

dispostas em sua perpendicular

[34]                 AS CAATINGAS

 

FLORA E FAUNA

[37] as catingueiras (...) e os canudos de pito, heliotópios arbustivos de caule oco, pintalgado de branco e flores em espigas destinados a emprestar o nome ao mais lendário dos vilarejos...

   O JOAZEIRO

[38] os chique-chiques (cactus peruvianus) são os vegetais clássicos dos areais queimados  (...)  uma variante [dos mandacarus (Cereus jaramacaru)] de proporções inferiores (...) as palmatórias do inferno, opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos

em cenário de inferno em vida de que os crendeiros de Canudos almejam escapar

[39] Compreende-se então a verdade da frase paradoxal de Auguste Saint-Hilaire: "Há ali toda a melancolia dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão!" 

nuvens carregadas prenunciando enfim um aguaceiro parecem estar 

sarjando fundamente a imprimadura negra da tormenta

e como que por milagre quando o aguaceiro passa a natureza

 É uma mutação de apoteose.

[40]                O UMBUSEIRO

     É a árvore sagrada do sertão (...) alimenta-o e mitiga-lhe a sede.

 

[40]                    A JUREMA

Se d. Pedro II chegou a importar camelos do Egito na tentativa de minorar os problemas dos matutos com a seca e o "quase deserto" da caatinga sugere certas analogias com o Saara e os seus povos - Ali, cercado de montanhas, da vegetação impenetrável das caatingas, de trechos desertos que lembram (...) oueds do Saara [Oued - termo geográfico, de origem árabe; pequenas fontes de água ou riachos encontrados em regiões desérticas E oásis] - e se, enfim, pelo seu regime entre a jagunçada de Canudos para o repórter do final dos tempos "a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada de coletivismo tribal dos beduínos", ela é até mais que lógica mas ainda que o leitor aqui chegado possa já ter se familiarizado com o transfer Nordeste do Brasil-norte da África a analogia a seguir - que irá retomar adiante em relação à cachaça - lhe parecerá de grito, como talvez se dissesse já no tempo de Euclides da Cunha

     As juremas, prediletas dos caboclos - o seu hachich capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico

umburanas

[41] angicos    (...)  araticuns    (...) emas velocíssimas e as seriemas de vozes lamentosas (...) sericoias vibrantes   (...) sussuaranas (...) mocós espertos (...) maritacas

macambira - espécie de bromélia com espinhos retorcidos como anzóis

[43]                      V

UMA CATEGORIA GEOGRÁFICA QUE HEGEL NÃO CITOU   

- Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...

[44] mutações fantásticas

[47]     COMO SE FAZ UM DESERTO

Esquecemo-nos todavia de um agente geológico notável - o homem. (...) entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo o decorrer da história, o papel de um terrível fazedor de desertos.  (...) queimas dos aborígenes (...) o colonizador copiou o mesmo proceder (...) - o fogo - primeiro o índio depois o "branco"- o colonizador. Engravesceu-o ainda com o adotar, exclusivo, no centro do país, fora da estreita faixa dos canaviais da costa, o regímen francamente pastoril.

caapuera - mato extinto: (...) até que, de todo exaurida aquela mancha de terra, fosse, imprestável, abandonada em caapuera. 

[48] o sertanista, ganancioso e bravo, em busca do selvícola e do ouro  (...) povoações ribeirinhas do S. Francisco (...) estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história (...) o reflexo rubro das queimadas. (...) o próprio governo colonial. Desde 1713 sucessivos decretos (...) E ao terminar a seca lendária de 1791-1792, a grande seca (...) severa proibição do corte das florestas (...) cartas régias (...) e a de 11 de junho de 1799 decretando que "se coíba a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes (da Bahia e de Pernambuco) que têm assolado a ferro e fogo preciosas matas... que tanto abundavam e já hoje ficam a distâncias consideráveis, etc." 

Monte-Santo, então o Pico-arassá dos tapuias

[49]    COMO SE EXTINGUE O DESERTO

Na Tunísia os romanos fizeram o deserto recuar com uma rede de barragens. Represar ou irrigar? O que fazer? O exemplo brasileiro de erro dado por Euclides há cento e tal anos é o açude de Quixadá. Alguns outros, não menos crassos, como o de Orós, sugerem pensar-se em Os Sertões / Canudos há cento e tal anos e Os Sertões / Canudos hoje. Na Tunísia dos romanos

este sistema de represas, além de outras vantagens, criara um esforço de irrigação geral. Ademais, todas aquelas superfícies líquidas, esparsas em grande número e não resumidas a um Quixadá único - monumental e inútil - expostas à evaporação, acabaram reagiando sobre o clima, melhorando-o. Por fim a Tunísia (...) se fez, transfigurada, a terra clássica da agricultura antiga. Foi o celeiro da Itália; a fornecedora, quase exclusiva, de trigo, aos romanos.

Os franceses, hoje, copiam-lhes em grande parte os processos, sem necessitarem levantar muramentos monumentais e dispendiosos. Represam por estacadas, entre muros de pedras secas e terras, à maneira de palancas, os oueds mais bem dispostos, e talham pelo alto suas bordas, em toda a largura das serrania que os ladeiam, condutos derivando para os terresenos circunjacentes, em redes irrigadoras.

(...) os sertões do norte (...) se apropriam a uma tentativa idêntica, de resultados igualmente seguros.

A idéia não é nova. Sugeriu-a (...) em 1877 (...) Beaurepaire Rohan (...) nas discussões então travadas

por conta da grande seca daquele ano. E relembra o cronista d`Os Sertões brasileiros que na época

Idearam-se (...) luxuosas cisternas de alvenarias; miríades de poços artesianos, perfurando as chapadas; depósitos colossais, ou armazéns desmedidos para as reservas acumuladas; açudes vastos, feito cáspios artificiais; e, por fim, como para caracterizar bem o desbarate completo da engenharia, ante a enormidade do problema, estupendos alambiques para a distilação das águas do Atlântico!...

[51]   O MARTÍRIO SECULAR DA TERRA 

Realmente, entre os agentes determinantes da seca se intercalam, de modo apreciável, a estrutura e a conformação do solo. Qualquer que seja a intensidade das causas complexas e mais remotas que anteriormente esboçamos, a influência daquelas é manifesta desde que se considere que a capacidade absorvente e emissiva dos terrenos expostos, a inclinação dos extratos, que os retalham, e a rudeza dos estios e a degradação intensiva das torrentes. De sorte que, saindo das insolações demoradas para as inundações subitâneas, a terra, mal protegida por uma vegetação decídua, que as primeiras requeimam e as segundas erradicam, se deixa, a pouco e pouco, invadir pelo regímen francamente desértico.

(...) O regímen decorre num intermitir deplorável, que lembra um círculo vicioso de catástrofes.

(...)

[52] O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores técnicos.

(...)

[52] O processo que indicamos, em breve recordação histórica, pela sua própria simplicidade dispensa inúteis pormenores técnicos.

(...)

O martírio do homem, ali, é reflexo de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida...

     Nasce do martírio secular da terra...

 

Como Euclides cita a Tunísia dos romanos aos franceses, nas últimas décadas citou-se à exaustão o exemplo moderno de Israel e pode-se citar o do terrier em que se transformaram Juazeiro e Petrolina com a irrigação das terras banhadas pelo rio São Francisco na região. Problemas e questões relacionados à seca no NE do Brasil e propostas para a sua solução estão expostos em 

A INDÚSTRIA DA SECA um documentário  revoluciomnibus.com da série      

   acessível a partir DAQUI

 

Soldado expedicionário e modelo posa em 1897 para o fotógrafo Flávio de Barros na porta de uma cabana de taipa de Canudos

Casa de taipa (net-like wall) no sertão da Bahia anos 2000

           Matuto do sertão da Bahia anos 2 000        

             

 

[53] O HOMEM  

 (...) Gênesis dos jagunços; colaterais prováveis dos paulistas  Religião mestiça; seus fatores históricos           Antônio Conselheiro, documento vivo do atavismo. Um gnóstico bronco. Grande homem pelo avesso, representante natural do meio em que nasceu.       Como se faz um monstro       Canudos  Regímen de urbs. Polícia de bandidos.       Jerusalém de taipa.  

[55]      COMPLEXIDADE DO PROBLEMA ETNOLÓGICO NO BRASIL    

[57] uma mestiçagem embaralhada (...) mamaluco ou curiboca (...) (cari-boc, que procede do branco)

[58] A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. (...) Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.

Por esse trecho diz-se que se pode atribuir a Euclides da Cunha o título de "Pai da Teoria do Desenvolvimento Brasileira". Ele encerraria já a ideia desenvolvimentista euclidiana que encontraria plena acolhida e justificação em toda sua obra. Em Castro Alves e seu Tempo, quando prevê a transformação da Cachoeira de Paulo Afonso em fonte de energia elétrica abundante e barata, para iluminar as cidades e fazendas do Nordeste; na ideia da construção da TRANSACREANA (hoje integrada com a TRANSAMAZÔNICA [enquanto este trecho dá por sua vez para se perguntar o que está de fato integrado a que]); nos planos para ligação de São Paulo - Cuiabá, através da NOROESTE PAULISTA, tal como acontece hoje; nos estudos sobre a ligação transcontinental entre o Pacífico e o Atlântico (...); nos planos para ligação, por meio de canais, das Bacias Amazônica e Platina 

[60] as vagas humanas, que nos dois primeiros séculos de povoamento embateram as plagas do norte tiveram na translação para ocidente, demandando o interior, obstáculos mais sérios que a rota agitada dos mares e das montanhas, na travessia das caatingas ralas e decíduas. O malogro da expansão baiana, que entretanto precedera à paulista, no devassar os recessos do país, é exemplo frisante. (...) 

[66] Preso no litoral, entre o sertão inabordável e os mares (...)

[70]   OS PRIMEIROS POVOADORES    

As gentes portuguesas não abordavam o litoral do norte robustecidas pelas forças vivas das migrações compactas (...) Vinham esparsas, parceladas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos (...) o Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos (...) 

no início do século XVI

[71] a desproporção entre o elemento europeu e os dois outros continuou desfavorável (...) Segundo Fernão Cardim existiam 

na Bahia

2.000 brancos, 4.000 negros e 6.000 índios. (...) Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos (...) a extinção do indígena no norte, segundo o pensar de Varnhagen, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro extermínio.

[72]         OS JESUÍTAS

 (...) Embora quimérica a tentativa de alçar o estado mental do aborígene às abstrações do monoteísmo, ela teve o valor de o atrair por muito tempo, até a intervenção oportuna de Pombal, para a nossa história.[73] Em 1530 salpintavam as ruas de Lisboa mais de dez mil negros, e o mesmo sucedia noutros lugares. Em Évora tinham maioria sobre os brancos.     Os versos de um contemporâneo, Garcia de Resende, são um documento:

Vemos no reino meter/ Tantos cativos crescer; / Irem-se os naturais/ Que, se assim for, serão mais/ Eles que nós, a meu ver.

já no Brasil

 (...) o negro humilde feito quilombola temeroso, agrupando-se nos mocambos, parecia evitar o âmago do país. (...) Palmares, com seus trinta mil mocambeiros,  (...) O elemento africano de algum modo estacou nos vastos canaviais da costa, (...)

[75]                                  II

 GÊNESE DOS JAGUNÇOS

do Brasil subtropical. (...) rio de São Francisco, "o grande caminho da civilização brasileira" (João Ribeiro, História do Brasil) (...) S. Francisco (...) foi nas altas cabeceiras, a sede essencial da agitação mineira; no curso inferior, o teatro das missões, e, na região média, a terra clássica do regímen pastoril, único compatível com a situação econômica e social da colônia

[76] extinta com a expedição de Glimmer (1601) a visão enganadora da "Serra das Esmeraldas", que desde meados do século XVI atraíra

um monte de gente

 para os flancos do Espinhaço (...) se havia apagado quase que ao mesmo tempo as miragens da misteriosa "Sabará-bussu" e as das "Minas de Prata" (...) 

o que fez com que

as entradas sertanejas volvessem ao anelo primitivo (...) e, irradiando do distrito de Ouro Preto, se espraiassem de novo, mais forte, pelo país inteiro.

     (...) surgira na região que interfere o médio S. Francisco um notável povoamento 

[77]    FUNÇÃO HISTÓRICA DO RIO S. FRANCISCO

 o acesso fazia-se pelo S. Francisco (...) unificador étnico (...) os forasteiros, ao atingirem o âmago daquela região, raro voltavam. (...) terra, do mesmo passo exuberante e acessível, (...) a sua flora complexa e variável, (...) e o regímen pastoril ali se instalou 

[78] (...) extensa zona de criação de gado que já no alvorecer do século XVIII ia (...) de Minas a Goiaz, ao Piauí, aos extremos do Maranhão e Ceará pelo ocidente e norte, e às serranias das lavras baianas, a leste. a maioria dos criadores opulentos que ali se formaram vinham do sul. 

 OS JAGUNÇOS: COLATERAIS PROVÁVEIS DOS PAULISTAS

que

ali ficaram

[79]                   O VAQUEIRO

 inteiramente divorciados do resto do Brasil e do mundo (...) aquela rude sociedade, incompreendida e olvidada, era o cerne vigoroso da nossa nacionalidade (...) 

     Os primeiros sertanistas que a criaram, tendo suplantado em toda a linha o selvagem, depois de o dominarem escravizaram-no e captaram-no, aproveitando-lhe a índole na nova indústria que abraçavam. 

a criação de gado

Nestas linhas o autor sintetiza o processo social então desdobrado: conflito aberto entre os sertanistas e colonos, invasores vindos do sul e do litoral e os índios, habitantes primitivos da região. Conflito que se resolveu a favor da "raça branca" e dos mestiços (termos euclidianos), com a sujeição do "selvagem" e a dominação dos sertanistas (bandeirantes).

    Veio subsequentemente o cruzamento inevitável. E despontou logo uma raça de curibocas puros  

curibocas puros  

quase sem mescla de sangue africano

[80] Criaram-se numa sociedade revolta e aventurosa, sobre a terra farta; e tiveram, ampliando os seus atributos ancestrais, uma rude escola de força e coragem naqueles gerais amplíssimos, onde ainda hoje ruge impune o jaguar e vagueia a ema velocíssima (...)

 Lealdade, afeto, tabus, cooperação, sacrifício e outros padrões de conduta respeitados na sociedade comunitária campesina dos sertões de Canudos estão suficientemente demonstrados em todo livro [que] oferece muitos exemplos relativos a esses conceitos sociais.

Tradições : Folclore - as origens

     Fora longo traçar-lhes a evolução do caráter. Caldeadas a índole aventureira do colono e a impulsividade do indígena, tiveram ulteriormente, o cultivo do próprio meio que lhes propiciou, pelo insulamento, a conservação dos atributos e hábitos avoengos (...) e ali estão as suas vestes características, os seus hábitos antigos, o seu estranho aferro às tradições mais remotas, o seu sentimento religioso levado ao fanatismo e o seu exagerado ponto de honra, e o seu folclore belíssimo de rimas de três séculos (...) sobre o local das antigas missões [cidades] ali surgiram, todas de antigas fazendas de gado. 

[81]  FUNDAÇÕES JESUÍTICAS NA BAHIA

atuais povoados sertanejos se formaram de velhas aldeias de índios (...)

e a seu propósito o autor emprega a célebre expressão

Tróia de taipa dos jagunços

em alusão ao Belo Monte de Antônio Conselheiro.

(...) em toda esta superfície de terras, que abusivas concessões de sesmarias subordinaram à posse de uma só família, a de Garcia de Ávila (Casa da Torre) (...)

Canhembora (cãnybora = índio fugido) e quilombolas, negros foragidos nos quilombos 

se mesclavam só ligeiramente.

[82] Ao terminar o século XVIII Lancastre fundou com o indígena catequizado o arraial da Barra, para atenuar as depredações de Acaroazes e Mocoazes. E daquele ponto, à feição da corrente do S. Francisco, sucederam-se os aldeamentos e as missões (...) no trecho dos sertões baianos mais ligados aos demais Estados do norte - em toda a orla do sertão de Canudos - se estabeleceu desde o alvorecer da nossa história um farto povoamento em que sobressaía o aborígene amalgamando-se ao branco e ao negro, sem que estes se avolumassem ao ponto de dirimir a sua influência inegável.[83] As fundações ulteriores à expulsão dos jesuítas calcaram-se no mesmo método. Do final do século XVIII ao nosso, em Pombal, no Cumbe, em Bom Conselho e Monte-Santo etc., perseverantes missionários, de que é modelo belíssimo Apolônio de Todi, continuaram até os nossos dias o apostolado penoso. população indígena, aliada aos raros mocambeiros foragidos, brancos escapos à justiça ou aventureiros audazes, persistiu dominante.   

     CAUSAS FAVORÁVEIS À FORMAÇÃO MESTIÇA DOS SERTÕES DISTINGUINDO-A DOS CRUZAMENTOS NO LITORAL

Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e conservação do autóctone. 

[E Euclides da Cunha] não se prende exclusivamente às [a] causas geofísicas (...), como querem [pretendem] alguns [Entre elas cita]

 as grandes concessões das sesmarias, definidoras da feição mais durável do nosso feudalismo tacanho.

(...) inaugurou, para nós, o primeiro capítulo da Sociologia Econômica:

Os possuidores do solo (...) eram ciosos dos dilatados latifúndios, sem raízes, avassalando a terra. A custo toleravam a intervenção da própria metrópole. A ereção de capelas, ou paróquias, em suas terras fazia-se sempre através de controvérsias com os padres; embora estes, afinal, ganhassem a partida, caíam, de algum modo, sob o domínio dos grandes potentados. Estes dificultavam a entrada de novos povoadores...

Ora, tirante os "dilatados latifúndios" e o de a personagem não ser "sem raízes", porque se trata da vida do coronel Paulo Honório já em pleno século XX este trecho de Os Sertões reproduz-se trinta anos depois em parte em São Bernardo, de Graciliano Ramos. E Assim se desenvolveu aquela sociedade pastoril mesmo depois de Euclides da Cunha, "fora do influxo de outros elementos", divorciada 

inteiramente das gentes do Sul e da colonização do litoral, evolveram, adquirindo uma fisionomia original. Como que se criaram num país diverso.

entre

curibocas e cafusos trigueiros

A par [com] este fato, a ação do governo de Lisboa, através de medida "supletiva" de caráter fiscal destinada a impedir o contrabando de ouro das Gerais em 

[84] carta régia de 1701, combinando severas punições, proibira quaisquer comunicações daquelas partes dos sertões com o sul. Nem relações comerciais, as mais simples trocas de produtos. (...) Esta região ingrata (...) pora-pora-eima [do tupi lugar despovoado], estéril] (...) foi o asilo do tapuia. Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados (...) os indômitos cariris (...) A tapui-retama [região do Tapuia] misteriosa ataviara-se para o estoicismo do missionário. As suas veredas multivias e longas, retratavam a marcha lenta, torturante e dolorosa dos apóstolos. (...) As bandeiras que a alcançavam, decampavam logo (...) buscando outras paragens.

 (...) a terra, que se modelara para as grandes batalhas silenciosas da Fé (...) e deixavam em paz o gentio. Daí (...) predominarem (...) nas denominações geográficas 

limitando-nos

[85] às terras circunjacentes a Canudos (...), "nesse trecho do pátrio território, aliás dos mais ingratos, onde outrora se refugiaram os perseguidos destroços dos Orizes, Procás e Cariris (...) os nomes bárbaros de procedência tapuia (...)"

(...) Bendengó, Tragagó, Chique-Chique, Jequié, Quincuncá, Centocé,  Chorrochó, Massacará, Uauá 

 entre uma vintena que cita a partir de Da Expansão da Língua Tupi e do seu predomínio na Língua Nacional, de Teodoro Sampaio.

     É natural que grandes populações sertanejas, de par com as que se constituíram no médio S. Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas ([afastadas abandonadas), evolvendo em círculo apertado durante três séculos (...), num abandono completo, de todo alheio aos nossos destinos, guardando, intactas, as tradições do passado. De sorte que, hoje, quem atravessa aqueles lugares observa uma uniformidade notável entre os que o povoam (...) o homem do sertão parece feito por um molde único (...) distinto do mestiço proteiforme do litoral (...) e os mesmos caracteres morais traduzindo-se nas mesmas superstições, nos mesmos vícios, nas mesmas virtudes.

[86]   UM PARÊNTESIS IRRITANTE

E O QUE ENTENDERÁ ELE POR "RAÇAS INFERIORES" APÓS CANUDOS, TENDO INCLUSIVE EM CONTA QUE NA PÁGINA SEGUINTE VOLTA A REFERIR-SE AO "BELO AXIOMA DE GUMPLOWICZ", QUE CARACTERIZOU A LUTA PELA VIDA DAS RAÇAS COMO A FORÇA MOTRIZ DA HISTÓRIA?

 

(...) todo esse vigor mental repousa (...) sobre uma moralidade rudimentar em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores. (...) [88] o abandono em que jazeram teve função benéfica. (...) e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. (...) meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu organismo potente (...)  É um retrógrado, não é um degenerado. (...)[89] nossos patrícios retardatários. (...) Reproduzamos intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão - abandonados - há três séculos. 

[90]              III

Tradições : Folclore

O SERTANEJO

 

matuto. Adj. 1. Que vive no mato, na roça. 2. Pertencente ou relativo ao, ou próprio do mato, da roça; caipira. 3. Bras., N. e N.E. Acanhado, tímido, desconfiado. 4. Dado a matutar, cismático, cogitabundo. 5. Fam. Finório, sabido, matreiro. * 6. Bras. V. caipira (1) 7. Bras. Sujeito ignorante e ingênuo.Do mato, da roça. Acanhado, tímido, desconfiado, dado a matutar, cismático, cogitabundo - meditabundo. Finório, sabido, matreiro \  ignorante e ingênuo.Poucos termos são tão euclidianos enquanto de significados afinal tão desconexos ou paradoxais. Oxímoro por si mesmo, substantivo próprio e antonomástico.

 

O sertanejo é antes de tudo um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.      A sua aparência, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. (...) 

     É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasimodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo,

Aparência, andar, postura (abatida...) a pé, a cavalo, gestos, fala - de todos os ângulos e modos o descreve o prosador:

(...) - cai logo - cai é o termo - de cócoras (...) atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares 

como um ab origene

     É o homem permanentemente fatigado.(...) na preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude (...) (...) intercedência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas  

(...) na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência

 

     Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

     Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. 

transfigura-se da

figura vulgar do tabaréo canhestro 

em

um titã acobreado e potente (...)  atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas. (...) 

realiza a criação bizarra de um centauro bronco 

entre os

[92] espinhos dilaceradores das caatingas. Não o entristecem as cenas periódicas de devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado, exaurido pela adustão dos sóis bravios do Equador. Não tem, no meio das horas tranquilas de felicidade, a preocupação do futuro, que é sempre uma ameaça, tornando aquela instável e fugitiva.

[93]   O VAQUEIRO

(...) Fez-se homem quase sem ter sido criança.     O seu aspecto recorda, vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo exausto da refrega. As vestes são uma armadura. Envolto no gibão de couro curtido, de bode ou de vaqueta, apertado no colete também de couro; calçando as perneiras, de couro curtido ainda, muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas, articuladas em joelheiras de sola; e resguardados os pés e as mãos pelas luvas e guarda-pés de pele de veado - é como a forma grosseira de um campeador medieval desgarrado em nosso tempo.      Esta armadura, porém, de um vermelho-pardo, como se fosse de bronze flexível, não tem cintilações, não rebrilha ferida pelo sol. É fosca e poenta. Envolve o combatente de uma batalha sem vitórias.

(...) São acessórios

da montaria

 uma manta de pele de bode, um couro resistente, cobrindo as ancas do animal, peitorais que lhe resguardam o peito, e as joelheiras apresilhadas às juntas.

rompem,

incólumes, as caatingas e os pedregais cortantes [95] Todo o sertanejo é vaqueiro. À parte a agricultura rudimentar pelas beiras do rio, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado

       O JAGUNÇO  [em contraposição com  O GAÚCHO]

Procura o adversário com o propósito firme de o destruir, seja como for.      Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos, sem expansões entusiásticas. 

     O jagunço, não. Recua. Mas no recuar é mais temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O adversário tem, daquela hora em diante, visando-o pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível, oculto no sombreado das tocaias...

[96] SERVIDÃO INCONSCIENTE   

     Ao contrário do estancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia usufruem parasitariamente as rendas das suas terras, sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos.     Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam anônimos - nascendo, vivendo e morrendo  na mesma quadra de terra - perdidos nos arrastadores e mocambos'e cuidando a vida inteira, fielmente, de rebanhos que não lhe pertencem. (...)

      Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau a pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; 

Tradições : Folclore - cantos e danças

[99] Aboiar[100] sertões do norte

[101] festas de cavalhadas e mouramas, divertimentos anacrônicos que os povoados sertanejos reproduzem intactos, com os mesmos programas de há três séculos. (...) E entre eles a exótica encamisada (...) cópia das vetustas quadras dos fossados ou arrancadas noturnas, na Península

Ibérica,

contra os castelos árabes, e de todo esquecida na terra onde nasceu 

                                               DANÇAS

[102] agitam-se, então, nos folguedos costumeiros (...) seguem para os sambas e cateretês.  os solteiros, famanazes no desafio* 

* Famanaz do desafio, grande repentista.

sobraçando as machetes, que vibram no choradinho ou baião*  

*danças vulgares do norte

                                              DESAFIOS

(...)

[103] Transpõem o S. Francisco; mergulham nos gerais enormes do ocidente, vastos planaltos indefinidos em que se confundem as bacias daquele e do Tocantins em alagados de onde partem os rios (...) Com os escassos recursos das próprias observações 

dA SECA

e das dos 

[104] seus maiores, em que os ensinamentos práticos se misturam a extravagantes crendices, tem procurado estudar o mal, para o conhecer, suportar e suplantar.

[105]   INSULAMENTO  NO  DESERTO     

[Além] do conflito cultural [cultural lag] (...) entre o litoral e o interior (...) teve intuição não menos aguda de outro fenômeno sociológico [refletido em Canudos]: o isolamento.

O seu primeiro amparo é a fé religiosa. Sobraçando os santos milagreiros, os próprios velhos combalidos e enfermos claudicantes, carregando aos ombros e à cabeça as pedras dos caminhos, mudando os santos de uns para outros lugares. Ecoam largos dias, monótonas, pelos ermos, por onde passam as lentas procissões propiciatórias, as ladainhas tristes. Rebrilham longas noites nas chapadas, pervagantes, as velas dos penitentes... (...)

A FAUNA CRUEL em cenário de inferno em vida de que os crendeiros de Canudos almejam escapar

[106] A natureza não o combate apenas com o deserto. Povoa-a (...) uma fauna cruel. (...) Miríades de morcegos agravam a "magrem", abatendo-se sobre o gado, dizimando-o. Chocalham as cascaveis, inúmeras (...)

cardápio dA Fome

     Talha em pedaços os mandacarus que desalteram, ou as ramas verdoengas dos joazeiros que alimentam os magros bois famintos; derruba os estípites dos ouricuris e rala-os, amassa-os, cozinha-os fazendo um pão sinistro, o bró, que incha os ventres, empazinando o faminto; atesta os giraus de coquilhos; arranca as raízes túmidas dos umbuzeiros, que lhe dessedentam os filhos, reservando para si o fumo adstringente dos cladódios do "chique-chique", que enrouquece ou extingue a voz de quem o bebe      À noite, a sussuarana traiçoeira e ladra, que lhe rouba os bezerros e novilhos, vem beirar a sua rancharia pobre. [107] Restam-lhe, para desalterar e sustentar os filhos, os talhos tenros, os mangarás das bromélias selvagens. Ilude-os com essas iguarias bárbaras. (...) bois mortos há dias e intactos, que os próprios urubus rejeitam, porque não rompem a bicadas as suas peles esturradas;  bois jururus, em roda da clareira de chão enterroado onde foi a aguada predileta; (...)     E nem um cereus avulta mais em torno; foram ruminadas as últimas ramas verdes dos joás... (...)

Passa, certo dia, à sua porta, a primeira turma de "retirantes". (...) É o sertão que se esvazia.

[108]      RELIGIÃO MESTIÇA      

Está na fase religiosa de um monoteísmo incompreendido, eivado de misticismo extravagante, em que se rebate o feiticismo do índio e do africano. É o homem primitivo, audacioso e forte, mas ao mesmo tempo crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições mais absurdas. (...) as benzeduras cabalísticas para curar os animais, para amassar e vender sezões; todas as visualidades, todas as aparições fantásticas, todas as profecias esdrúxulas de messias insanos; e as romarias piedosas; (...) todas as manifestações complexas de religiosidade indefinidas são explicáveis.

FATORES HISTÓRICOS   DA RELIGIÃO MESTIÇA      

Ali estão, francos, o antropismo do selvagem, o animismo[109] do africano e, o que é mais, o próprio aspecto emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.     Este último é um caso notável de atavismo, na história.      Considerando as agitações religiosas do sertão e os evangelizadores e messias singulares, que, intermitentemente, o atravessam, ascetas mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam, que dominam, que endoidecem - espontaneamente recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a partir do final do século XVI, quando, depois de haver por momentos centralizado a história, o mais interessante dos povos caiu, de súbito, em decomposição rápida, mal disfarçada pela corte oriental de D. Manuel.     O povoamento do Brasil fez-se intenso com D. João III, precisamente no fastígio de completo desequilíbrio moral, quando "todos os terrores da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular".     Uma grande herança de abusões extravagantes, extinta na orla marítima pelo influxo modificador de outras crenças e de outras raças, no sertão ficou intacta. (...) Vinham cheias daquele misticismo feroz em que o fervor religioso reverberava à cadência forte das fogueiras inquisitoriais, lavrando intensas na Península. (...) E da mesma gente que após Alcácer Quibir, em plena "cachexia nacional", segundo dizer vigoroso de Oliveira Martins, procurava, ante a ruína iminente, como salvação única, a fórmula superior das esperanças mesiânicas.     De feito, considerando as desordens sertanejas, hoje, e os messias insanos que as provocam, irresistivelmente nos assaltam, empolgantes, as figuras dos profetas peninsulares de outrora.[110] Imóvel o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja, despeada do movimento geral da evolução humana, ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos iluminados que encalçavam, doidos, o Miguelinho ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o símile, o misticismo político do Sebastianismo. Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de modo singularmente impressionador, nos sertões do norte.

CARÁTER VARIÁVEL DA RELIGIOSIDADE SERTANEJA    

     Estes estigmas atávicos tiveram, entre nós, favoráveis, as reações do meio, determinando psicologia especial.É uma variável dependente no jogar dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar Em paragens mais benéficas a necessidade de uma tutela sobrenatural não seria tão imperiosa.

É que, mesmo em períodos normais, a sua religião é indefinida e vária. Da mesma forma que os negros Haussás, adaptando à liturgia todo o ritual iorubano, realizam o fato anômalo, mas vulgar mesmo na capital da Bahia, de seguirem para as solenidades da Igreja por ordem dos feitiços, os sertanejos, herdeiros infelizes de vícios seculares, saem das missas consagradas para ágapes selvagens de candomblés africanos ou poracês do tupi. 

[donde talvez o pasto para evangelizadores puritano-protestantes?]
[a sanha e o argumento]

[111] A "PEDRA BONITA"      

     As agitações sertanejas, do Maranhão à Bahia, não tiveram ainda um historiador.Pageú, em Pernambuco, (...) na serra Talhada, dominando majestosa, toda a região em torno e convergindo em largo anfiteatro acessível apenas por estreita garganta, entre muralhas a pique. No âmbito daquele, como púlpito gigantesco, ergue-se um bloco solitário - a Pedra Bonita.em 1837, teatro de cenas que recordam as sinistras solenidades religiosas dos Achantis. Um mamaluco ou cafuz, um iluminado, ali congregou toda a população dos sítios convizinhos e, engrimpando-se à pedra, anunciava, convicto, o próximo advento do reino encantando do rei D. Sebastião. Quebrada a pedra, a que subira, não a pancadas de marreta, mas pela ação miraculosa do sangue das crianças, esparzido sobre ela [112] em holocausto, o grande rei irromperia envolto de sua guarda fulgurante, castigando, inexorável, a Humanidade ingrata, mas cumulando de riquezas os que houvessem contribuído para o desencanto.  A alma de um matuto é inerte ante as influências que a agitam. De acordo com estas pode ir da extrema brutalidade ao máximo devotamento.

MONTE-SANTO

- do século XVII, quando as descobertas das minas (...) os aventureiros que ao norte investiam com o sertão, a finais do século XVIII:] descobriu-a um missionário - Apolônio de Todi (...) o maior apóstolo do norte (...) achando-a semelhante ao Calvário de Jerusalém", que planejou logo a ereção de uma capela - [e foi ele que a batizou de Monte-Santo[113] a extensa via sacra de três quilômetros de comprimento, em que se erigem, a espaços, vinte e cinco capelas de alvenaria, encerrando paineis dos passos, (...) é um prodígio de engenharia rude e audaciosa 

     À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas: primeiro, os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos em baixo em planícies vastas; depois, as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos os quadrantes; e, atingido o alto, o olhar a cavaleiro das serras - o espaço indefinido, a emoção estranha da altura imensa, realçada pelo aspecto da pequena vila, em baixo,

[114]   AS MISSÕES ATUAIS  

     Infelizmente, o apóstolo não teve continuadores. Salvo raríssimas exceções o missionário moderno é um agente prejudicialíssimo no agravar todos os desequilíbrios do estado emocional dos tabareus. (...) a sua ação (...) destrói, apaga e perverte o que incutiram de bom naqueles espíritos ingênuos os ensinamentos dos primeiros evangelizadores (...) não aconselha e consola, aterra e amaldiçoa; não ora, esbraveja. (...) uma emboscada armada à credulidade incondicional dos que o escutam. (...) não alevanta a imagem arrebatadora dos céus; descreve o inferno truculento e flanívulo, numa algaravia de frases rebarbativas a que completam gestos de maluco e esgares de truão.     É ridículo e medonho. Tem o privilégio estranho das bufonerias melodramáticas. As parvoíces saem-lhe da boca trágicas.     Não traça ante os matutos simples a feição honesta e superior da vida - não a conhece; mas brama em todos os tons contra o pecado; esboça grosseiros quadros de torturas; e espalha sobre o auditório fulminado avalanches de penitências, extravagando largo tempo, em palavrear interminável, fungando as pitadas habituais e engendrando catástrofes, abrindo alternativamente a caixa de rapé e a boceta de Pandora...     E alucina o sertanejo crédulo; alucina-o, deprime-o, perverte-o.

OS "SERENOS"  

Deus o dissera - em mau português, em mau italiano, em mau latim - estava farto dos desmandos da Terra.  (...) - Pedra Bonita: o Reino Encantado, Araripe Júnior.

[116] ANTÔNIO CONSELHEIRO, DOCUMENTO VIVO DO ATAVISMO   

É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem num anticlinal extraordinária - Antônio Conselheiro.o historiador só pode avaliar a altitude daquele homem, que por si nada valeu, considerando a psicologia da sociedade que o criou. Isolado, ele se perde na turba dos nevróticos vulgares. Pode ser incluído numa modalidade qualquer de psicose progressiva. Mas posto em função do meio, assombra. É uma diatese, e é uma síntese. (...)     Todas as crenças ingênuas, do feiticismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela receptividade mórbida do espírito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante.     É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas; a vida resumida do homem é um capítulo da vida de sua sociedade...     Considerando, em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendido. A multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por iso, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos,nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranquilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo. (...)

Em seu desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento raro de atavismo.

     UM GNÓSTICO BRONCO  

Os traços mais típicos do seu misticismo bronco (...) vimo-los há pouco, de relance, em período angustioso da vida portuguesa.

[118] UM GRANDE HOMEM PELO AVESSO

[o] meio em que agiu (...) fortaleceu-o. Era o profeta, o emissário das alturas (...) arrastando a carcaça claudicante (...) mas de algum modo lúcido em todos os atos, (...) 

[119] Parou aí indefinidamente, nas fronteiras oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se confundem facínoras e heróis, reformadores brilhantes e aleijões tacanhos e se acotovelam gênios e degenerados. Não a transpôs. Recalcado pela disciplina rigorosa de uma sociedade culta, a sua nevrose explodiria na revolta, o seu misticismo comprimido esmagaria a razão. 

   REPRESENTANTE NATURAL DO MEIO EM QUE NASCEU 

(...)

O fator sociológico, que cultivara a psicose mística do indivíduo, limitou-a sem comprimir, numa harmonia salvadora.

(...)

ANTECEDENTES DA FAMÍLIA: OS MACIÉIS

nos sertões entre Quixeramobim e Tamboril Maciéis X Araújos [citação:] "vieram a fazer parte dos grandes fastos criminais do ceará, em uma guerra de família. (...) dois homens desiguais na fortuna e posição social" (...) são um episódio apenas entre as razias, quase permanentes da vida turbulenta dos sertões. (...) que ressaltam, evidentes, a prepotência sem freios dos mandões de aldeia e a exploração pecaminosa por eles exercida sobre a bravura instintiva do sertanejo.

[120] LUTAS ENTRE MACIÉIS  E ARAÚJOS  

Surgiu de (...) pequenos roubos cometidos pelos Maciéis (...) 

Araújos:

Criadores opulentos, senhores de baraço e cutelo, vezados a fazer justiça por si mesmos, (...) chamaram a postos a guarda pretoriana dos capangas. (...) 1833 (...) e um cangaceiro terrível, Vicente Lopes de Aracabiassu

morre ali um avô do Conselheiro

[121] numa choupana abandonada, coberta de ramos de oiticica

[123]  UMA VIDA BEM AUSPICIADA      

Conselheiro: Antônio Vicente Mendes Maciel

[124] um enlace que lhe foi nefasto

 PRIMEIROS REVESES      

1859: Sobral, caixeiro, em Ipú escrivão de paz, solicitador de requerente no forum, depois em Campo Grande A mulher foi a sobrecarga adicionada à tara hereditária (...) Ia-se-lhe (...) na desarmonia do lar, a antiga serenidade

[125] A QUEDA

Foge-lhe a mulher em Ipú, raptada por um policial. (...) Fulminado pela vergonha (...) procura o recesso dos sertões, onde não lhe sabiam o nome: o abrigo da absoluta obscuridade. (...) para o sul do Ceará [mais] para o sul, à toa, na direção do Crato. E desaparece...

     Passaram-se dez anos

 COMO SE FAZ UM MONSTRO

E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos compridos até os ombros (...) 

[descrição on-line  em O triste e belo fim de Joana Imaginária e Antônio Conselheiro]

 (...) Um velho caboclo, preso em Canudos nos últimos dias de campanha, disse-me (...) sem precisar datas (...). Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. (...)  aquele velho singular, [126] de pouco mais de trinta anos, (...) No seio de uma sociedade primitiva que pelas suas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres (...) 

Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os céus.

  PEREGRINAÇÕES E MARTÍRIOS 

Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe (...) Itabaiana, 1874

{127] 

[como se vestia, o que levava]

(...) nos sertões, ao norte da Bahia. Ia-lhe custando o prestígio. (...) Encalçavam-no na rota desnorteada os primeiros fiéis. (...) no geral, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, farândula de vencidos da vida, vezada à mândria e à rapina. (...) um oratório tosco, de cedro, encerrando a imagem de Cristo. (...) Entravam com ele, triunfalmente erguido, pelos vilarejos e povoados, num coro de ladaínhas. Assim se apresentou o Conselheiro, em 1876, na vila de Itapicurú de Cima. Já tinha grande renome. 

[citação de ANUÁRIO Folhinha Laemmert, Rio de Janeiro, 1877]

LENDAS 

[é preso]

diziam-no assassino da esposa e da própria mãe. 

[E que lenda!]

[128]O ASCETA 

Sonda, perscruta, esquadrinha. E surpreende a cada curva, com visões dos múltiplos ângulos necessárias para a compreensão do fenômeno

em 1876 a repressão legal o atingiu quando (...) O asceta despontava, inteiriço, da rudeza disciplinar de quinze anos de penitência 

descrição incrível! soberba!! inigualável!! 

do tirocínio brutal da fome, da sede, das fadigas, das angústias recalcadas e das misérias fundas. ( ...) Para quem estava neste tirocínio de amarguras, a ordem de prisão era incidente 

[129] mínimo. (...) levaram-no à capital da Bahia. (...) embarque para o Ceará 

é recambiado

(...) reconhecida a improcedência da denúncia (...) E no mesmo ano reaparece na Bahia (...) estacionando 

1877

de preferência em Chorrochó (...) cuja feira movimentada congrega a maioria dos povoadores daquele trecho do S. Francisco. (...) De 1877 a 1887 erra por aqueles sertões 

[130] (...) Inhambupe, Bom Conselho... (...) 

promovendo benefícios em cemitérios e construção e restaurações de igrejas

(...) A sua entrada nos povoados, seguido pela multidão contrita, em silêncio, alevantando imagens, cruzes e bandeiras do Divino, (...) eclipsando as autoridades locais, o penitente errante e humilde monopolizava o mando (...)

 AS PRÉDICAS 

Uma oratória bárbara e arrepiadora 

[online, trechos em O triste e belo fim de Joana Imaginária e Antônio Conselheiro]

     Era truanesco e era pavoroso. 

     Imagine-se um bufão arrebatado numa visão do Apocalipse..

[trecho online em O triste e belo fim de Joana Imaginária e Antônio Conselheiro]

(...) e o olhar - uma cintilação ofuscante... [131] Ninguém ousava contemplá-lo. (...) em que fazia vitoriosa concorrência aos capuchinhos vagabundos das missões, estadeava o sistema religioso incongruente e vago. (...) adoudados, chefes de seita dos primeiros séculos, nota-se a revivescência integral de suas aberrações extintas. (...) O retrógrado do sertão reproduz o fácies dos místicos do passado.

PRECEITOS DE MONTANHISTA 

Insurge-se contra a Igreja romana, e vibra-lhe objurgatórias, estadeando o mesmo argumento que aquele 

Themison:

ela perdeu a sua glória e obedece a Satanás. (...) 

J O A N A  I M A G I N Á R I A

 Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas (...)

[132] PROFECIAS  

esmaniado apóstolo sertanejo. Como os montanhistas (...) O mesmo milenarismo extravagante, o mesmo pavor do anticristo despontando na derrocada universal da vida. (...) * Os dizeres destas profecias estavam escritos em grande número de pequenos cadernos encontrados em Canudos (...)      "... Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão.     "Em 1897 haverá muito pasto e pouco rastro e um só pastor e um só rebanho.     "Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças.     "Em 1899 ficarão as águas em sangue e o planeta hade aparecer no nascente com o raio de sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu...     "Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fora deste aprisco e é preciso que se reunam porque ha um só pastor e um só rebanho!"      (...) "na hora nona, descançando no monte das Oliveiras um dos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fim desta edade que signaes vós deixaes?     "Elle respondeu: muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrelas. Hade apparecer um Anjo mandado por meu pae terno, pregando sermões pelas portas, fazendo povoações nos desertos, fazendo egrejas e capelinhas e dando seus conselhos..."[133]      E no meio desse extravagar adoudado, rompendo de entre o messianismo da raça levando-o à insurreição contra a forma republicana:     "Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prussia com a Prussia, das ondas do mar D. Sebastião sahirá com todo o seu exército. (...)     "Neste dia quando sahir com o seu exército tira a todos no fio da espada deste papel da Republica.

(...)"

UM HERESIARCA DO SÉCULO II  EM PLENA IDADE MODERNA  

este voltar-se à idade de ouro dos apóstolos e sibilitas (...) reproduz-se em toda a história (...) na mesma rebeldia contra a hierarquia eclesiástica, na mesma exploração do sobrenatural, e no mesmo ansiar pelos céus, a feição primitivamente sonhadora da velha religião, antes que a deformassem os sofistas canonizados dos concílios. 

[134]  TENTATIVAS DE REAÇÃO LEGAL   

penitências (...) de ordinário redundavam em benefício das localidades. Reconstruíam-se templos abatidos; renovavam-se cemitérios em abandono; erigiam-se construções novas e elegantes. Os pedreiros e os carpinteiros trabalhavam de graça; os abastados forneciam, grátis, os materiais indispensáveis; o povo carregava pedras. (...)

Crisópolis, fundada pelo Conselheiro na década de 1880 com o nome de Bom Jesus, para acomodar alguns seguidores, tem em sua praça central uma igreja de sua lavra. Do séquito do Conselheiro faziam parte pelo menos dois mestres-de-obras, Manuel Faustino e Manuel Feitosa. A igreja de Crisópolis, que Euclides da Cunha considerou "belíssima", obedece a desenho de Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa das paredes internas pendura-se um medalhão com a inscrição "Só Deus é grande", o dístico favorito do Conselheiro. A praça que se estende à frente da igreja, remodelada recentemente, chama-se "Antônio Conselheiro". A cotação de Maciel nunca andou tão alta no sertão e fora dele.

     E terminada a empresa o predestinado abalava... para onde? Ao acaso, tomando a primeira vereda, pelos sertões em fora, pelas chapadas multivias, sem olhar sequer para os que o encalçavam. 

     Não o contrariava o antagonismo de um adversário perigoso, o padre (...)

porque o Conselheiro

promovia todos os atos de onde saem os rendimentos do clero (...)

Euclides da Cunha reproduz trechos de Descrições Práticas da Província da Bahia, do Tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar, de que é aqui destacada a descrição:

     "Quando por ali passamos (no Cumbe, em 1887) achava-se na povoação um célebre Conselheiro, sujeito baixo, moreno, acaboclado, de barbas e cabelos pretos e crescidos, vestido de camisolão azul, morando sozinho numa desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluíam os presentes com os quais se alimentava..."(...)

(...) em 1882, o arcebispo da Bahia, procurando pôr termo a essa transigência, senão maldisfarçada proteção, (...) 

dirigiu circular a todos os párocos alertando-os contra aquele que difundia

"(...) doutrinas supersticiosas e uma moral excessivamente rígida com que está perturbando as consciências e enfraquecendo, não pouco, a autoridade dos párocos destes lugares (...)"

(...) Foi inútil a intervenção da Igreja. (...) E como se desejasse reviver sempre a lembrança da primeira perseguição sofrida, volve constantemente a Itapicuru, cuja autoridade policial, por fim, apelou aos para os poderes constituídos, em ofício onde (...) disse

o delegado local ao chefe da polícia da Bahia em novembro de 1886:

(...) "é acompanhado por centenas de pessoas (...)  (...) o fanatismo não tem limites (...) adoram-no como se fosse um Deus vivo.      Nos dias de sermões, terços e ladainhas, o ajuntamento sobe a mil pessoas. Na construção desta capela, cuja féria semanal é de quase cem mil réis, décuplo do que devia ser pago, estão empregados cearenses, aos quais Antônio Conselheiro presta a mais cega proteção, tolerando e dissimulando os atentados que cometem, e esse dinheiro sai dos crédulos e ignorantes (...)"[136] (...) "Faz medo aos transeuntes passar por alto, vendo aqueles malvados munidos de cacetes, facas, facões, clavinotes;"

(...) Nenhuma providência se tomou até meados de 1887, quando a diocese da Bahia 

oficiou

ao presidente da província, pedindo providências que contivessem o "indivíduo Antönio Vicente Mendes Maciel que, pregando doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao Estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer de que era o Espírito Santo, etc." (...) o presidente dirigiu-se ao ministro do império, pedindo um lugar para o tresloucado no hospício de Alienados do Rio. O ministro respondeu (...) contrapondo o notável argumento de não haver, naquele estabelecimento, lugar algum vago (...) 

MAIS LENDAS   

(...) Fundou o arraial de Bom Jesus (...) 

(...) chegou a Monte-Santo e determinou que se fizesse uma procissão pela montanha acima, até a última capela, no alto. 

o narrador diz ter tido descrição de "pessoas que se não haviam deixado fanatizar" que no fim do préstito

[137] Duas lágrimas sangrentas rolam, vagarosamente, no rosto imaculado da Virgem Santíssima...

  (...) Espécie de grande homem pelo avesso, (...) reunia no misticismo doentio os erros e superstições que foram o coeficiente de redução da nossa nacionalidade. (...) Arrastava o povo sertanejo não porque o dominasse, mas porque o dominavam as aberrações daquele. (...) [outra descrição do Conselheiro:] longos cabelos despenteados pelos ombros, longas barbas descendo pelo peito; uma velha figura de peregrino a que não faltavam o crucifixo tradicional, suspenso a um lado entre as camandulas da cintura, e o manto poento e gasto, e a borracha de água, e o bordão comprido...

[138] HÉGIRA PARA O SERTÃO   

     Iam-no tornando mau.      Viu a República com maus olhos e pregou, coerente, a rebeldia contra as novas leis. Assumiu desde 1893 uma feição combatente inteiramente nova.      Originou-a fato de pouca monta.     Decretada a autonomia dos municípios, as Câmaras das localidades do interior da Bahia tinham afixado nas tábuas tradicionais, que substituíam a Imprensa, editais para a cobrança de impostos, etc.     Ao surgir esta novidade Antônio Conselheiro estava em Bom Conselho. Irritou-o a imposição; e planejou revide imediato. Reuniu o povo num dia de feira e, entre gritos sediciosos e estrepitar de foguetes, mandou queimar as tábuas numa fogueira, no largo. Levantou a voz sobre o "auto de fé", que a fraqueza das autoridades não impedira, e pregou abertamente a insurreição contra as leis.      Avaliou, depois, a gravidade do atentado.     Deixou a vila, tomando pela estrada de Monte-Santo, para o norte.

     O acontecimento repercutira na Capital, de onde partiu numerosa força de polícia 

de trinta praças, bem armadas, que em Massetê dá de frente

com os jagunços destemerosos. Foram inteiramente desbaratadas, precipitando-se na fuga, de que fora o primeiro a dar exemplo o próprio comandante.(...)

     Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes. Demandavam o deserto.

[140]    V  CANUDOS: ANTECEDENTES     

Canudos, velha fazenda de gado à beira do Vasa-Barris, era, em 1890, uma tapera de cerca de cinquenta capuabas de pau-a-pique. 

     Já em 1876 (...) lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, "armada até os dentes"e "cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão" (*)

(*) Padre V. F. P., vigário de Itu. Informações manuscritas. (1898), segundo o cronista d'Os Sertões

 de tubos naturalmente fornecidos pelas solanáceas (canudos de pito), vicejantes em grande cópia à beira do rio.(...)

lá chegou 

Antônio Conselheiro

em 1893 (...)     Data daquele ano a sua revivescência e crescimento rápido. O aldeamento efêmero de matutos vadios, centralizado pela igreja velha, que já existia, ia transmudar-se, ampliando-se em pouco tempo, na Tróia de taipa dos jagunços       Era o lugar sagrado cingido de montanhas, onde não penetraria a ação do governo maldito. 

     A sua topografia interessante modelava-o ante a imaginação daquelas gentes simples como o primeiro degrau, amplíssimo e alto, para os céus...

[141] CRESCIMENTO VERTIGINOSO 

Testemunho do Barão de Geremoabo citado pelo narrador da tragédia:

     "Alguns lugares desta comarca e de outras circunvizinhas, e até o Estado de Sergipe, ficaram desabitados, tal a aluvião de famílias que subiam para os Canudos, lugar escolhido por Antônio Conselheiro para o centro de suas operações. Causava dó verem-se expostos à venda nas feiras extraordinária quantidade de gado cavalar, vacum, caprino, etc., além de outros objetos, por preços de nonada, como terrenos, casas, etc. O anelo extremo era vender, apurar algum dinheiro e ir reparti-lo com o Santo Conselheiro".(...)     A edificação rudimentar permitia à multidão sem lares fazer até doze casas por dia - e, à medida que se formava, a tapera colossal, parecia estereografar a feição moral da sociedade ali acoutada. Era a objetivação daquela insânia imensa. (...)                  

  ASPECTO ORIGINAL 

     A urbs monstruosa, de barro, definia bem a civitas sinistra do erro. O povoado novo surgia, dentro de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia velho. (...) tinha o aspecto perfeito de uma cidade cujo solo houvesse sido sacudido e brutalmente dobrado por um terremoto.     Não se distinguiam as ruas. Substituía-as dédalo desesperador de becos estreitíssimos, mal separando o baralhamento caótico dos casebres dos casebres feitos ao acaso, testadas volvidas para todos os pontos (...)     Feitas de pau-a-pique (...) Cobertas de camadas espessas de vinte centímetros, de barro, sobre ramos de icó, lembravam as choupanas dos gauleses de César. Traíam a fase transitória entre a caverna primitiva e a casa. Se as edificações em suas modalidades evolutivas objetivam a personalidade humana, o casebre de teto de argila dos jagunços equiparado ao wigam dos peles-vermelhas sugeria paralelo deplorável. O mesmo desconforto e, sobretudo, a mesma pobreza repugnante, traduzindo de certo modo, mais do que a miséria do homem, a decrepitude da raça.(...)      Por fim as armas - a mesma revivescência de estádios remotos: o facão jacaré, de folha larga e forte; a parnaíba dos cangaceiros, longa como uma espada; o ferrão ou guiada, de três metros de comprido, sem a elegância das lanças, reproduzindo os piques antigos; os cacetes ocos e cheios pela metade de chumbo, pesados como montantes; as bestas e as espingardas.     Entre estas últimas, gradações completas, desde a de cano fino, carregada com escumilha, até a "legítima de Braga", cevada com chumbo grosso, ao trabuco brutal ao modo de uma colubrina [143] portátil, capaz de arremessar calhaus e pontas de chifre, à lazarina ligeira, ou ao bacamarte de boca de sino.(...) Canudos surgia com a feição média entre a de um acampamento de guerreiros e a de um vasto kraal africano. A ausência de ruas, as praças que, à parte a das igrejas, nada mais eram que o fundo comum dos quintais, e os casebres unidos, tornavam-no como vivenda única, amplíssima, estendida pelas colinas (...)     Sem a alvura reveladora das paredes caiadas e telhados encaliçados, a certa distância era invisível. Confundia-se com o próprio chão. Aparecia, de perto, de chofre, constrito numa volta do Vasa-Barris, que o limitava de levante ao sul abarcando-o.(...) O monte da Favela, ao sul, empolava-se mais alto, tendo no sopé, fronteiro à praça, alguns pés de quixabeiras (...)(...) [144] (...) o povoado nascente ao fundo dos sertões do Piauí, Ceará, Pernambuco e Sergipe (...) a terra da promissão - Canaan sagrada, que o Bom-Jesus isolara do resto do Mundo por uma cintura de serras...(...)     Construções ligeiras, distantes do núcleo compacto da casaria, pareciam obedecer ao traçado de uma linha de defesa. (...)     Porque a cidade selvagem, desde o princípio, tinha em torno, acompanhando-a no crescimento rápido, um círculo formidável de trincheiras cavadas em todos os pendores, (...) não se revelavam à distância. (...) Atingia, de repente, a casaria compacta, surpreso, como se caísse numa tocaia.[145] (...)(...) A grei revoltosa - como se vê - não se ilhava em uma eminência, assoberbando os horizontes, a cavaleiro dos assaltos.

REGÍMEN DA URBS

     Lá se firmou logo um regímen modelado pela religiosidade do apóstolo extravagante. (...)(...)     O sertanejo simples transmudava-se (...)

[146] E adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades - jagunço.

O sertanejo simples transmudava-se (...) e adotava, ao cabo, o nome até então consagrado aos turbulentos de feira, aos valentões das refregas eleitorais e saqueadores de cidades - jagunço.

    POPULAÇÃO MULTIFORME

(...) do crente fervoroso abdicando de si todas as comodidades da vida noutras paragens, ao bandido solto que lá chegava de clavinote ao ombro em busca de novo campo de façanhas, (...)

     Aceitando, às cegas, tudo quanto lhe ensinara aquele 

o Conselheiro;

imersa de todo no sonho religioso; vivendo sob a preocupação doentia da outra vida, resumia o mundo na linha das serranias que a cingiam. Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na Terra.     Eram-lhe inúteis. Canudos era o cosmos.(...) Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus ...     Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada de coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua cota parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum. (...) [147] - a virtude era como que o reflexo superior da vaidade. (...)(...)     De todas as páginas de catecismos que soletrara ficara-lhe preceito único:     Bem-aventurados os que sofrem...(...)     Que os homens se desmandassem ou agissem virtuosamente - era questão de somenos. Consentia de boa feição que errassem, mas que todas as impurezas e todas as escorralhas de uma vida infame caíssem, afinal, gota a gota, nas lágrimas vertidas.     Ao saber de caso escandaloso em que a lubricidade de um devasso maculara incauta donzela, teve, certa vez, uma frase ferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depois, sem lhe aquilatarem a torpeza:     "Seguiu o caminho de todas, passou por baixo da árvore do bem e do mal!"

     Não é para admirar que se esboçasse logo, em Canudos, a promiscuidade de um hetairismo infrene. Os filhos espúrios não tinham à fronte o labéu indelével da origem, a situação infamante dos bancklings 

espúrios; adulterados

entre  os germanos. Eram legião.     Porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos. E era lógico. Contados os últimos dias do mundo, fora malbaratá-los, agitando preceitos vãos, quando o cataclisma iminente viria, em breve, apagar para sempre as uniões mais íntimas, dispersar os lares e confundir no mesmo vórtice todas as virtudes e todas as abominações. (...) Pregava então os jejuns prolongados, as agonias da fome, a lenta exaustão da vida. (...)[148] (...)(...) Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis da faca e da garrucha. E estes foram logo os mais quistos daquele homem singular, os seus ajudantes de ordem prediletos, garantindo-lhe a autoridade inviolável. (...)

  POLÍCIA DE BANDIDOS

     Graças a seus braços fortes, Antônio Conselheiro dominava o arraial, corrigindo os que saíam das trilhas demarcadas. Na cadeia ali paradoxalmente instituída - a poeira, no dizer dos jagunços - viam-se, diariamente, presos pelos que haviam cometido a leve falta de alguns homicídios os que haviam perpetrado o crime abominável de faltar às rezas. (...)     O uso da aguardente, por exemplo, era delito sério. (...)     Conta-se que de uma feita alguns tropeiros inexpertos, vindos de Joazeiro, foram ter a Canudos, levando alguns barris do líquido inconcesso. Atraía-os o engodo do lucro inevitável. Levavam a eterna cúmplice das horas ociosas dos matutos. (...) E volveram rápidos, desapontados, tendo às mãos, ao invés do ganho apetecido, o ardor de muitas dúzias de palmatoadas, amargos bolos com que os presenteara aquela gente ingrata.[149] Este caso é expressivo. Sólida experi6encia ensinara ao Conselheiro todos os perigos que adviriam deste hachich nacional. (...) Dali partiam bandos turbulentos arremetendo com os arredores. Toda a sorte de tropelias eram permitidas, desde que aumentassem o patrimônio da grei. Em 1894 (...) tornaram-se alarmantes.

    DEPREDAÇÕES

     Em dilatado raio em torno de Canudos, talavam-se fazendas, saqueavam-se os lugarejos, conquistavam cidades! (...)      Os desordeiros volviam cheio de despojos para o arraial, onde ninguém lhes tomava conta dos desmandos.

(...) (...) Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro.     Canudos fazia-se, então, provisoriamente, o quartel das guardas pretorianas dos Capangas, que de lá partiam, trilhando rumos prefixos, para reforçarem, a pau e a tiro, a soberania popular (...) denominando-as "eleições", eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias da linguagem. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo. A nossa civilização de empréstimo arregimentava, como sempre o fez, o banditismo sertanejo.[150] Santo protetor, ao qual saudavam entoando versos há vinte e tantos anos correntes nos sertões (*).

Do céu veio uma luzQue Jesus Cristo mandou.Santo Antônio AparecidoDos castigos nos livrou!Quem ouvir e não aprenderQuem souber e não ensinarNo dia do Juízo

A sua alma penará! 

   (*) Silvio Romero - A poesia popular no Brasil

E outra ainda: 
O Anti-Cristo nasceu
Para o Brasil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para delle nos livrar

- ABC de Canudos - folclore, autor desconhecido, 

    O TEMPLO

     Começou a erigir-se a igreja nova. (...)(...) cabriolando num delírio de curvas incorretas; rasgada de ogivas horrorosas, (...) feito a testada de um hipogeu desenterrado(...)     Não faltavam braços para a tarefa. Não cessavam reforços e recursos à sociedade acampada no deserto. Metade, por assim dizer, das gentes de Tucano e de Itapicuru para lá abalou. De Alagoinhas, Feira de Sant'Ana e Santa-Luzia, iam toda a sorte [152] de auxílios. De Geremoabo, Bom Conselho e Simão Dias, grandes fornecimentos de gados.

    ESTRADA PARA O CÉU

"Os aliciadores da seita se ocupam em persuadir o povo de que todo aquele que se quiser salvar precisa vir para Canudos, porque nos outros lugares tudo está contaminado e perdido pela República. Ali, porém, nem é preciso trabalhar, é a terra da promissão, onde corre um rio de leite e são de cuscuz de milho as barrancas" (*)

 *Vide relatório de Fr. João Evangelista de Monte-Marciano

[153] AGRUPAMENTOS BIZARROS 

Todas as idades, todos os tipos, todas as cores...     

     Grenhas maltratadas de crioulas retintas; cabelos corredios e duros, de caboclas; trunfas escandalosas de africanas; madeixas castanhas e louras de brancas legítimas, embaralhavam-se, sem uma fita, sem um grampo, sem uma flor, o toucado ou a coifa mais pobre. (...) as linhas dessa beleza imortal que o tipo judaico conserva imutável através dos tempos.  Madonas emparceiradas a fúrias, belos olhos profundos, em cujos negrumes afuzila o desvario mítico (...). 

 Destaca-se, então, mais compacto, o grupo varonil dos homens, mostrando idênticos contrastes; vaqueiros rudes e fortes, trocando, como heróis decaídos, a bela armadura de couro pelo uniforme reles de brim americano; criadores, ricos outrora, felizes pelo abandono das boiadas e dos pousos animados; e, menos numerosos, porém mais em destaque, gandaeiros de todos os matizes, recidivos de todos os delitos. 

 mas a Guarda Católica do Conselheiro vestia-se de azul de brim americano blue-jeans by Levi-Strauss blu indigo di Genova brim Coringa

[154] 

José Venâncio, o terror da Volta-Grande, deslembra-se das dezoito mortes cometidas e do espantalho dos processos à revelia (...) o afoito Pajeú (...) seu ajudante de ordens inseparável, Lalau (...) Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes das entradas de Cocorobó e Uauá (...) Pedrão, cafuz entroncado e bruto (...) (...) Estevão (...) corpo tatuado à bala e à faca (...)     Joaquim Tranca-Pés, outro espécime de guerrilheiro sanhudo (...) o tragicômico Raimundo Boca-torta (...) O ágil Chico Ema (...) Norberto,  predestinado à chefia suprema nos últimos dias de Canudos.     Quinquim de Coiqui (...) Antônio Fogueteiro (...) José Gamo (...) Fabrício de Cocorobó...(...)     O velho Macambira (...) ao lado do filho Joaquim (...)     (...) Vila-Nova ( e na frente de todos, o comandante da praça, o chefe do povo, o astuto João Abade (...)     (...) Antônio Beato (...) José Felix, o Taramela (...) guarda das igrejas, chaveiro e mordomo do Conselheiro (...)

     E um tipo adorável, Manuel Quadrado (...)  Era curandeiro; o médico. (...) vivendo num investigar perene pelas drogarias primitivas das matas.

[153] POR QUE NÃO PREGAR CONTRA A REPÚBLICA? 

     Pregava contra a República; é certo.      O antagonismo era inevitável. (...)     Mas não traduzia o mais pálido intuito político: o jagunço é tão inapto para apreender a forma republicana como a monárquico-constitucional.     Ambas lhe são abstrações inacessíveis. (...) É espontaneamente adversário de ambas. Está na fase evolutiva em que só é conceptível o império de um chefe sacerdotal ou guerreiro.     Insistamos sobre esta verdade: a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido.

a guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos, inopinadamente, ressurrecta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido.   (...) 

e insiste na ideia de civilização de empréstimo

     Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que palejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos, de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimo; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa. Porque não no-los separa um mar, separam-no-los três séculos... (...) deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, [158] não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária.(...)     E Canudos era a Vendéa...(...)Registravam as prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as. põe-se de manifesto quanto eram afinal inócuas, refletindo o turbamento intelectual de um infeliz. Porque o que nelas vibra, em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e incongruente.

(...)

d. Sebastião - O sumiço do corpo do jovem [24 anos] rei na batalha de Alcácer Quibir, no Marrocos, pela conquista cruzadista de terras aos mouros ímpios, daria início ao culto chamado sebastianismo - crença messiânica cujos reflexos se prolongariam até o trágico episódio de Canudos.no Brasil como em Portugal duas décadas depois da implantação da República no Brasil sebastianismo passou a ser associado a saudosismo da monarquia

messianismo. S. m. 1. Rel. Na Bíblia, a expectativa do Messias. 2. Crença na intervenção de ocorrências extraordinárias, ou de individualidades providenciais ou carismáticas, para o surgimento de uma era de plena felicidade espiritual e social. 

O governo demoníaco, porém, desaparecerá em breve:

D. Sebastião já chegouE traz muito regimentoAcabando com o civilE Fazendo o casamento!(...)Visita nos vem fazerNosso rei D. SebastiãoCoitado daquele pobre

Que estiver na lei do cão!

             A lei do cão...

(...)     Eram, realmente, fragílimos, aqueles pobres rebelados...     Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.

     Entretanto, enviamos-lhes (...) esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador - a bala.

[160] UMA MISSÃO ABORTADA 

     Em 1895, (...) 

     Seguido de Frei Caetano de S. Léo e do vigário do Cumbe, Frei João Evangelista de Monte-Marciano passa o rio e abeira-se

de

 (...) "perto de mil homens armados de bacamartes, garrucha, facão, etc."; e tem a impressão de haver caído, de súbito, no meio de um acampamento de beduínos.

[161] RETRATO DO CONSELHEIRO 

umoutra descrição do Conselheiro de Relatório de Frei Monte-Marciano

     "Vestia túnica de azulão, tinha a cabeça descoberta e empunhava um bordão. Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente (...)"(...) velho solitário que orçava nesse tempo os sessenta anos,(...)     ..."aproveitei a ocasião de estarmos quase a sós e disse-lhe que o fim a que eu ia era todo de paz e que assim muito estranhava só enxergar ali homens armados e não podia deixar de condenar que se reunissem em lugar tão pobre tantas famílias entregues à ociosidade, um abandono e misérias tais que diariamente se davam de 8 a 9 óbitos. Por iso, de ordem, e em nome do sr. Arcebispo, ia abrir uma santa missão e aconselhar o povo a dispersar-se e a voltar aos lares e ao trabalho no interesse de cada um e para o bem geral."{162] "(...) a polícia atacou-me e quis matar-me no lugar de Massetê, onde houve mortes de um e outro lado. (...)"[163] cinco mil assistentes     "... carregando bacamartes, garruchas, espingardas, pistolas e facões; de cartucheira à cinta e gorro à cabeça, na atitude de quem vai à guerra."O caso passou em 20 de maio, sétimo da missão. (...) fazendo-lhes sentir que deles não careciam para a salvação eterna.

     Estava extinta a missão. Excetuando "55 casamentos de amancebados, 102 batizados e mais de 400 confissões" o resultado fora nulo, ou antes, negativo.

      MALDIÇÃO SOBRE A JERUSALÉM DE TAIPA 

 

 

             

Corpo exumado de Antônio Conselheiro duas semanas após a morte

                                                                                                                                                Canudos ou Belo Monte em gravura da época 

 

[165]               A LUTA  [167]                          

I

                   PRELIMINARES.............................................................

     Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Brito Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados.

                     .............ANTECEDENTES 

     "A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças, desvairadas, perdidas nos sertões" - uma contextualização a que não se dá a devida importância:

(...)     Opulentada de esplêndidas minas, (...) Procuram-na há duzentos anos irriquietos aventureiros ferroados pelo anelo de espantosas riquezas. (...) fizeram mais do que amaninhar a terra com a ruinaria das catas e o indumento áspero das grupiaras; legaram à prole erradia e, de contágio, aos rudes vaqueiros que os seguiram, a mesma vida desenvolta e inútil livremente expandida na região fecunda, onde por muitos anos foram moeda corrente o ouro em pó e o diamante bruto.(...) conservaram, na ociosidade turbulenta a índole aventureira dos avós, antigos fazedores de desertos. (...) o banditismo franco impôs-se-lhes como derivativo à vida desmandada.     O jagunço, saqueador de cidades, sucedeu ao garimpeiro, saqueador da terra. O mandão político substituiu o capangueiro decaído.[168] (...) os mamalucos bravios e diligentes (...) começo do século XVIII, quando se desvendaram as lavras do Rio das Contas à Jacobina, perigosos agentes que, se lhes não derrancaram o caráter varonil, o nortearam a lamentáveis destinos. (...)     Devassaram-nas até nova barreira, o rio S. Francisco. Transpuseram-na. Na frente, indefinido, se lhes antolhou, cavado nos chapadões, aquele maravilhoso vale do rio das Éguas, tão aurífero que o ouvidor de Jacobina, em carta dirigida à rainha D. Maria II (1794), afirmava "que as suas minas eram a coisa mais rica de que nunca se descobriu nos domínios de Sua Majestade." (...)(...) os montões de argila revolvida das catas enterroadas; e da envergadura atlética do vaqueiro surgira, destemeroso, o jagunço. (...) Fez-se a metamorfose da situação anterior: de par com a sociedade robusta e tranquila dos campeiros, uma outra caracterizando-se pelo nomadismo desenvolto, pela combatividade irriquieta, e por uma ociosidade singular sulcada de tropelias.     Imaginemos que dentro do arcabouço titânico do vaqueiro estale, de súbito, a vibratilidade incomparável do bandeirante. Teremos o jagunço.(...)[169] (...) E a terra (...) dá-lhe grátis em toda a parte o salitre para a composição da pólvora, enquanto as balas, luxuosos projéteis feitos de chumbo e prata, lá estão, incontáveis, na galeria argentífera do Assuruá... (* Vide Descrições Práticas da Província da Bahia pelo tenente-coronel Durval Vieira de Aguiar) (...)(** Caetano Pinto de Miranda Montenegro, vindo em 1804 de Cuiabá ao Recife, andando seiscentas e setenta léguas, passou pela Barra do Rio Grande, e no relatório que enviou ao visconde de Anadia, diz, referindo-se àqueles lugares, que "em nenhuma parte dos domínios portugueses a vida dos homens tem menos segurança" (Liv. 16. Corr. da Corte, 1804-1808)) E, embora em todas as narrativas emocionantes, que a formam, se destaquem rivalidades partidárias e desmandos impunes de uma política intolerável de potentados locais, todas as desordens, surgindo sempre precisamente nos lugares em que se ostentou, outrora, mais ativa a ânsia mineradora, denunciam a gênese remota que esboçamos.(...) Januária (...)  Desta vila para o norte a história das depredações avulta cada vez maior, até Xique-Xique, lendária nas campanhas eleitorais do império.(...)     Um único, talvez, se destaca sob outro aspecto, o de Bom Jesus da Lapa. É a Meca dos sertanejos. A sua conformação original, ostentando-se na serra de grimpas altaneiras, (...)[170] e a lenda emocionante do monge que ali viveu em companhia de uma onça - tornaram-no objetivo predileto de romarias piedosas, convergentes dos mais longínquos lugares, de Sergipe, Piauí e Goiaz.     Ora, entre as dádivas que jazem em considerável cópia no chão e às paredes do estranho templo, (...) um traço sombrio de religiosidade singular: facas e espingardas.(...) entrega ao Bom Jesus o trabuco famoso, tendo na coronha alguns talhos de canivete lembrando o número de mortes cometidas. (...)(...) Xique-Xique, onde durante decênios se degladiaram liberais e conservadores; Macaubas, Monte-Alegre e outras, e todas as fazendas de seus termos, delatam nas vivendas destruídas ou esburacadas à bala, esse velho regímen de desmandos.     São lugares em que se normalizou a desordem esteiada no banditismo disciplinado.     O conceito é paradoxal, mas exato.(...)[171]      Cerca de dez ou oito léguas de Xique-Xique demora a sua capital, o arraial de Santo Inácio, ereto entre montanhas e inacessível até hoje a todas as diligências policiais. (...) É uma ação diplomática entre potências. A justiça armada parlamenta com os criminosos, balanceia as condições de um e outro partido; discute; evita os ultimatos e acaba ratificando verdadeiros tratados de paz, sancionando a soberania da capangagem impune.(...)     Não surpreende que hajam crescido, avassalando todo o vale do S. Francisco e desbordando para o norte.     Porque o cangaceiro (*)(* Derivado de cangaço, complexo de armas que trazem os malfeitores. "O assassino foi à feira debaixo do seu cangaço, dizem os habitantes do sertão." Franklin Távora, O Cabeleira) da Paraíba e Pernambuco é um produto idêntico com diverso nome. Distingue-o do jagunço, talvez, a nulíssima variante da arma predileta, a parnaíba de lâmina rígida e longa suplanta a fama tradicional do clavinote de boca de sino. As duas sociedades irmãs tiveram no entretanto longo afastamento que as isolou uma da outra. Os cangaceiros nas incursões para o sul, e os jagunços nas incursões para o norte, defrontavam-se, sem se unirem, separados pelo valado em declive de Paulo Afonso.     A insurreição da comarca de Monte-Santo ia ligá-las.

     A campanha de Canudos despontou da convergência espontânea de todas estas forças, desvairadas, perdidas nos sertões.

os "canudólogos" dão pouca ou nenhuma importância aos antecedentes e coincidentes regionais-locais devidamente contextualizados e esmiuçados por Euclides da Cunha neste intróito a A LUTA.Quase ao mesmo tempo menosprezam o enquadramento histórico que faz do fenômeno de Canudos de que emerge uma realidade para a qual o Brasil esteve alheio até pelo menos o fim da ditadura militar 1964-1985, a de um país cuja história não é a de "três raças muito tristes"e "ordeiras" mas que também "pega, mata e come" e se sublevam contra toda a sorte de escravidão. E pois que Sem o entendimento do meio seria difícil explicar a sublevação antirrepublicana do Conselheiro ou o sentido social de Canudos, cujos antecedentes históricos, remontados às mesmas causas, se desenvolveram, no século XIX, [por exemplo], nas guerras civis da época da Regência: Cabanagem, no Amazonas e Pará; Balaiada, no Maranhão; Sabinada, Bahia; Revolta Praieira, Pernambuco e, em outra dimensão, no episódio dos fanáticos da Pedra Bonita, em Pernambuco, sacrificando crianças e mulheres em ritos idólatras, ou em outras históricas "guerras sertanejas" de cariz diverso, como as da expulsão dos holandeses e a do quilombo de Zumbi, a que alude para ilustrar questões de estratégia militar que levaram ao prolongamento da guerra do sertão baiano

ANTECEDENTES, COINCIDENTES, CONTEXTO E ESMIUÇAMENTO DO PANORAMA NACIONAL QUANDO DA ECLOSÃO DE CANUDOS DEVEM TAMBÉM ESTAR PRESENTES 

1894 - passagem do poder de Floriano para Prudente de Morais. Começava o longo reinado das oligarquias que fez da República Velha um regime de que não podemos nos orgulhar. Moreira César, o carniceiro dos monarquistas do sul do país, era outro ícone florianista - e simbolizou (...) tudo o que podia haver de cruel e insanoO governo do marechal Floriano Peixoto, considerado o primeiro ditador de fato da história do Brasil, era inconstitucional: o artigo 42 dizia que se o presidente não completasse metade do mandato (Deodoro da Fonseca afastou-se antes desse prazo) novas eleições deveriam ser convocadasTornou-se o Marechal de FerroO principal problema (...) que enfrentou em seus três anos como "vice-presidente em exercício" (assim ele assinava seus atos) foi a Revolução Federalista, que estourou no Rio Grande do Sul em fevereiro de 1893. Floriano tomou o partido de Júlio de Castilhos no confronto com os federalistas, os maragatos, unidos em torno de Gaspar Silveira Martins (prestigiosa figura do Partido Liberal nos tempos do império). Em fins de 1893, os integrantes da Revolta da Armada se uniram aos maragatos (...) e tomaram a cidade de Nossa Senhora do Desterro, capital de Santa Catarina, proclamando-a sede do "governo provisório do Brasil". Em abril de 1894, as forças legalistas retomaram a cidade, deflagrando, sob o comando do coronel Moreira César, furiosa repressão aos rebeldes. Em outubro de 1894, depois de muitos fuzilamentos sumários, veio o castigo final: a troca de seu nome "pelo nome em homenagem ao seu algoz".a Armada não participou do golpe que instaurou a República: a instituição era monarquista.Custódio de Melo derrubara Deodoro da Fonseca na Primeira Revolta da Armada, em 1891. Junto com Gama, liderou a Segunda Revolta, que pretendia depor o marechal Floriano e eclodiu a 6 de setembro de 1893Em 13 de março de 1895, depois de um ano e meio de revolta infrutífera na baía de Guanabara, os rebeldes desistiramjacobinos (republicanos exaltados e radicais, inimigos dos oligarcas) se uniram a Floriano de imediato.A eleição de Prudente de Morais, em 15 de novembro de 1894, representou o retorno da classe latifundiária - que fora o sustentáculo do império - ao comando da nação. Desde o início Prudente seria tido por pusilânime.aliados de Floriano haviam articulado um golpe para impedir sua posseO fato de Prudente decidir anistiar os rebeldes gaúchos - acabando com a guerra civil- foi visto como um ato de fraqueza pelo florianistas, e a campanha de desmoralização do presidente começou.Em novembro de 1896, doente, Prudente teve de se afastar da Presidência - e o vice, Manuel Vitorino Pereira, florianista, assumiu o cargo. Em março de 1897 retornou ao posto. Em novembro, decretou estado de sítio, mandou fechar o Clube Militar, prendeu senadores e deputados (...) e consolidou a República Oligárquica, ou "dos Fazendeiros", que duraria até 1930. o vice Manuel Vitorino Pereira (baiano e primeiro governador do seu Estado depois da república) substituiu todos os ministros trocando aliados de Prudentes de Morais por florianistas convictos.o "ruído exterior" para que escancarou as janelas do Palácio do Catete, que comprou para ser sede do governo, eram os urras a Floriano, que adquiriram um tom verdadeiramente messiânico, após a morte do Marechal de Ferro em junho de 1895. Muitas vezes rezavam em seu túmulo e havia aqueles que distribuíam seu retrato como se fosse um santo. A sombra do marechal nacionalista pairava sobre a República Oligárquica.civis também eram conservadores latifundiários e oligárquicos.jacobinos e florianistas logo começaram a tramar contra a vida de Prudente após seu retorno ao podera 5 de novembro fora ao embarcadouro do Arsenal de Guerra recepcionar o navio que retornava da Bahia com a primeira tropa vitoriosa no combate de Canudos.um soldado, Marcelino Bispo de Melo, se aproximou do presidente e sacou uma garrucha. (...) Mas a arma falhou cinco vezes conseguiu esfaquear o ministro da Guerra, Carlos Bittencourt, que morreu.ficou claro que Marcelino estava ligado ao jornal "O Jacobino"Os jacobinos eram inimigos de morte da república liberal, descentralizada e federalista com que sonhavam os cafeicultores paulistas.A paranoia dos jacobinos: viam em tudo o dedo oculto dos monarquistas 

GUERRAS NO FIM DO MUNDO mESMO,  NOS DOIS SENTIDOS - E EM TODAS AS FRENTES

Esses conflitos (Federalista e Canudos) não tiveram nada em comum a não ser a brutalidade absurda: as batalhas sem prisioneiros, com degola dos vencidosCanudos, por seu turno, foi a guerra mais trágica do Brasil - mais dramática e violenta que a derrocada de Palmares. Só a existência de dois Brasis inteiramente distintos e incompatíveis - o Brasil das elites urbanas e o Brasil dos miseráveis olvidados - pode explicar a "guerra do fim do mundo". (...) Canudos foi exemplar, revelando ao país, ao final do século 19, a trágica dicotomia com que ele haveria de conviver ao longo de todo o século 20.revolta federalista deixou pelo menos dez mil mortos - muitos por degola.Nos três primeiros séculos da História do Brasil o Nordeste era o centro da produção açucareira e a região mais rica e povoada do imenso território. A partir do final do século XIX, com o declínio dos preços do açúcar e do algodão, sua economia estagnou-se e inúmeros negócios foram à falência. (...) a seca - um fenômeno natural que, embora sempre tenha afetado o sertão, foi agravado pelo tipo de ocupação ali predominante, que acentuou a devastação da natureza. A falta de políticas públicas para a região, desde os tempos do Brasil Colônia, só tem aprofundado o problema. (...) no Nordeste os salários são mais baixos que no restante do país, a renda e a riqueza estão concentradas nas mãos de poucos, a subnutrição atinge altos níveis e periodicamente milhares de pessoas deixam a região fugindo das secas.Durante a estiagem de 1877 a 1880 pela primeira vez o governo procurou instituir uma política de salvação para a região. D. Pedro II, encantado com uma visita que fizera ao Egito, mandou importar camelos do Saara e criá-los para salvar o sertão. Os problemas no entanto eram muito mais graves. Um número de sertanejos quase quatro vezes maior do que a população de Fortaleza ocupou a capital cearense, buscando fugir da seca. O resultado disso foram epidemias, fome, saques e crimes.Durante essa seca criou-se o conceito de retirante - o homem que deixa sua terra para escapar dos efeitos da estiagem.Na estiagem seguinte, em 1915, para impedir que os retirantes se dirigissem à capital, o governo cearense criou campos de concentração nos arredores das grandes cidades, nas quais recolhia os flagelados.No território miserável do sertão, Conselheiro encontrara terreno fértil para sua pregação messiânica. A decadência dos engenhos, o fim da escravidão, a seca terrível de 1878 (durante a qual, só no Ceará, cerca de 100 mil pessoas morreram de fome), a limitação do mercado de trabalho provocada pelo fluxo incessante de imigrantes europeus; tudo conduzira ao caos social no Nordeste.

[172]                        II

        CAUSAS PRÓXIMAS DA LUTA 

     

O principal representante da justiça de Joazeiro (Coronel João Evangelista Pereira e Melo) tinha velha dívida a saldar com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz de Bom Conselho fora coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada por adeptos daquele.

    Aproveitou, por isto, a situação, que surgia a talho para a desafronta. Sabia que o adversário revidaria à provocação mais ligeira. De fato, ante a violação do trato aquele retrucou com a ameaça de uma investida sobre a bela povoação do S. Francisco: as madeiras seriam de lá arrebatadas, à força.

era Juiz de Direito da comarca de Bom Conselho, 1894, quando [ela] foi invadida por "conselheiristas" que, contrários ao casamento civil, além de expulsarem as autoridades locais, torturaram o escrivão de casamentos, acusando-o de usurpar as funções do vigário. (...) em 1896, transferido para Juazeiro, toma conhecimento de que Antônio Conselheiro buscaria, à força, um lote de madeira que comprara e pagara (...) [para a] construção da nova igreja de Canudos. Desejoso de vingança pelas humilhações por que passara em Bom Conselho, o juiz, exagerando o perigo da "invasão" (...), solicita através de intensa correspondência providências por parte do governo e do general Solon Ribeiro, comandante do Distrito Militar de Salvador. Este envia então o tenente Pires Ferreira e mais cem praças com a missão de "proteger" Juazeiro, dando origem à primeira expedição militar regular enviada contra Antônio Conselheiro e Canudos.

(....)[173]       Antônio Conselheiro há vinte e dois anos, desde 1874, era famoso em todo o interior do norte e mesmo nas cidades do litoral (...) vinha de uma peregrinação incomparável de um quarto de século, por todos os recantos do sertão, onde deixara como enormes marcos, demarcando-lhe a passagem, as torres de dezenas de igrejas que construíra; fundara o arraial de Bom Jesus, quase uma cidade; de Chorrochó à Vila do Conde, de Itapicuru a Geremoabo, não havia uma só vila, ou lugarejo obscuro, em que não contasse adeptos fervorosos. e não lhe devesse a reconstrução de um cemitério, a posse de um templo ou a dádiva providencial de um açude; (...) destroçara completamente, em 1893, forte diligência policial, em Massetê, e fizera voltar outra, de oitenta praças de linha, que seguira até Serrinha; em 1894, fora, no Congresso Estadual da Bahia, assunto de calorosa discussão (...) 

[174] sabia-se que ele imperava sobre extensa zona dificultando o acesso à cidadela em que se entocara,

       "E as linhas do telégrafo transmitiam ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja..."

(...)[175] Já chegara a Canudos a nova da investida (*) (*Pormenor curioso: a força seguiu a 12, ao anoitecer, para não seguir a 13, dia aziago. E ia combater o fanatismo...)(...)É o trecho da Bahia mais assolado pelas secas.

                                UAUÁ 

[177] a população, quase na totalidade, fugira. (...)     Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os demais lugares convizinhos, estava sob o domínio de Canudos. (...)

                    PRIMEIRO COMBATE

(...)     Na madrugada de 21 desenhou-se no extremo da várzea o agrupamento de jagunços... (...)[178] Guiavam-nos símbolos de paz: a bandeira do Divino e, ladeando-a, nos braços fortes de um crente possante, grande cruz de madeira, alta como um cruzeiro. Os combatentes armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus, perdiam-se no grosso dos fiéis que alteavam, inermes, vultos e imagens dos santos prediletos, e palmas ressequidas retiradas dos altares. (...) Seguiam para a batalha rezando, cantando - como se procurassem decisiva prova às suas almas religiosas.     Eram muitos. Três mil homens, disseram depois informantes exagerados, triplicando talvez o número. (...)(...)E o recontro empenhou-se brutalmente, braço a braço, adversários enleados entre disparos de garruchas e revólveres, pancadas de cacetes e coronhas, embates de facões e sabres -(...)  [179]       O conflito continuou, deste modo, ferozmente, cerca de quatro horas, (...)[180] Entre estes, dezenas de sertanejos - cento e cinquenta - diz a parte oficial do combate, número desconforme ante as dez mortes (...) e seis feridos da expedição. Apesar disto, o comandante, com setenta homens válidos, renunciou prosseguir nas empresas. (...) Apavorava-o a própria vitória, se tal nome cabe ao sucedido, (...)

    Foi como uma fuga.

outra versão resumida  Correram rumores em Juazeiro, à margem do Rio São Francisco, a noroeste de Canudos, de que por causa do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos - em novembro de 1896 - uma expedição punitiva. Tinha 104 homens e era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares. Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo - uma fila de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma grande cruz e uma bandeira do Divino. Era um batalhão do Conselheiro, armado com o que foi possível juntar na circunstância - velhos trabucos, facões, paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com muito mais perdas que o inimigo, puseram-se a correr. Terminava aquela que passou para a História como a primeira expediçãooutra versão em flash de twitter: 

Em Uauá, os [cem] soldados foram surpreendidos por 300 sertanejos armados de paus e pedras. Apesar de 150 homens do Conselheiro terem sido mortos, contra apenas dez mortos e 16 soldados feridos, as forças legais fugiram

(...) E as linhas do telégrafo transmitiam ao país inteiro o prelúdio da guerra sertaneja...

[181]                            III

       PREPARATIVOS DA REAÇÃO 

(...) a segunda expedição organizou-se sem um plano firme, sem responsabilidades definidas, (...) Compôs-se a princípio de 100 praças e 8 oficiais de linha, e 100 praças e 3 oficiais da força estadual.(...)permanecia expectante, em Queimadas, o chefe da nova expedição, à frente de 243 praças de pré.[182] dali abalou somente em dezembro, para Monte-Santo, ao tempo que lhe era mandado da Bahia novo reforço, de 100 praças.     Esta avançada já ia adstrita a um plano de campanha.(...) estabelecer antes de tudo um cerco à distância; bater os insurrectos parceladamente e apertá-los, ao cabo, em movimentos envolventes (...)por outro lado, por mais original que seja o método combatente dos matutos - guerrilheiros impalpáveis dentro da tática estonteadora da fuga! - rola todo neste círculo único. Não se desenvolve num plano qualquer permitindo dar aos grupos dispersos o centro unificador de um objetivo prefixado. Atacá-los, atraindo-os para diferentes pontos, é vencê-los. Foi o que perceberam, desde muito, os nossos patrícios de há cem anos. Práticos nas vicissitudes das lutas sertanejas - visando a formação sistemática de "tropas irregulares", que, sem o embaraço das unidades táticas inalteráveis, e sem formaturas, agissem folgadamente no trançado das matas e sobre as asperezas do solo, auxiliando, reforçando e esclarecendo a ação das tropas regulares.     Daí as façanhas que crivam a nossa história nos XVII e XVIII séculos; o sem-conto de revoltas debeladas ou quilombos dissolvidos por aqueles minúsculos exércitos de capitães do mato, através de batalhas ferocíssimas e sem nome. Imitando o próprio sistema do africano e do índio, os sertanistas dominavam-nos graças à mesma norma que se traduz por uma fórmula paradoxal - dividir para fortalecer.     Devíamos, num transe igual, adotá-la. Era sem dúvida um recuo inevitável à guerra primitiva. Mas quando não o impusesse o jagunço solerte e bravo, impunha-o a natureza excepcional que o defendia. 

[183]        A GUERRA DAS CAATINGAS

(...)(...) as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta. Entram também de certo modo na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multivias, para o matuto que ali nasceu o cresceu.     E o matuto faz-se o guerrilheiro-thug, intangível...     As caatingas não o escondem, apenas, amparam-no.[184] e o comandante resolve carregar contra o desconhecido. Carrega-se contra os duendes. (...)    As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas. Enredam-se no cipoal que as agrilhoa (...)num labirinto de galhos. (...)[185] (...)No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas esparsas, cinco, dez, vinte homens no máximo. (...)(...) o império angustioso do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos. (...)[186] 

(...)

A FLORA AMIGA

     O umbú desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas; o araticum, o ouricuri virente, a marí elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarús talhados a facão, ou as folhas dos juás - sustentam-lhe o cavalo; os últimos lhe dão ainda a cobertura para o rancho provisório; os caruás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes... E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar afogado no {187] escuro apenas lobriga fosforescência azulada das cunanans dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as sussuaranas deslumbradas, um archote fulgurante...     A natureza toda protege o sertanejo. (...)

[188]                           IV

            AUTONOMIA DUVIDOSA 

insiste

(...) Mau grado os defeitos do confronto, Canudos era a nossa Vendéa (...) permitiam que se lembrasse aquele lendário recanto da Bretanha, onde uma revolta, depois de fazer recuar exércitos destinados a um passeio militar por toda a Europa, só cedeu ante as divisões volantes de um general sem fama (...)(...)     O governo baiano afirmou "serem mais que suficientes as medidas tomadas para debelar e extinguir o grupo de fanáticos e não haver necessidade de reforçar a força federal para tal diligência, pois as medidas tomadas pelo comandante do distrito significavam mais prevenção que receio"; e aditava-se "não ser tão numeroso o grupo de Antônio Conselheiro, indo pouco além de quinhentos homens, etc."(...)[189] O governo estadual, porém, (...) levantando o espantalho de uma ameaça à soberania do Estado (...)(...) ninguém se iludia ante a situação sertaneja. Acima do desequilibrado que a dirigia estava toda uma sociedade de retardatários. O ambiente moral dos sertões favorecia o contágio (...)(...) bandeiras vindas de todos os pontos, do extremo norte e do extremo sul, do Rio Grande ao Amazonas (...)(...) foi removido da Bahia o chefe da força militar, (...) depois disto a coluna do major Febrônio - até então oscilante entre Monte-Santo e Queimadas e objetivando nas contramarchas as vacilações do governo - seguiu reforçada pela tropa policial e adstrita às deliberações do governo baiano.(...) Num raio de três léguas em roda de Canudos, fizera-se o deserto. (...) Estava pronto o cenário para um emocionante drama da nossa história. 

191]        TRAVESSIA DO CAMBAIO[193]                         I

                   MONTE-SANTO 

     No dia 29 de dezembro entraram os expedicionários em Monte-Santo.     O povoado de Fr. Apolônio de Todi (...) base das operações de todas as arremetidas contra Canudos.(...)a gênesis tocante(...) o estóico Anchieta do norte aquilatara bem as condições privilegiadas do local.     (...) a vila - ereta no sopé da serrania de onde promana a única fonte perene da redondeza - contrasta, insulada, com a esterilidade ambiente. (...) A sublevação das rochas (...) torna-se condensador admirável dos escassos vapores que ainda os impregnam (...) Depõem-se, então, aqueles em chuvas quase regulares, originando regime cilmatológico mais suportável, a dois passos dos sertões estéreis para onde rolam (...)[194] centralizou, de algum modo, a primeira agitação feita em torno das lendárias "Minas de Prata"[195] a mais bela de suas ruas - a via-sacra dos sertões, macadamizada de quartzito alvíssimo, por onde têm passado multidões sem conta em um século de romarias. A religiosidade ingênua dos matutos ali talhou, em milhares de degraus, coleante, em caracol pelas ladeiras sucessivas, aquela vereda branca de sílica, longa de mais de dois quilômetros, como se construísse uma escada para os céus...(...)[195] E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra uma enorme escadaria em ruínas. (...)[196] - como um parêntesis naquele sertão aspérrimo -  

[196]         TRIUNFOS ANTECIPADOS

     Ali acantonaram as 543 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos - toda a primeira expedição regular contra Canudos. Era uma massa heterogênea de três cascos de batalhões (...) tendo, adidas, duzentas e tantas praças da polícia e pequena divisão de artilharia, dois canhões Krupp 7 1/2 e duas metralhadoras Nordenfeldt.     Menos de uma brigada, pouco mais de um batalhão completo.(...)]197] (...) Os rudes impenitentes, os criminosos retardatários, que tinham a gravíssima culpa de um apego estúpido às mais antigas tradições, requeriam corretivo enérgico. Era preciso que saíssem afinal da barbárie em que escandalizavam o nosso tempo, e entrassem repentinamente pela civilização a dentro, a pranchadas.(...)     Paravam nos passos, (...)     No "alto da Santa Cruz", (...)     Ali estava - defronte - o sertão...(...)

[198]                         II

           INCOMPREENSÃO DA CAMPANHA 

(...)       Ora, nos sucessos guerreiros entra, como elemento paradoxal embora, a preocupação da derrota. (...)[199] depois de longa inatividade em Monte-Santo, a expedição partiu ainda menos aparelhada do que quando ali chegara quinze dias antes, (...) reeditando o caso de Uauá, o alcance do arraial preestabelecia a preliminar de um combate em caminho. (...) A expedição endireitava para o objetivo da luta como se voltasse de uma campanha. Abandonando novamente parte das munições, seguia como se (...) ela fosse abastecer-se - em Canudos... (...)(...) a tais deslizes se aditaram outros, denunciando a mais incompleta ignorância da guerra.[200] (...) tínhamos a esgrima perigosa com os guerrilheiros esquivos cuja força estava na própria fraqueza, na fuga sistemática, num vai e vem doudejante de arrancadas e recuos, dispersos, escapantes no seio da natureza protetora. (...)

[202]        EM MARCHA PARA CANUDOS

     Foi nestas condições desfavoráveis que partiram a 12 de janeiro de 1897.(...)[203]     Acabaram-se as munições de boca. Foram abatidos os dois últimos bois para quinhentos e tantos combatentes. (...)

[204]                          III

                 O CAMBAIO

[205] 

          [202]  BALUARTES SINE CALCII LINIMENTI

[206] (...)

     De entre as frinchas, de entre os esconderijos, de entre as moitas esparsas, aprumados no alto dos muramentos rudes, ou em despenhos ao viés das vertentes - apareceram os jagunços, num repentino deflagrar de tiros.(...)

[207]                  JOÃO GRANDE

[208] (...)    Estava conquistada a montanha após três horas de conflito.(...)     Realizara-se a travessia: e, tirante o dispêndio de munições, eram poucas as perdas - quatro mortos e vinte e tantos feridos. Em troca os sertanejos deixavam cento e quinze cadáveres, contados rigorosamente.

[210]                           IV

NOS "TABULEIRINHOS" 
SEGUNDO COMBATE

(...)Um "shrapnell" emperrara na alma de um dos canhões resistindo a todos os esforços para a extração. Adotou-se então, o melhor dos alvitres: disparar o Krupp na direção provável de Canudos.     Seria uma aldrabada batendo às portas do arraial, anunciando estrepitosamente o visitante importuno e perigoso.     De fato, o tiro partiu... E a tropa foi salteada por toda a banda! Reeditou-se o episódio de Uauá. Abandonando as espingardas imperfeitas pelos varapaus, pelos fueiros dos carros, pelas foices, pelas forquilhas, pelas aquilhadas longas e pelos facões de folha larga, os sertanejos (...)(...)[211] o comandante expedicionário, que tudo indica ter sido o melhor soldado da própria expedição que dirigiu, (...)(...)os projéteis grosseiros - pontas de chifre, seixos rolados, e pontas de pregos - de sua velha ferramenta da morte[212] (...)Mas nesse pelejar em marcha de três quilômetros, as munições, prodigamente gastas na façanha prejudicial do Cambaio, (...) ante a sobrecarga muscular dos soldados famintos e combalidos (...)(...) restavam apenas vinte tiros de artilharia.     A retirada impôs-se urgente e inevitável.(...)A tropa perdera apenas quatro homens excluídos trinta e tantos feridos, ao passo que os contrários, desconhecido o número dos últimos, foram dizimados.

     Um dos médicos contou rapidamente mais de trezentos cadáveres. Tingira-se a água impura da Lagoa do Cipó, (...) como uma nódoa amplíssima de sangue.

     [213]    A LEGIO FULMINATA DE JOÃO ABADE

(...) reuniu o resto dos homens válidos, cerca de seiscentos,

(...)

Quebrou-se o encanto do Conselheiro. Tonto de pavor, o povo ingênuo perdeu, em momentos, as crenças que o haviam empolgado. Bandos de fugitivos, sobraçando trouxas estabanadamente feitas, (...)

       [214]    NOVO MILAGRE DO CONSELHEIRO

(...)a força recuava.[215]                            

IV

                        RETIRADA

(...)retirada do major Febrônio (...) é um dos episódios mais emocionantes de nossa história militar. Os soldados batiam-se ia para dois dias, (...) na frente desta multidão revolta, se estendia uma estrada de cem quilômetros, em sertão maninho, inçado de tocaias...(...)     Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolchetavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. (...) um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo, (...)[216] e a montanha era um arsenal. (...) blocos esparsos ou arrumados em pilhas vacilantes (...) transmudava a espingarda imprestável em alavanca; (...)[217) Bendengó de Baixo

varridos à metralha deixando vinte mortos 

entre os jagunços.

[218] entravam pelo arraial lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis bravios, fugindo à desolação e à miséria.

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito, quintuplicou de tamanho - 550 homens - e pela primeira vez usou Monte Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, o que se repetiria nas expedições seguintes. Monte Santo, 100 quilômetros a sul de Canudos,  (...) O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Serra de Piquaraçá (...) Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para que ela também fosse desarticulada e posta para correr, depois de ser surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial inssurreto.

.outro relato:

antes do fim de novembro, 543 soldados, 14 oficiais, duas metralhadoras e dois canhões foram enviados numa expedição punitiva. No dia 20 de janeiro, novamente desmoralizados, famintos e de fardas rasgadas, essa segunda tropa batia em retirada, sob a vaia e o fogo cerrado dos sertanejos.

[221]       EXPEDIÇÃO MOREIRA CÉSAR[223]        
........................... I
    
MOREIRA CÉSAR E O MEIO QUE O CELEBRIZOU

     O novo insucesso das armas legais, imprevisto para toda a gente, coincidia com uma fase crítica da nossa história.(...) a sociedade brasileira, em 1897, tinha alto grau de receptividade para a intrusão de todos os elementos revolucionários e dispersivos. (...) alastrar sobre o país, que se amolentara no marasmo monárquico, intenso espírito de desordem, (...)parecia espelhar incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida.

[224]             FLORIANO PEIXOTO

nascendo do revide triunfante contra um golpe de Estado violador das garantias constitucionais, criara o processo da suspensão das garantias; abraçado tenazmente à Constituição, afogava-a (...) Apelando, na apertura das crises que o assoberbavam, incondicionalmente, para todos os recursos, para todos os meios e para todos os adeptos, surgissem de onde surgissem, (...) entre as paixões e interesses de um partido que, salvante bem raras exceções, congregava todos os medíocres ambiciosos que, por instinto natural de defesa, evitam as imposições severas a um meio social mais culto. (...)(...)[225] um coronel de infantaria, Antônio Moreira César, era quem parecia haver herdado a tenacidade do grande debelador de revoltas.

(...)

[Prudente de Morais] Em novembro de 1896 caiu doente e abandonou o Itamaraty, sede do governo (...) O vice-presidente, Manoel Vitorino Pereira, baiano, tomou seu lugar, transferiu-se para o Palácio do Catete, mais luxuoso, nomeou um novo ministério, aderiu às posições jacobinas e resolveu mandar uma tropa do Exército para combater uma comunidade de sertanejos miseráveis e fanáticos na comarca de Monte Santo, [depois do destroçamento da expedição Moreira César] Prudente de Morais entrou no Catete, pendurou o chapéu num cabide, identificou sua mesa de trabalho, sentou-se e, seco, declarou (...): "Voltei".

nomeou ministro da Guerra o marechal Carlos Machado Bittencourt, um paulista

                    MOREIRA CÉSAR 

(...) onde fora o principal ator no epílogo da campanha federalista do Rio Grande, (...)[226] De figura diminuta -(...)entrechocavam-se, antinômicas,[227] tendências monstruosas e qualidades superiores, umas e outras no máximo grau de intensidade.(...)precisamente na fase crítica em que ele fosse definir-se como herói ou como facínora. (...)temperamento desigual e bizarro de um epilético provado, (...)[228] Um jornalista, ou melhor um alucinado, (...) insultos intoleráveis (...) resolvido por alguns oficiais (...) a justiça fulminante e desesperadora do linchamento.(...) entre os  subalternos encarregados de executar a sentença (...) o capitão Moreira César, ainda moço, à volta dos trinta anos, (...) E foi o mais afoito, o mais impiedoso, o primeiro talvez no esfaquear pelas costas a vítima (...)     O crime acarretou-lhe a transferência para Mato Grosso (...) tornou somente após a proclamação da República.(...)Em 1893, já coronel, porque galgara velozmente três postos em dois anos (...) conflagração que se reanimara no sul e ameaçava os Estados limítrofes. (...)[229]     Os fuzilamentos que ali se fizeram, com triste aparato de imperdoável maldade (...)(...) num navio mercante; (...) com surpresa dos próprios companheiros, prende o comandante. Assaltara-o - sem que para tal houvesse o mínimo pretexto - a suspeita de uma traição, um desvio de rota, (...) aspecto particular da desorganização psíquica que o vitimava.(...) patenteava francas qualidades eminentes e raras de chefe disciplinador e inteligente, contrastando com os paroxismos da exaltação intermitente.(...)     Nomeado para a expedição contra Canudos, estadeou-os numa série de desatinos, culminados afinal por uma catástrofe.(...) o arremesso contra o arraial, de mil e tantos homens exaustos de uma carreira de léguas, (...)(...)[230] (...) Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor multidões tacanhas.

(...)

Ele foi o nosso general Custer. Esfaqueou pelas costas um jornalista que "falou mal" da República. Decepou a cabeça de um soldado que duvidou da coragem do seu regimento. Segundo a história oficial, o homem espancou, torturou, prendeu, arrebentou. (...) Antônio Moreira César (1834-1897), o coronel pindamonhangabense que se tornou uma das mais lendárias e execradas figuras (...) dos campos de batalha nacionais.tombou (segundo consta, por incompetência tática) em batalha e acabou mais cantado em verso e prosa que o próprio Conselheiro. Levou consigo mais de mil soldados e municiou Canudos, deixando caminhões [?!!] e armas para os sertanejos.apenas sobre a maneira como morreu existem dez versões diferentes."Alma proteiforme constrangida em organização fragílima", escreveu Cunha. "Euclides foi engenheiro militar e era desafeto conhecido do coronel Moreira César", sustenta Marcelo Moreira César, engenheiro civil paulistano, sobrinho-neto do coronel que passou anos pesquisando a vida do antepassado. "Ele foi expulso por desagravo ao ministro da Guerra e tomava isso como uma pendenga particular, que expressou em seu livro."Moreira César era o braço direito do marechal Floriano Peixoto. Foi ele o enviado com tropas republicanas a Santa Catarina em 1894 para "pacificar" o Estado, que tinha sido sede de um governo revoltoso. Lá, (...) aplicou pela primeira vez a pena de morte no Brasil, comandnando pessoalmente centenas de fuzilamentos.A ação de Moreira César em Canudos (...) seria uma espécie de "ato exemplar" para justificar um golpe e destituir Prudente de Morais, reassumindo um militar - Moreira César era o mais indicado e provavelmente teria sido o novo presidente, segundo uma tese antiga.O corpo, segundo historiadores, foi queimado debaixo de uma árvore a um quilômetro do arraial de Canudos."Moreira César foi realmente um homem cruel, mas uma expressão do seu tempo e da política de sua época", sustentou o sobrinho-neto...........

Moreira César responsável pelo fuzilamento sumário de 49 rebeldes em Desterro (SC) durante a Revolta da Armada

       PRIMEIRA EXPEDIÇÃO REGULAR 

(...) seguiu a 3 de fevereiro para a Bahia, levando o batalhão que comandava, o 7º de infantaria(231) uma bateria do 2º Regimento de Artilharia (...) e um esquadrão do 9º de cavalaria (...)(...) três outros corpos desfalcados, todos: o 16º  que estava em S. João d'El-Rei (...) com vinte e oito oficiais e duzentas e noventa praças, cerca de cento e quarenta soldados do 33º; o 9º, de infantaria; (...) e pequenos contingentes da força estadual baiana.

(...) Queimadas (...) a 8 de fevereiro (...) - quase mil e trezentos combatentes, fartamente municiados, com quinze milhões de cartuchos e setenta tiros de artilharia.

1330 soldados, vários oficiais, metralhadoras, fuzis, 15 milhões de cartuchos e quatro canhões. 

A tropa partiu de trem de Salvador no dia 3 de fevereiro. No dia 18 já acampava em Monte Santo, a 60 km de Canudos.

     A mobilização fora (...) um prodígio de rapidez. Continuou rápida. (...) "2ª base de operações", Monte-Santo, onde a 20 estava pronta para a investida.(...) Um dia antes a inervação doentia do comandante explodira numa convulsão epileptiforme, em plena estrada, antes do sítio de "Quirinquaquá"(...)

[232]                     CRÍTICA 

[233] 150 quilômetros, um mínimo de vinte e cinco léguas

         CRESCE A POPULAÇÃO DE CANUDOS 

(...)     Canudos aumentara em três semanas de modo extraordinário. (...) o falanstério de Antônio Conselheiro.(...)[234] chegavam cargueiros repletos de toda a sorte de mantimentos, enviados diretamente a Canudos (...) Havia abastança e um entusiasmo forte.  

 COMO AGUARDAM OS JAGUNÇOS  A NOVA EXPEDIÇÃO 

(...) adquirindo armamentos, ajeitando contrabandos afinal fáceis de serem feitos, espiando tudo, de tudo inquirindo cautelosamente.

                 TRINCHEIRAS 

[235] (...) Construíam trincheiras. (...)(...) Os mutans* *Mutan - espécie de palanque, sobre o qual se espera a caça

[236]                  ARMAS 

    Não ficavam nisto os preparativos. Reparavam-se as armas. No arraial estrugia a orquestra estridente das bigornas, à cadência dos malhos e marrões: enrijando e maleando as foices entortadas; aguçando e aceirando os ferrões buidos; temperando as lâminas largas das facas de arrasto, compridas como espadas; retesando os arcos, que lembram uma transição entre as armas dos selvagens e a antiga besta de polé: consertando a fecharia perra das velhas espingardas e garruchas. E das tendas abrasantes irrompia um ressoar metálico de arsenais ativos.

                    PÓLVORA 

     Não era suficiente a pólvora adquirida nas vilas próximas, faziam-na: tinham o carvão, tinham o salitre, apanhado à flor da terra mais para o norte, junto ao S. Francisco, e tinham, desde muito, o enxofre. O explosivo surgia perfeito, de uma dosagem segura, rivalizando bem com os que adotavam nas caçadas.

                       BALAS 

     Não faltavam balas. A goela larga dos bacamartes aceitava tudo: seixos rolados, pedaços de pregos, pontas de chifres, cacos de garrafas, esquírolas de pedras.

                  LUTADORES    

(...)     Porque a universalidade do sentimento religioso, de par com o instinto da desordem, ali agremiara não baianos apenas senão filhos de todos os Estados limítrofes. Entre o "jagunço"do S. Francisco e os "cangaceiros" dos Cariris, surgiam, sob todos os matizes, os valentões tradicionais dos conflitos sertanejos, variando até então apenas no nome, nas sedições parceladas, dos "calangos", dos "balaios" ou dos "cabanos".

[237]              JOÃO ABADE 

 (...) laivos de superioridade mental, graças talvez à circunstância de haver estudado no liceu de uma das capitais do norte, de onde fugira após haver assassinado a noiva, o seu primeiro crime.(...)(...) o renome do novo comandante.(...) Era o anticristo, vindo a jungir à derradeira prova os penitentes infelizes. Imaginaram-no herói de grande número de batalhas, catorze como especificou um rude poeta sertanejo, no canto que depois consagrou à campanha; (...)     Deram-lhe um apelido lúgubre - "Corta-Cabeças"...

                           

[239]    II         PARTIDA DE MONTE-SANTO

     Iam partir as tropas a 22 de fevereiro. (...)(...)     Eram ao todo 1.281 homens - tendo cada um 220 cartuchos nas patronas e cargueiros, à parte a reserva de 60.000 tiros no comboio geral.(...)     Iniciava-se quase ao cair da noite a marcha para Canudos.     O fato foi de todo inesperado. (...) Retumbaram os tambores na vanguarda; (...)

[240] a terceira expedição contra Canudos.

Llosa é simpático a Moreira César. Se Euclides da Cunha foi implacável e irônico o tempo todo com o coronel Moreira César (...) o mesmo não se deu em outro grande livro sobre o tema, A Guerra do Fim do Mundo (...) Mario Vargas Llosa é até simpático a César, como se vê nesta passagem:Encontram Pau Seco deserta de gente, de coisas, de animais. Dois soldados junto ao tronco sem galhos em que tremula a bandeirinha deixada pela vanguarda, fazem continência. Moreira César fria o cavalo e passa um olhar pelas habitações de barro, cujo interior avista através das portas abertas ou arrancadas. De uma delas emerge uma mulher desdentada com uma túnica esburacada que deixa ver a pele escura. Duas crianças raquíticas, olhos vidrados, uma delas nua, a barriga inchada, agarram-se a seu corpo. Olham espantadas os soldados. Moreira César, do alto do cavalo, continua observando-as: parecem a encarnação do desamparo. Seu rosto se contrai em uma expressão em que se misturam a tristeza, a cólera, o rancor. Sem tirar os olhos delas, ordena a uma das escoltas:- Dêem-lhe de comer.Vira-se para seu lugar-tenente:- Estão vendo em que estado mantêm o povo do seu país?

á vibração em sua voz e seus olhos fuzilam. Em um gesto intempestivo desembainha a espada e a leva ao rosto, como se fosse beijá-la. Os correspondentes veem, então, espichando o pescoço, que o comandante do 7o. Regimento, antes de retomar a marcha, faz com a espada, aos três miseráveis habitantes de Pau Seco, essa continência que nos desfiles se presta à bandeira e à autoridade.

               PRIMEIROS ERROS 

- com o comandante retido numa fazenda próxima por outro ataque de epilepsia.(...)(...) transmudando-se as caatingas em caatanduvas.(...)(...) mangabeiras, único vegetal que ali medra sem decair, graças ao látex protetor que lhe permite, depois das soalheiras e das queimadas, cobrir de folhas e de flores os troncos carbonizados, à volta das estações propícias.

[241]             NOVA ESTRADA 

(...)     A travessia foi penosamente feita. O terreno inconsistente e móvel fugia sob os passos aos caminhantes; remorava a tração das carretas absorvendo as rodas até o meio dos raios; opunha, salteadamente, flexíveis barreiras de espinheirais, que era forçoso destramar a facão; e reduplicava, no reverberar intenso das areias, a adustão da canícula. De sorte que ao chegar, à tarde, à "Serra Branca", a tropa estava exausta. Exausta e sequiosa. Caminhara oito horas sem parar, em pleno ardor do sol bravio do verão.(...)     Fora previsto o transe, como vimos. Procurou-se cravar o tubo da bomba artesiana. A operação, porém - e os seus efeitos eram impacientemente aguardados - resultou inútil. Era inesequível. Ao invés de um bate-estacas que facilitasse a penetração da sonda, haviam conduzido aparelho de função inteiramente oposta, um macaco de levantar pesos.     Ante o singularíssimo contratempo, (...)(...)     Calcula-se o que foi essa jornada de oito ou dez léguas, sem folga. Mil e tantos homens penetrando, quase em cambaleios, torturados de sede, acurvados sob as armas, em pleno território inimigo. [242] E reatada a marcha, na antemanhã seguinte, reconheceram que estavam na zona perigosa. Cinzas de fogueiras a cada passo encontradas e algumas ainda mornas; restos de repastos em que eram preexcelente virtualha jabutis assados e quartos de cabrito; rastros frescos na areia, entranhando-se tortuosamente nas caatingas, (...)(...)     No dia 1º de março, precisamente na hora em que outra chuva passageira e forte caía sobre a tropa desabrigada(...)(...) E daquele enredamento de fileiras, rompeu aforradamente, de arremeso, um cavaleiro isolado, sem ordenanças, precipitando-se a galope entre os soldados, e lançando-se pela estrada na direção provável do inimigo, mal alcançado pelo engenheiro militar Domingos Leite.     Era o coronel Moreira César.     (...) o inimigo imaginário (...) um comboio de gêneros enviado por um fazendeiro amigo, das cercanias (*) * Coronel da guarda nacional José Américo C. de Sousa Velho, dono dos sítios de "Caimbê" e "Olhos d'Água". Foi quem aconselhou a estrada à expedição. (...)

            EM MARCHA PARA O ANGICO  

[244] paisagens a um tempo impressionadoras e monótonas:

(...) Mas em 2 de março, com seus homens famintos e sedentos, Moreira César, exalando confiança, disse: "Vamos almoçar em Canudos."

[247][247]                    III 

                 PITOMBAS

     [248]  "ESTA GENTE ESTÁ DESARMADA..."  

       As armas dos jagunços eram ridículas. Como despojo os soldados encontraram uma espingarda pica-pau, leve e de cano finíssimo, sob a barranca. (...) de matar passarinho.

     - "Esta gente está desarmada...", disse tranquilamente.

[250]      DOIS CARTÕES DE VISITA AO CONSELHEIRO 

os sertanejos repeliram o primeiro ataque.

ordenou outro assalto. Gritou: "Vamos tomar o arraial sem tiros. À baioneta!"

(...)     De súbito, surpreendeu-os a vista de Canudos.     Estavam no alto da Favela.

[254]    IV       A ORDEM DE BATALHA                    O TERRENO, CRÍTICA [255](...)

acometendo a um tempo por dois lados, os batalhões, de um e outro extremo, carregando convergentes para um objetivo único, fronteavam-se a breve trecho, trocando entre si as balas destinadas ao jagunço.

                  CIDADELA MUNDÉU  

[256] muros de taipa (...) Não opunha a rijeza de um tijolo à percussão e arrebentamento das granadas, que se amorteciam sem explodirem, furando-lhe de uma vez só dezenas de tetos. (...)     Na história sombria das cidades batidas, o humílimo vilarejo ia surgir com um traço de trágica originalidade.     Intacto, fragílimo; feito escombros - formidável.(...)[257]       Ora, as tropas do coronel Moreira César faziam-na desabar sobre si mesmas.

              CONFLITOS PARCIAIS  

(...) E nesse perseguir tumultuário, realizado logo nos primeiros minutos do combate, começou a esboçar-se o perigo único e gravíssimo daquele fossado monstruoso: os pelotões dissolviam-se. (...)     De longe se tinha o espetáculo estranho de um entocamento de batalhões, afundando, de súbito, no casario indistinto, em cujos tetos de argila enovelava a fumarada dos primeiros incêndios.(...)

[258]       SAQUE ANTES DO TRIUNFO  

(...) Esquadrinhava os giráos suspensos. Ali estavam carnes secas ao sol; cuias cheias de passoca, a farinha de guerra do sertanejo; aiós repletos de ouricuris saborosos. A um canto os bogós transudantes, túmidos de água cristalina e fresca. Não havia resistir. Atabalhoadamente fazia a refeição num minuto. Completava-a largo trago de água. Tinha, porém, às vezes, um pós-pasto crudelíssimo e amargo - uma carga de chumbo...(...)

            NO LABIRINTO DAS VIELAS  

     Muitos se perdiam no inextricável dos becos. (...)

             SITUAÇÃO INQUIETADORA  

(...) A tropa desaparecera toda nos mil latíbulos de Canudos. (...)(...)     Nada prenunciava desânimo entre os sertanejos.     Os atiradores da igreja nova permaneciam firmes, (...)(...)[260]     Uma carga de cavalaria em Canudos...

(...) A arma clássica das planícies rasas, (...)

          MOREIRA CÉSAR FORA DE COMBATE  

(...) Fora atingido no ventre por uma bala.(...)

Estava mortalmente ferido.

Mas as ruelas de Canudos pareciam um labirinto e, ao entrarem na cidade, os soldados viraram alvo fácil para os franco-atiradores postados no alto das torres da nova igreja. Moreira César tomou nova decisão equivocada ao ordenar o avanço da cavalaria, incapaz de manobras entre as ruelas e os casebres que serviam de abrigo aos nativos. Ao investir ele próprio contra o arraial, o arrogante Moreira César tombou morto.

(...)     Devia substituí-lo o coronel Tamarindo, (...) Chegara aos sessenta anos candidato a uma reforma tranquila. Fora, ademais, incluído contra a vontade na empresa. (...)(...)     Não se rasteava na desordem o mais leve traço de combinação tática; ou não se podia mesmo imaginá-la.(...)cinco horas de peleja.

[263] V           SOBRE O ALTO DO MÁRIO  (...)

Centralizava-o uma palhoça em ruínas - a Fazenda Velha; e dentro dela o comandante-chefe moribundo.(...)cento e tantos feridos e estropeados

[264]        O CORONEL TAMARINDO  

     Faltava, ademais, um comando firme. O novo chefe não suportava as responsabilidades, que o oprimiam. (...) A um oficial que ansiosamente o interpelara sobre aquele transe, respondera com humorismo triste, rimando um dito popular do norte:

"É tempo de muriciCada um cuide de si..."

     Foi a única ordem do dia. (...) abdicara à missão de remodelar a turba esmorecida e ao milagre de subdividi-la em novas unidades de combate.[265]

                ALVITRE DE RETIRADA  (...)

mais de dois terços da tropa apta para o combate e munições suficientes; (...)     Apesar disto manteve-se a resolução.

         PROTESTO DE MOREIRA CÉSAR  

fizessem uma ata de tudo aquilo, deixando-lhe margem para um protesto, (...) chefe ferido por duas balas (...) soldados, oitocentos, talvez; dispunha de dois terços das munições (...)[266] (...)     É que grande parte dos soldados era do norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro. (...)(...) O inimigo, em baixo, no arraial invisível - rezava.(...) não havia reagir contra adversários por tal forma transfigurados pela fé religiosa.(...) Falecera o coronel Moreira César.

                        RETIRADA

 (...)[267] Não retirava, fugia                         

VAIA  (...)

     Mais uma vez o drama temeroso da guerra sertaneja tinha o desenlace de uma pateada lúgubre.

(...)[268]       VI    DEBANDADA.

FUGA  (...)

correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes...     Entre os fardos atirados à beira do caminho (...) o cadáver do comandante.

             SALOMÃO DA ROCHA  [270] (...)

O capitão Salomão (...) tombou, retalhado a foiçadas, junto dos canhões que não abandonara.(...)na ocasião em que transpunha a galope o córrego do Angico, o coronel Tamarindo foi precipitado do cavalo por uma bala. (...)(...)

          UM ARSENAL AO AR LIVRE  (...)

     Enquanto isto sucedia, os sertanejos recolhiam os despojos. Pela estrada e pelos lugares próximos jaziam esparsas, armas e munições, de envolta com as próprias peças do fardamento, dólmanes e calças de listra carmesim, cujos vivos denunciadores demais no pardo da caatinga os tornavam incompatíveis com a fuga. De sorte que a maior parte da tropa não se desarmara apenas diante do adversário. Despira-se...[271] (...) A expedição Moreira César parecia ter tido um objetivo único: entregar-lhes tudo aquilo, dar-lhes de graça todo aquele armamento moderno e municiá-los largamente.

             UMA DIVERSÃO CRUEL  

     Levaram para o arraial os quatro Krupps; substituíram nas mãos dos lutadores da primeira linha as espingardas velhas e de carregamento moroso pelas Mannlichers e Comblains fulminantes; e como as fardas, cinturões e bonés, tudo quanto havia tocado o corpo maldita das praças, lhes maculariam a epiderme de combatentes sagrados, aproveitaram-nos de um modo cruelmente lúgubre. (...) A força do governo era agora realmente a fraqueza do governo, denominação irônica destinada a permanecer por todo o curso da campanha. (...) e o abandono pelo caminho fora das armas e bagagens.     Era sem dúvida um milagre. (...) amparava-os visivelmente a potência superior da divindade.(...)(...) recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. (...) nos arbustos marginais mais altos, de[272] penduraram os restos de fardas, calças e dólmanes multicores, selins, cinturões, quépis de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...     A caatinga, mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagante colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmanes e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes...     Um pormenor doloroso completou esta encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo.     Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca.     Ali permaneceu longo tempo...

     Quando três meses mais tarde, novos expedicionários seguiam para Canudos, depararam ainda o mesmo cenário: renques de caveiras branqueando nas orlas do caminho, rodeadas de velhos trapos, esgarçados nos ramos dos arbustos e, de uma banda - mudo protagonista de um drama formidável - o espectro do velho comandante...

Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, 47 anos, foi convocado para chefiar os 1 300 homens que formariam a terceira expedição.Sua preocupação maior era que os conselhereiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de derrotá-los. "Vamos tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta." Mas Moreira César tinha um outro adversário (...) - ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha como conter a doença. Sofreu dois ataques durante a campanha de Canudos. Além disso, apresentava um temperamento instável e impulsivo. faltou-lhe previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de marcha penosa, sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas - o que, além de facilitar a movimentação do adversário, familiarizado com o labirinto de ruelas, inutilizou a artilharia.o coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no comando (...) proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das debandadas militares:

[273]           QUARTA EXPEDIÇÃO [275]                            I

                      DESASTRES(...)

     A quarta expedição organizou-se através de grande comoção nacional, (...) Na desorientação completa dos espíritos alteou-se, (...) depois em inabalável certeza, a ideia de que não agiam isolados os tabaréus turbulentos. Eram vanguarda de ignotas falanges prontas a irromperem, de repente, em toda a parte, convergentes sobre o novo regímen.

           CANUDOS - UMA DIATESE

(...) e Antônio Conselheiro - um Messias de feira - (...)     A República estava em perigo; era preciso salvar a República. (...)(...)     Doutrinava-se: "O que de um golpe abalava o prestígio da autoridade constituída e abatia a representação do brio da nossa pátria no seu renome, na sua tradição e na sua força era o movimento armado que, à sombra do fanatismo religioso, marchava acelerado contra as próprias instituições, não sendo lícito a ninguém iludir-se mais sobre o pleito em que audazmente entravam os saudosos do império, francamente em armas.~     Concluía-se: "Não há quem a esta hora não compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir com a República a unidade do Brasil" (* Gazeta de Notícias).     Explicava-se: "A tragédia de 3 de março em que juntamente com o Moreira César perderam a vida o ilustre coronel Tamarindo e tantos outros oficiais briosíssimos do nosso exército, foi a confirmação de quanto o partido monarquista à sombra da tolerância do poder público, e graças aos seus involuntários alentos, tem crescido em audácia e força" (** O País).

     Afirmava-se: "Trata-se da Restauração; conspira-se; forma-se o exército imperialista. O mal é grande; que o remédio corra parelhas com o mal. A monarquia arma-se? Que o presidente chame às armas os republicanos" (*** O Estado de São Paulo). [ou A Província... 

O Paiz, 18 de julho de 1897 O monstro de Canudos "O monstro, ao longe, nas profundezas do sertão misterioso, escancara as guelras insaciáveis, pedindo mais gente, mais pasto de corações republicanos, um farnel mais opulento de heróis, e a fera ir-se-á abastecendo e devorando até que num assomo de raiva, ao sentir a falta de ucharia, desses abastecimento de corpos, desgrenhe a juba e com um arranque de sua pata monstruosa queira esmagar a pátria, em crepe pela morte dos seus filhos mais amados, pelo massacre do seu exército glorioso!" - No Calor da Hora, Walnice Nogueira Galvão "Não há quem, a esta hora, compreenda que o monarquismo revolucionário quer destruir, com a República, a unidade do Brasil." - Walnice Galvão de Queirós, No Calor da Hora, São Paulo, Ática, 1974 - Reunião das reportagens da época sobre Canudos, transcritas dos principais jornais da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Machado de Assis em 31 de janeiro de 1897 manifestara-se ‘contra a perseguição à gente de Antônio Conselheiro’, indagando da natureza do ‘vínculo moral e fortíssimo’ que a prendiam ao líder  

Euclides da Cunha, que nos seus despachos de repórter seguirá a sanha patrioteira em voga, mas que no seu "livro vingador" adotou uma postura crítica, escreve em Os Sertões: "A paixão patriótica roçava, derrancada, pela insânia."

(...) Em tudo a obsessão do espantalho monárquico, (...) 

[277]        EMPASTELAMENTO DE 

             JORNAIS MONÁRQUICOS

         A RUA DO OUVIDOR E AS CAATINGAS 

(...) A rua do Ouvidor valia por um desvio nas caatingas. (...) E a guerra de Canudos era, por bem dizer, sintomática apenas. O mal era maior. (...)(...)[278]                                        

               CONSIDERAÇÕES(...)      

O caso era mais complexo... Envolvia dados entre os quais nada valiam os sonâmbulos erradios e imersos em sonhos da restauração imperial...     Insulado no espaço o no tempo, o jagunço, um anacronismo étnico, só podia fazer o que fez - bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado [de] baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas.(...) Canudos era uma tapera miserável, fora dos nosso mapas, perdida no deserto, aparecendo, indecifrável, como uma página truncada a sem-número das nossas tradições. (...)(...)Aquele afloramento originalíssimo do passado, patenteando todas as falhas da nossa evolução, era um belo ensejo para estudarmo-las, corrigirmo-las ou anularmo-las. Não entendemos a lição eloquente.     Ao invés, preferimos liquidá-lo a ferro e fogo... [279] (...) Agir era isto - agremiar batalhões.

[280]                   O CABO ROQUE(...)

Os trezentos e tantos mortos das informações oficiais, ressurgiam. (...) lá estavam - salvos - mil e oitenta e um combatentes. (...)

(...)[281]                    PLANOS

(...)     É que estava em jogo, em Canudos, a sorte da República...(...)         

UM TROPEAR DE BÁRBAROS[282]

(...)

astuto e temerário, Euclides da Cunha não titubeia:

Em Joazeiro, no Ceará, um heresiarca sinistro, o padre Cícero, conglobava multidões de novos cismáticos em prol do Conselheiro. (...) Em Minas, um quadrilheiro desempenado, João Brandão, destroçava escoltas e embrenhava-se no alto sertão do S. Francisco, tangendo cargueiros ajoujados de espingardas.     A aura da loucura soprava também pelas bandas do sul: o Monge do Paraná, por sua vez, aparecia nessa concorrência extravagante para a história e para os hospícios. (...)

[283]                           II

          MOBILIZAÇÃO DE TROPAS

(...)      O comandante do 2º distrito militar, general Artur Oscar de Andrade Guimarães, (...) "(...) para levar à geração futura uma República honrada, firme e respeitada."

      A mesma nota em tudo: era preciso salvar a República...

A expedição, minuciosamente planejada, foi dividida em duas colunas: a primeira, em que seguiria o general Artur Oscar, tinha 2.000 homens e partiria de Monte Santo, passando pela serra do Calumbi; a segunda, sob o comando do general Savaget, reunia 2.350 homens e sairia de Sergipe rumo a Jeremoabo, na Bahia. Os dois grupos levaram mais de 700 toneladas de muniçãoNo dia 25 de junho, ao partir de Jeremoabo rumo ao arraial, guerrilheiros no planalto de Cocorobó atacaram uma coluna comandada pelo general Savaget. Depois de mais de oito horas de combate 178 militares estavam mortos. Ao mesmo tempo, na frente sul, a tropa do comandante-chefe também estava cercada no morro da Favela.

Em fins de julho o exército já tivera mil baixas.

     CONCENTRAÇÃO EM QUEIMADAS

(...)Bahia (... era um Canudos grande. A velha capital com o seu aspecto antigo, alteada sobre a montanha, em que embateram por tanto tempo as chusmas dos "varredores do mar", batavos e normandos; conservando, a despeito do tempo, as linhas tradicionais da antiga metrópole do oceano; (...) parecia-lhes como uma ampliação da tapera sertaneja.(...)[284] em ordem do dia de 5 de abril, pôde organizar a expedição:

[285]  CRÍTICA

(...)plano - cópia ampliada de erros anteriores, com uma variante única: em lugar de uma eram duas as massas compactas de soldados que iriam tombar, todos a um tempo, englobadamente, nas armadilhas da guerra sertaneja.  (...)(...) todo o vasto sertão do S. Francisco, asilo impenetrável a que se acolheriam a salvo e onde se aprestariam para a réplica.(...)[286] investida.

       DELONGAS

(...) só se realizaria dois meses depois, em fins de junho. (...)     O grande movimento de armas de março fora uma ilusão. Não tínhamos exército, na significação real do termo, em que se inclui, mais valiosa que a existência de alguns milhares de homens e espingardas, uma direção administrativa, técnica e tática, definida por um estado-maior enfeixando todos os serviços, desde o transporte das viaturas aos lineamentos superiores da estratégia, órgão preparador por excelência das operações militares.     Faltava tudo. Não havia um serviço de fornecimento organizado, de sorte que numa base de operações provisória, presa ao litoral por uma estrada de ferro, foi impossível conseguir-se um depósito de víveres. Não havia um serviço de transporte suficiente para cerca de cem toneladas de munições de guerra.     Por fim não havia soldados: os carregadores de armas, que por ali desembarcavam, não haviam polígonos de tiro, ou campos de manobra. Os batalhões chegavam, alguns desfalcados, menores que companhias, com o armamento estragado e carecendo de notações táticas mais simples. Era preciso completá-los, armá-los, vesti-los, municiá-los, adestrá-los e instruí-los.     Queimadas fez-se um viveiro de recrutas e um campo de instrução. (...)(...) mais de três mil homens em armas, (...)[287]     A custo se terminara a linha telegráfica de Queimadas, (...) E foi a única coisa apreciável durante tanto tempo perdido. (...) O deputado do quartel-general não conseguira sequer um serviço regular de comboios (...) de modo a armazenar reservas capazes de sustentar por oito dias a tropa. (...) A penúria e uns como prenúncios de fome condenavam à imobilidade a divisão em que se achava o principal chefe da campanha.  [288]adversário, alentado por três vitórias, (...)(...)

        NÃO HÁ UM PLANO DE CAMPANHA 

ordem do dia (...)(...) Antônio Conselheiro, "o inimigo da República" (...) no meio daquelas "matas infelizes" (...)(...)

      CRÍTICA(...)    

     Persistia a obsessão de uma campanha clássica. (...) é a teimosia no imaginar, intactas, dentro de traçados gráficos, as guerrilhas solertes dos jagunços.(...)[289] E o chefe expedicionário citou, a propósito, Ther Brun. Não quis inovar. Não imaginou que o frio estrategista invocado, um gênio que não valia na ocasião as ardilezas de um capitão do mato, (...) guerras sertanejas - guerras à gandaia, sem programas rígidos, sem regras regulares, rodeadas de mil casos fortuitos, e aos recontros súbitos em todas as voltas dos caminhos ou tocaias em toda a parte.(...) A luta que só pedia um chefe esforçado e meia dúzia de sargentos atrevidos e espertos, ia iniciar-se enleada em complexa rede hierárquica (...) Prendeu-se-lhe, além disto, às ilhargas, a mole de aço de um Withworth de 32, pesando 1.700 quilos! A tremenda máquina, feita para a quietude de fortalezas costeiras - era o entupimento dos caminhos, a redução da marcha, a perturbação das viaturas, um trambolho a qualquer deslocação vertiginosa de manobras. Era, porém, preciso assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço, (...)   (...) As colunas partiram da própria base das operações em situação absolutamente inverossímil - à meia ração. Marcharam em desdobramentos que (...) não as forravam dos assaltos. (...)     Os que as acompanhavam nada valiam. Tinham que marchar, ladeando o grosso da tropa por dentro das caatingas, e estas tolhiam-lhe o passo. Soldados vestidos de pano, rompendo aqueles acervos de espinheirais e bromélias, mal arriscariam alguns passos, deixando por ali, esgarçados os fardamentos, em tiras.  [290] (...) Bastava que fossem apropriadamente fardados. O hábito dos vaqueiros era um ensinamento. O flanqueador devia meter-se pela caatinga, envolto na armadura de couro do sertanejo - garantido pelas alpercatas fortes, pelos guarda-pés e perneiras, em que roçariam inofensivos os estiletes dos chique-chiques, pelos gibões e guarda-peitos, protegendo-lhe o tórax, e pelos chapéus de couro, firmemente apresilhados ao queixo, habilitando-os a arremessar-se, imune, por ali dentro. (...) ali estavam, em todos os batalhões, filhos do norte, nos quais o uniforme bárbaro não se ajustaria pela primeira vez.     Não seria, isto, excessiva originalidade. Mais extravagantes são os dólmanes europeus de listras vivas e botões fulgentes, entre os gravetos da caatinga decídua. Além disto, atestam-no os nossos admiráveis patrícios dos sertões, aquela vestidura bizarra, capaz. em que pese ao seu rude material, de se afeiçoar aos talhos de uma plástica elegante, parece que robustece e enrija. É um mediador de primeira ordem ante as intempéries. Atenua o calor no estio, atenua o frio no inverno; amortece as mais repentinas variações de temperatura; normaliza a economia fisiológica, e produz atletas. Harmoniza-se com as maiores vicissitudes da guerra. Não se gasta; não se rompe. Depois de um combate longo, o lutador exausto tem o fardamento intacto e pode repousar sobre uma moita de espinhos. Ao ressoar de um alarme súbito, apruma-se, de golpe, na formatura, sem uma prega na sua couraça flexível. Marcha sob uma chuva violenta e não tirita encharcado; depara, adiante, um ervaçal em chamas e rompe-o aforradamente; antolha-se-lhe um ribeirão correntoso e vadeia-o, leve, dentro da véstia impermeável.     Mas isto seria uma inovação extravagante. Temeu-se colar à epiderme do soldado a pele coriácea do jagunço. A expedição devia marchar corretíssima. Corretíssima e fragílima.     Partira, em primeiro lugar, no dia 14, a comissão de engenharia (...). Levava uma tarefa árdua: afeiçoar à marcha as trilhas sertanejas; e retificá-las, ou alargá-las, ou nivelá-las, ou ligá-las por estivas e pontilhões ligeiros, de modo que em tais veredas, cindidas de boqueirões e envergando pelos morros, passasse aquela artilharia imprópria - as baterias de Krupp, alguns canhões de tiro rápido, e o aterrador 32, que por si só queria estrada de rodagem, consolidada e firme.     Esta estrada foi feita. Abriu-a num belo esforço, e com tenacidade rara, a comissão de engenharia, desenvolvendo-a até o alto da Favela, num percurso de quinze léguas.

[291]          SEQUEIRA DE MENESES

  1. a comissão de engenharia

(...)O tenente-coronel Meneses era o olhar da expedição. Oriundo de família sertaneja do norte e tendo até próximos colaterais entre os fanáticos, em Canudos, aquele jagunço alourado, de aspecto frágil, física e moralmente brunido pela cultura moderna, a um tempo impávido e atilado - era a melhor garantia de uma marcha segura. E deu-lhe um traçado que surpreendeu os próprios sertanejos. [292](...)

               A MARCHA PARA CANUDOS

(...)o obstruente 32, (...) vinte juntas de bois que o arrastavam (...)(...)forte de uns três mil combatentes, avançou até ao Aracati, quarenta e sete quilômetros além de Monte-Santo, (...)

[293]      O 5º CORPO DE POLÍCIA BAIANA

Recém-formara-se com sertanejos engajados nas regiões ribeirinhas do S. Francisco. Mas não era um batalhão de linha, como não era um batalhão de polícia. Aqueles caboclos rijos e bravos, joviais e bravateadores, que mais tarde, nos dias angustiosos do assédio de Canudos, descantariam, ao som dos machetes, modinhas folgazãs, debaixo de fuzilarias rolantes - eram um batalhão de jagunços.

           ALTERAÇÃO DA FORMATURA

     O 5. corpo e o comboio, partindo por último, de Monte-Santo, à regaça da expedição, quando deviam centralizá-la, seguiam, ao cabo, completamente isolados.(...)[294] a tropa se espalhara em lonjura de quase quatro léguas

[295]                INCIDENTES(...)

além dos trabalhos de sapa, abrir mais de uma légua de picada contínua através de uma caatinga feroz* Ju-etê - espinho grande - por extensão: espinheiral, grande espinheiro

[296] *Tenente-coronel Sequeira de Meneses. Artigos publicados no País, com o pseudônimo Hoche 

como num tratado de botânica

     "Ao Chique-chique, Palmatória, Rabo de Raposa, Mandacarús, Croás, Cabeça de Frade, Culumbi, Cansanção, Favela, Quixaba e a respeitabilíssima Macambira, reuniu-se o muito falado e temido cunanan, espécie de cipó com aspecto arborescente, imitando no todo a uma planta cultivada nos jardins, cujas folhas são cilíndricas. A poucos centímetros do chão o tronco divide-se em muitos galhos, que se multiplicam numa profusão admirável, formando uma grande copa, que se mantém no espaço por seus próprios esforços ou favorecido por algumas plantas que vegetam de permeio. Estende suas francas folhas cilíndricas com oito caneluras e igual número de filetes em gume e pouco salientes, semelhando-se a um enorme polvo de milhões de antenas, como elas flexíveis e elásticas, cobrindo, não raras vezes, considerável superfície do solo, emaranhando-se, por entre a esquisita e raquítica vegetação destas paragens, e uma trama impenetrável. A foice mais afiada dos nossos soldados do contingente de engenharia (chineses, na frase gaiata dos companheiros dos corpos combatentes) e polícia, dificilmente as decepava nos primeiros golpes, oferecendo, portanto, resistência inesperada ao empenho que todos traziam em ir por diante. (...)(...)[297](...)Foi magnífico, esplêndido mesmo, o espetáculo que a todos vivamente impressionou, venda a artilharia com seus metais faiscantes e polidos, altiva de sua força soberana, atravessar garbosa e imponente, como rainha do Mundo, por entre os fantásticos clarões de grandes fogos, aceso no deserto, como que pelo gênio da liberdade, para mostrar-lhe o caminho do dever, da honra e da glória."

        UM GUIA TEMEROSO: PAJEÚ

Aferrou a tropa num tiroteio rápido, de flanco, fugitivo, acompanhando-a velozmente por dentro das caatingas. Desapareceu. Surgiu, logo depois, adiante. Caiu num arremesso rápido sobre a vanguarda (...)

[298]                 NO "ROSÁRIO" (...)

     As tropas iam escalar pelo sul o antemural que circunscreve Canudos. (...)o ronceiro 32 (...) e toda a carga de 53 carroças e 7 grandes carros de bois passara, (...)

[299]        PASSAGEM NAS PITOMBAS 

Pajeú congregara os piquetes (...) sítio memorável de Pitombas, onde houvera o primeiro encontro de Moreira César com os fanáticos.     O lugar era lúgubre.

              RECORDAÇÕES CRUÉIS 

molambos já incolores, de fardas (...) fragmentos de ossadas. (...)[300] o arcabouço do coronel Tamarindo, decapitado, braços pendidos, mãos esqueléticas, calçando luvas pretas...     Jaziam-lhe aos pés o crânio e as botas.     E do correr da borda do caminho ao mais profundo das macegas, outros companheiros de infortúnio: esqueletos vestidos de fardas poentas e rotas, estirados no chão, de supino, num alinhamento de formatura trágica; ou desequilibradamente arrimados aos arbustos flexíveis, que, oscilando à feição do vento, lhes davam singulares movimentos de espectros - delatavam demoníaca encenação adrede engenhada pelos jagunços. Nada lhes haviam tirado, excluídas as munições e as armas. Uma praça do 25. encontrou, no lenço envolto na tíbia descarnada de um deles, um maço de notas somando quatro contos de réis - que o adversário desdenhara, como a outras coisas de valor para ele despiciendas.(...)     Era o alto da Favela.

[302]                    FUZILARIA

 esbatida no clarão do luar deslumbrante, a misteriosa cidade sertaneja;

[303] TRINCHEIRAS DOS JAGUNÇOS (...)

      Explicavam-se, assim, os ataques ligeiros, feitos em caminho e a insistência, a partir do Angico, do inofensivo tiroteio em que os sertanejos, salteando e correndo, tinham evidente intuito de atrair a expedição segundo um rumo certo, impedindo-lhe a escolha de qualquer atalho entre tantos que dali por diante levam ao arraial.     Triunfara-lhes o ardil. (...) (...) acompanhando, sem o saberem, um guia ardiloso e terrível, com que não contavam - Pajeú...     E tombaram na tocaia com aquele aprumo de triunfadores. (...)

[304]       CONTINUA A FUZILARIA 

     Era um fuzilamento em massa...(...) 

          ACAMPAMENTO NA FAVELA (...)

junto ao alto do Mário (...), a que ulteriores sucessos dariam o nome de "Vale da Morte" (...) 55 feridos (...) alteavam a 75 o número de baixas do dia, em pouco mais de uma hora de combate.(...)[305] as bandas de música da 3ª brigada, esgotando até deshoras um grande repertório de dobrados;

                        CANUDOS 

(...) a "caverna dos bandidos", segundo o dizer pintoresco das ordens do dia do comando-chefe.(...) A vereda sagrada de Massacará - por onde seguia o Conselheiro nas suas peregrinações para o sul     A igreja nova, quase pronta, alentava as duas altas torres[306] o arraial distante mil e duzentos metros(...)

                    CHUVA DE BALAS 

o chefe expedicionário (...) descrever a imensa "chuva de balas que desciam dos morros e subiam das planícies num sibilo horrível de notas" (...) Por sua vez o comandante da 1ª coluna, afirmou, em ordem do dia, que durante cinco anos, na guerra do Paraguai, jamais presenciara coisa semelhante.(...) bateram, convergentes, sobre a artilharia. Dizimaram-na. Tombaram dezenas de soldados e a metade dos oficiais. (...)

[307]         CONFUSÃO E DESORDEM 

sem direção fixa e sem ordem de comando, três mil espingardas dispararam a um tempo dirigidas contra os morros. (...)     Ninguém deliberava. Todos agiam. (...)[308](...) O coronel Flores (...) Por um requinte dispensável de bravura, não arrancara dos punhos os galões que o tornaram alvo predileto dos jagunços. Ao reatar-se, logo depois, a avançada, baqueou, ferido em pleno peito, morto.

                            BAIXAS 

     Substituiu-o o major Cunha Matos, que dignamente prosseguiu no movimento imprudentemente planejado, porque o 7º batalhão, entre os demais corpos, era o único que não podia recuar naquele terreno. O seu comando foi, porém, brevíssimo. Desmontado logo por um projétil certeiro, passou-o ao major Carlos Frederico de Mesquita. Este por sua vez foi, adiante, atingido por uma bala, assumindo a direção da brigada um capitão, Pereira Pinto. Era assombroso: o 7º batalhão teve em meia hora cento e catorze praças fora de combate, e nove oficias.     Reduzira-se de um terço. Dissolvia-se à bala. Idêntico destroço lavrara noutros pontos. Rapidamente, com um ritmo inflexível, de minuto em minuto, as graduações dos chefes caíam em escalas assustadoras. O 14º de infantaria, ao abalar em reforço às linhas do flanco direito, perdera, transcorridos alguns metros, o comandante, major Pereira Melo. Substituiu-o o capitão Martiniano de Oliveira e, a breve trecho, foi retirado da linha, baleado. O capitão Sousa Campos que lhe sucedeu, apenas dados alguns passos, caiu morto. O 14º prosseguiu comandado por um tenente.     A mortandade alastrava-se deste modo por todas as linhas e, como uma agravante, ao fim de duas horas de um combate feito sem a mínima combinação tática, viu-se que as munições se esgotavam. A artilharia, dizimada na eminência em que permanecera valentemente, dera o último tiro, calando o canhoneio. Perdera a metade dos oficiais, e entre estes (...).     Começaram a chegar ao quartel-general reclamos insistentes para que fossem municiados os batalhões.(...) Não podiam romper as fuzilarias que trancavam a passagem. Cortara-se a retaguarda. (...) [309] eles perceberiam o tiroteio longínquo do 5º de polícia a braços com os jagunços, a duas léguas de distância.

          UMA DIVISÃO APRISIONADA 

 (...) a artilharia, dizimada, perdera quase toda a oficialidade e emudecera, a expedição estava completamente suplantada pelo inimigo.(...) saltar fora daquele vale sinistro da Favela, que era como uma vala comum imensa (...)(...) 2a. coluna, que estacionara menos de meia légua, ao norte...

[310]  III COLUNA SALVAGET

          - DE ARACAJU A CANUDOS

general Cláudio do Amaral Savaget     Forte de dois mil trezentos e cinquenta homens (...)(...)imprópria a opulências de teorias guerreiras exercitadas através de um formalismo compacto (...)(...) As três brigadas ágeis, elásticas e firmes, abastecidas de comboios parciais, que lhes não travavam os movimentos; [311] (...) sem os entraves dos elefantes de Pyrrho de uma artilharia imponente e imprestável. 

                     CARLOS TELES 

     Dirigia-a o coronel Carlos Teles - a mais inteiriça organização militar do nosso exército nos últimos tempos.(...) extraordinários lidadores rio-grandenses - bravos, joviais (...)     A campanha federalista do sul dera-lhe invejável auréola. A sua figura de campeador - porte dominador e alto, envergadura titânica, olhar desassombrado e leal - culminara-lhe o episódio mais heróico: o cerco de Bagé.     A campanha de Canudos ia ampliar-lhe o renome.     Compreendeu-a como poucos. Tinha a intuição guerreira dos gaúchos.     De posse de sua brigada e abalando com ela, isolado, para Simão Dias, onde chegou a 4 de maio, modelara-a em pequeno corpo de exército adaptando-a às exigências da luta.    Aligeirou-a; adestrou-a; e como era impossível transmudar a instrução prática de soldados que vinham de um severo exercício de batalhas nos campos do Rio Grande (...) Escolheu, entre as companhias do 31º, sessenta homens, cavaleiros adestrados, (...) constituiu com eles um esquadrão de lanceiros (...)(...)     Os improvisados lanceiros tinham a prática das corridas pulando sobre as "covas de outro" das campinas do sul.(...)[312]chegou àquele ponto a 25 de junho certa de encontrar o inimigo.     Pela primeira vez uma tropa expedicionária dos sertões não se deixava surpreender.

                       COCOROBÓ 

     Cocorobó, nome que caracteriza não uma serra única mas sem-número delas, recorda restos de antiquíssimos canons, vales de erosão ou quebradas, abertos pelo Vasa-Barris em remotas idades, quando incomparavelmente maior efluía talvez de grande lago que cobria a planície rugada de Canudos. (...)

             RETROSPECÇÃO GEOLÓGICA

 (...) [313]      O desfiladeiro de Cocorobó (...)(...)

[314]       DIANTE DAS TRINCHEIRAS 

(...) no dia 25 de junho     O esquadrão de lanceiros descobrira o inimigo.(...)[316](...)

     No fim de três horas de fogo os atacantes não tinham adquirido um palmo de terreno. A quinhentos metros dos adversários, não tinham - milhares de vistas fixas nas vertentes despidas - lobrigado um único sequer. (...)

          CARGA DE BAIONETAS  EXCEPCIONAL  

     Os jagunços era duzentos ou eram dois mil. Nunca se lhes soube, ao certo, o número. (...)(...)[317] uma pancada única de mil e seiscentas baionetas de encontro a uma montanha.

[319]                     A TRAVESSIA (...)

     O general Savaget foi atingido e desmontado. (...) Porque o combate de Cocorobó, a princípio vacilante, indeciso numa dilação de três horas de tiroteios ineficazes, e ultimando-se por uma carga de baionetas fulminante, foi, de fato, um raro golpe de audácia apenas justificável, senão pelo dispositivo das tropas que o vibraram, pela sua natureza especial. Predominava nas fileiras o soldado rio-grandense.[320] cento e setenta e oito homens fora de combate, dos quais vinte e sete mortos (...)

(...)                       MACAMBIRA (...)

no dia subsequente, 27, (...) deviam estar na orla de Canudos, de onde, feita a convergência das seis brigadas, iriam dar, reunidas, sobre o arraial.

[321]                     FUZILARIA (...)

Eram mais de mil baionetas, quase toda a coluna, empenhadas no conflito. Os jagunços então recuara; e recuando lentamente, de colina em colina, desalojados de um ponto para surgirem em outro, obrigando os antagonistas a um contínuo descer e subir de ladeiras, parecia desejarem arrebatá-los até o arraial, exaustos e torturados de tiroteios. Volviam à tática invariável. O campo do combate começou a fugir debaixo dos pés dos assaltantes. As cargas de baionetas não tiveram então o brilho de Cocorobó. (...)[322] linhas de fogo. Estas desatavam-se por três quilômetros. (...)(...)tivera neste dia cento e quarenta e oito homens fora de combate, entre os quais quarenta mortos, (...)(...)

                               BOMBARDEIO

[323] ultimando uma travessia de setenta léguas com um combate de três dias.(...)

[325]                       IV

              VITÓRIA SINGULAR 

(...)adversário que haviam julgado sopear facilmente. O heroísmo era-lhes, agora, obrigatório. A coragem, a bravura retransida de sobressaltos, um compromisso sério com o terror. (...)(...)

[326]                                  BAIXAS

A tropa - cinco mil soldados, mais de novecentos feridos e mortos, mil e tantos animais de montada e tração, centenares de cargueiros - sem flancos, sem retaguarda, sem vanguarda, desorganizara-se por completo. A primeira coluna tivera naquele dia 524 homens fora de combate que com 75 da véspera somavam 599 baixas. A segunda ligara-se-lhe desfalcada de 327 combatentes. (...)Gutierrez, oficial honorário, um artista que fora até lá atraído pela estética sombria de batalhas (...)(...) nada compensava tais perdas ou explicava semelhante desfecho a planos de campanha maduramente arquitetados. (...)[327](...)E como o comboio reconquistado chegara reduzidíssimo, ficando mais de metade das cargas em poder dos sertanejos ou inutilizada, a tropa perdera munições de inestimável valor na emergência, e ao mesmo tempo os aparelhara com cerca de quatrocentos e cinquenta mil cartuchos, o bastante para prolongarem indefinidamente a resistência. Municiara-os. Completara o destino singular da expedição anterior que lhes dera espingardas. Estas estrondavam agora, a cavaleiro do acampamento.

(...)

           COMEÇO DE UMA BATALHA CRÔNICA

(...)

Ao amanhecer de 29 

de junho

verificaram-se insuficientes as munições de boca, para a ração completa das praças da 1a. coluna, já abatidas por uma semana de alimentação reduzida.[328] (...) se lançou mão dos últimos recursos, sendo naquele mesmo dia abatidos os bois mansos, que até lá tinham conduzido o pesado canhão 32.(...)Punha-se de manifesto que um vilarejo aberto do sertão não suportasse por muitas horas as balas mergulhantes de dezenove canhões modernos...(...)

[330]          REGÍMEN DE PRIVAÇÕES[331]

"acreditando que de Monte-Santo chegasse, em breve, um comboio de gêneros alimentícios (...)"     Mas esse comboio não existia. (...) E o exército, que à sua partida já sofria os primeiros aguilhões da fome, entrou num período de provações indescritíveis.

 AVENTURAS DO CERCO. 

CAÇADAS PERIGOSAS

(...)[333]

ao minotauro de seis mil estômagos(...)     Como os retirantes infelizes, os soldados apelaram para a flora providencial. (...) Não lhes bastava, porém, este recurso, que para os mais inexpertos mesmo era perigoso. Alguns morreram envenenados pela mandioca brava e outras raízes, que não conheciam.(...)A partir de 7 de julho, cessou a distribuição de gêneros aos doentes.(...)

[335] ASSALTO AO ACAMPAMENTO.                    A "MATADEIRA"(...)

e acrescido respeito ao destemor do adversário.     O ascendente deste avultava dia a dia.(...)     É natural que uma semana depois da ocupação do morro se generalizasse o desânimo. (...) verificando-se a ineficácia do canhoneio (...)

[336]    ATITUDE DO COMANDO-CHEFE

     Aguardava a brigada salvadora. Se por um golpe de mão, que o inimigo podia e não soube dar, ela tivesse cortada a marcha nas cercanias do Rosário ou do Angico, a expedição estaria perdida.(...)     Resiste; não delibera.(...) opõe-lhe a força emperradora da inércia.     Não o combate; cansa-o. Não o vence; esgota-o.(...)[337] (...)O deputado do quartel-mestre-general, (...)(...) aquele funcionário tinha, pela permanência no cargo, a sua confiança plena. E empunhando febrilmente o lápis calculista com que floreteava a impaciência geral, permanecia, estéril, na Favela; somando, subtraIndo, multiplicando e dividindo; pondo em equação a fome; discutindo estupendas soluções sobre cargueiros fantásticos; diferenciando a miséria transcendente; arquitetando fórmulas admiravelmente abstratas com sacos de farinha e malas de carne seca; idealizando comboios...

          OUTRO OLHAR SOBRE CANUDOS(...)[338]

Cinco mil casas ou mais! Seis mil casas, talvez! Quinze ou vinte mil almas - encafurnadas naquela tapera babilônica... E invisíveis. De longe em longe, um vulto, rápido cortava uma viela estreita; correndo, ou apontava, por um segundo, indistinto e fugitivo, à entrada da grande praça vazia, desaparecendo logo. (...)(...)     Ao cair da noite (...) o toque da Ave-Maria...

[339]                        DESÂNIMO

e como tinham, mal esvaecidas na alma, as mesmas superstições e a mesma religiosidade ingênua, vacilavam por fim ante o adversário, que se aliara à Providência.(...) Criou-se, então, a lenda depois insistentemente propalada, das balas explosivas dos jagunços. (...) Aceita ainda a hipótese de provirem os estalos do desigual coeficiente de dilatação entre os metais constituintes do projétil, expandindo-se o núcleo de chumbo mais rapidamente do que a camisa de aço, a natureza excepcional dos ferimentos afigurava-se eloquentíssima: a bala, que penetrava os corpos mal deixando visível o círculo do diminuto calibre, saía por um ro mbo largo de tecidos e ossos esmigalhados.

                 DESERÇÕES HERÓICAS

No dia 9, 20 praças do 33º deixaram os companheiros, afundando no deserto. (...) preferindo o tiro de misericórdia do jagunço àquela agonia lenta. [340](...)Uma brigada ligeira podia, impune, varrer os arredores, ir tiroteando para qualquer ponto, e voltar. O exército, não. 

(...) [342]                             V

       O ASSALTO - PREPARATIVOS 

     O comboio chegou ao alto da Favela a 13 de julho; (...) general Savaget, enfermo do ferimento recebido em Cocorobó, [343](...)Foi assaltado o pasto, a dois passos da 2ª coluna, e capturados alguns animais de montaria e tração, sem que os retomasse o 30º de infantaria, (...)(...)[345] (...) (...)O inimigo mesmo parecia ciente da resolução heróica: cessara os tiroteios irritantes. Acolhia-se em baixo, timorato e quedo, vencido de véspera. (...)

                             PLANO DE ASSALTO

(...)      Entravam em ação três mil trezentos e quarenta e nove homens repartidos em cinco brigadas; (...)(...)[346] com andante do 5º de polícia, que ele mesmo formara com os tabaréus robustos escolhidos nos povoados de S. Francisco; (...)(...)

                                   O RECONTRO

     As colunas abalaram, no dia 18, ainda alta madrugada. (...)(...)

[351]             TOCAIAS DOS JAGUNÇOS

[352](...)

Conquistara um subúrbio diminuto da cidade bárbara (...) A retaguarda, coalhada de feridos e mortos, dava a impressão emocionante de uma derrota. (...)(...)[353] (...) A batalha (...)já gravemente feridos (...) o coronel Carlos Teles (...)(...) na penumbra dos cômodos estreitos e sem janelas (...) Soldados possantes que vinham resfolegando de uma luta de quatro horas, caíram alguns mortos por mulheres frágeis. (...)

[354]            NOVA VITÓRIA DESASTROSA

(...)Canudos, no seu crescimento surpreendedor, desbordara da depressão, em que se formara, para o viso das colinas envolventes.     A tropa ocupara um desses subúrbios. A cidadela propriamente dita, com a sua feição original e bárbara, não fora a bem dizer atingida. (...) (...)[355] O jagunço ali estava - indomável - desafiando um choque braço a braço. Não o atemorizava a proximidade dos contendores, profissionais da guerra, que lhe enviavam as gentes das terras grandes. Eles estavam-lhe, agora, ao lado, a dois passos, acotovelando-o, acolhidos sob os mesmos tetos de taipa e aumentando, de repente, em poucos minutos, de três mil almas, a população do lugarejo sagrado. Mas não lhe haviam modificado sequer o primitivo regímen. Ao empardecer do dia, o sino da igreja velha batia, calmamente, a Ave-Maria; e, logo depois, do seio amplíssimo da outra, ressudava o psalmear merencório das rezas...

(...)                                     BAIXAS

(...) a expedição (...) Tivera cerca de mil homens, 947, entre mortos e feridos (...) Três comandantes de brigadas, (...), estavam fora de combate. (...) ferido em pleno peito numa carga de lanceiros, concentrara os últimos alentos no último arremesso da lança caindo, em cheio, sobre o inimigo, feito um dardo (...) fora abatido ao mesmo tempo que o cavalo, no topo da escarpa, rolando por ela abaixo em queda prodigiosa de titã fulminado; (...)[356] A luta pela República, e contra os seus imaginários inimigos, era uma cruzada. Os modernos templários, se não envergavam a armadura debaixo do hábito e não levavam a cruz aberta nos copos da espada, combatiam com a mesma fé inamolgável. Os que daquele modo se abatiam à entrada de Canudos tinham todos, sem excetuar um único, colgada ao peito esquerdo em medalhas de bronze, a efígie do marechal Floriano Peixoto e, morrendo, saudavam a sua memória - com o mesmo entusiasmo delirante, com a mesma dedicação incoercível e com a mesma aberração fanática, com que os jagunços bradavam pelo Bom Jesus misericordioso e milagreiro...

        NOS FLANCOS DE CANUDOS

A situação, porém, resolvera-se pela inércia dos adversários. (...)[357] Ora a expedição reduzida a pouco mais de três mil, homens válidos, (...)                 

         POSIÇÃO CRÍTICA(...)

     Distribuída a última ração - um litro de farinha para sete praças e um boi para um batalhão - restos do comboio salvador, (...)[358](...)     "Um inimigo habituado à luta regular que soubesse tirar partido de nossas desvantagens táticas, não teria certamente deixado passar esse momento em que a vingança e a desforra teriam a consequência da mais requintada selvageria."(* Coronel Dantas Barreto - Última expedição contra Canudos)

[359]              NOTAS DE UM DIÁRIO

[360] (...) Enreda-se o conflito braço a braço, carabinas abocadas aos peitos, e generaliza-se num crescendo apavorante. Vibram de ponta a ponta dezenas de cornetas. Toda a tropa forma para a batalha. O ataque visava cortar a retaguarda da linha da frente. Um movimento temerário. Cortando-a cairiam sobre o quartel-general, e poriam [361] os sitiantes entre dois fogos. Era um plano de Pajeú, que, tendo deposto os demais cabecilhas, assumirá a direção da luta. (...)O impetuoso Pajeú baqueia mortalmente ferido. (...)(...)imprimindo na campanha uma monotonia dolorosa. (...)

[363]                      VI

      PELAS ESTRADAS, OS FERIDOS 

20 páginas desta edição de retirada 

que começa dessa vez a "gozar" (glosando) Eça...

(...)(...) o refluxo da campanha. Golfava-o o morro da Favela. Diariamente, em sucessivas levas, abalaram dali, em inúmeros bandos, todos os desfalecidos e todos os inúteis, em redes de caruá ou giráos de paus roliços os enfermos mais graves, outros cavalgando penosamente cavalos imprestáveis e rengues, ou apinhados em carroças ronceiras. A grande maioria, a pé.(...)     Era à entrada do Estio. (...)(...)[364] Assim, a partir das dez horas da manhã, estacionavam as caravanas nos lugares menos próprios ao descanso, à beira dos cursos de água ganglionados em poças esparsas, onde a umidade remanente alentava a folhagem das caraíbas e baraúnas altas; junto aos tanques ainda cheios, perto dos sítios em abandono; ou, em falta destes, à fímbria das ipueiras rasas salpintando pequenas várzeas sombreadas pelas ramagens virentes dos icozeiros. (...)(...) - enquanto outros, aguilhoados pela sede, mal extinta nas águas impuras das almácegas sertanejas e impelidos pela fome, torcendo o rumo, batiam afanosamente os desvios multívios das caatingas apelando para os recursos da flora singular transbordante de frutos e de espinhos - e desgarravam, dasarraigando tubérculos de umbuzeiros, sugando os cladódios túmidos dos cardos espinescentes, catando os últimos frutos das árvores desfolhadas.     Deslumbravam-se do inimigo. A ferocidade do jagunço era balanceada pela selvatiqueza da terra.(...) a tortuosa vereda do Rosário, encheu-se de foragidos. (...)(...)

[365] estereografando, indelével, o rastro das expedições anteriores...

           O  E S T  E R E Ó G R A F O  D O S  S E R T Õ E S antes, como que pedante, pernóstico, 

em A Luta - talvez pela urgência de reportar tudo - como música ou poesia concreta, estereografando o rastro, qual Graciliano, que joão cabral de melo neto, quão joão que graciliano - euclidiano

(...)(...) Morros enterroados, formas evanescentes de montanhas roídas pelos aguaceiros fortes e repentinos, tendo às ilhargas, à mostra, a romper, a ossatura íntima da terra repontando em apófises rígidas, ou desarticulando-se em blocos amontoados, em que há traços violentos de cataclismos; plainos desnudos e chatos feito llanos desmedidos; e, por toda a parte, mal reagindo à atrofia no fundo das baixadas úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, esgalhada num baralhamento de ramos retorcidos - reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas...     Choupanas paupérrimas, portas abertas para o caminho, surgiam em vários trechos, ainda não descolmadas, mas vazias, porque as deixara o vaqueiro que a guerra espavorira ou o fanático que endireitara para Canudos.(...)[366] (...)     Não raro, alguns bois - rebotalhos de manadas grandes tresmalhadas pelo alvoroço da guerra - ao lobrigarem, de longe, a azáfama que movimentava de novo a paragem a que se haviam aquerenciado, o rancho tranquilo onde tinham sofrido a primeira ferra, para lá abalavam velozmente. Vinham urrando, numa alegria ruidosa e forte. Buscavam o vaqueiro amigo que os campeara outrora e iria, de novo, ao som das cantigas conhecidas ou ao toar tristonho do aboiado, levá-los às soltas prediletas, aos logradouros fartos e às aguadas frescas.     Irrompiam, troteando, no terreiro...    E tinham recepção cruel. (...)o êxodo...(...)     Torturavam-nos alucinações cruéis. A deiscência das vagens das catingueiras, abrindo-se com estalidos secos e fortes, soava-lhes feito percussão de gatilhos ou estalos de espoleta, dando a ilusão de súbitas descargas de alguma algara noturna repentina; e as grinaldas fosforescentes dos cunanans irradiavam, ao longe, esbatidas nas sombras, como restos de fogueiras, em torno às quais velassem em silêncio, expectantes, tocaias, inumerosas...(...) Alguns, depois dos primeiros passos, fraquejavam de vez. Deixavam-se ficar, exaustos, pelas curvas do caminho. Ninguém lhes dava pela falta. Desapareciam, eternamente esquecidos, agonizando no absoluto abandono. Morriam. E dias, semanas e meses sucessivos, os viandantes, passando, viam-nos na mesma postura: estendidos à sombra mosqueada de brilhos das ramagens secas, o braço direito arqueando-se à fronte, como se resguardasse do sol, com a aparência exata de combatentes fatigados, descansando. Não se decompunham. A atmosfera ressequida e ardente conservava-lhes os corpos. Murchavam apenas, refegando a pele, e permaneciam longo tempo à margem dos caminhos - múmias aterradoras revestidas de fardas andrajosas...     Por fim, não impressionavam. Quem se aventura nos estios quentes à travessia dos sertões do norte, afeiçoa-se a quadros singulares. A terra, despindo-se de toda a umidade - numa intercadência de dias adustivos e noites quase frias - ao derivar para o ciclo das secas parece cair em vida latente, imobilizando apenas, sem os descompor, os seres que sobre elas vivem. Realiza, em alta escala, o fato fisiológico de uma existência virtual, imperceptível e surda - energias encadeadas, adormecidas apenas, prestes a rebentarem todas, de chofre, à volta das condições exteriores favoráveis, originando ressurreições improvisas e surpreendedoras. E como as árvores recrestadas e nuas que, à vinda das primeiras chuvas, se cobrem, exuberando seiva, de flores, sem esperar pelas folhas, transmudando em poucos dias aqueles desertos em prados - as aves que tombam mortas dos ares estagnados, a fauna resistente da caatinga que se aniquila, e o homem que sucumbe à insolação fulminante, parecem, jazendo largo tempo intactos, sem que os vermes lhes alterem os tecidos, esperar também pela volta das quadras benfazejas. Por ali ficam, patenteando, por vezes, singulares aparências de vida: as sussuaranas - que não puderam vingar, demandando outras paragens, o círculo incandescente das secas - contorcidas, garras fincadas no chão, como em saltos paralisados; e, - à beira das cacimbas extintas - o pescoço alongado, procurando um líquido que não existe, os magros bois, mortos há três meses[368] ou mais, caídos sobre as pernas ressequidas, agrupando-se em manadas imóveis.  (...)Tendo, na maior parte, por adaptação, copiado os hábitos do sertanejo, nem os distinguia o uniforme desbotado e em tiras. E calçando alpercatas duras; vestindo camisas de algodão; sem bonés ou barretinas, cobertos de chapéus de couro, figuravam famílias de retirantes demandando em atropelo o litoral, fustigados pela seca.(...)Monte-Santo[369] Era ainda o deserto. O vilarejo morto, vazio, desprovido de tudo, mal os abrigava por um dia. Havia-o deixado a população, caindo na caatinga, consoante o dizer dos matutos, fugindo, amedrontada por igual do jagunço e do soldado. (...) De sorte que o vilarejo, com as suas vielas tortas, condecoradas de nomes sonoros - rua Moreira César! rua Capitão Salomão! - era uma agravante na região ingrata; era o deserto metido entre paredes e afogado na trama de alguns becos imundos, cheios de detritos e da farragem repugnante dos batalhões que ali tinham acampado,   

[370]      PRIMEIRAS NOTÍCIAS CERTAS

(...)

Salvador

     Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e carcaças, que vinha rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha.(...) [372] Aqueles homens que chegavam dilacerados pelas garras do jagunço e pelos espinhos da terra, eram o vigor de um povo posto à prova do ferro, à prova do fogo, à prova da fome.

                                         BAIXAS

(...)     De 25 de junho, em que trocara os primeiros tiros com o inimigo, até 10 de agosto, tivera a expedição duas mil e quarenta e nove baixas.(...)

[376]                          UM LANCE ÉPICO(...) 

Como um animal fantástico, prestes a um bote repentino, o canhão Withworth, a matadeira, empina-se no reparo sólido. Volta para Belo Monte a boca truculenta e rugidora que tantas granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas. Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do Sol, ajaezando-a de lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da clareira. Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um traz uma alavanca rígida. Ergue-a num gesto ameaçador e rápido...     E a pancada bate, estrídula e alta, retinindo...

[378]                        VII

                 OUTROS REFORÇOS 

Não se compreendia que batidos em todas as ordens do dia - heroicamente escritas - eles, tendo ainda franca a fuga para os sertões de S. Francisco, onde não havia descobri-los, esperassem, pertinazes, no arraial, que se lhes fechassem, pelo complemento do assédio, as derradeiras saídas. (...)      Contravinham, porém, juízos mais animadores. O coronel Carlos Teles, em carta dirigida à Imprensa, afirmou de maneira clara o número reduzido de jagunços - duzentos homens válidos, talvez sem recursos nenhuns - abastecidos e aparelhados apenas do que haviam tomado às anteriores expedições. (...)

                            A BRIGADA GIRARD[378](...)[379]

AO INVÉS DE AUXILIAR ESTA TROPA TORNOU-SE UMA GENTE DEBILITANTE. (...) DEIXARA EM QUEIMADAS UM GENERAL, UM TENENTE-CORONEL E MAIS ALGUNS OFICIAIS - DOENTES. DeiXARA EM MONTE-SANTO UM CORONEL E MAIS ALGUNS OFICIAS DOENTES...

                         HEROÍSMO ESTRANHO

afinal o medo teve ali os seus grandes heróis, revelando a coragem estupenda de dizer a um país inteiro que eram cobardes.(...) as primeiras turmas de feridos e fora sulcada pelo assombro da guerra. (...) vendo diminuídos os víveres que levava e repartia com as sucessivas turmas de feridos encontrados, chegando exausta e esmorecida a Monte-Santo.

[380]           EM VIAGEM PARA CANUDOS

     Tomou para Canudos onde era ansiosamente esperada, a 10 de agosto, despida inteiramente do esplêndido aparato hierárquico em que nascera.  (...) A marcha foi difícil e morosa. Desde Queimadas lutava-se com dificuldades sérias de transporte. Os cargueiros, animais imprestáveis, velhos e cansados muares refugiados das carroças da Bahia e tropeiros improvisados - rengueavam, tropeçando pelos caminhos, imobilizando os batalhões, e remorando a avançada.(...)     Neste comenos dizimava-a a varíola. (...)(...)A boiada estourou, mergulhando na caatinga...(...)

de cento e dois bois que comboiava restaram apenas onze (...) entrando afinal em Canudos, onde os enrijados campeadores (...) a acolheram com a denominação de "Mimosa", nome, que, entretanto, mais tarde, os seus bravos oficiais fizeram que se apagasse, a exemplo do primeiro título.

a força avassaladora reunida para vencer os sertanejos, mais de 5 000 homens, duas colunas, Matadeira e tudo, acabou, uma vez em Canudos, atrapalhada e impotente como as expedições anteriores.para lá afluíram reforços que montaram a 3 000 homens suplementares reunidos às pressas por todo o país.

O ministro da Guerra decidiu que sua missão seria comprar burros mansos e organizar comboios, para levar comida aos combatentes.

[382]                       VIII

                OUTROS REFORÇOS 

uma nova divisão, arrebanhando os últimos batalhões dispersos pelos Estados, capazes de mobilização rápida. E, para pulsear de perto a crise, resolveu enviar para a base de operações um de seus membros, o secretário de Estado dos Negócios da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt.(...)

     As tropas confluíam do extremo norte e do extremo sul, acrescidas de corpos policiais de S. Paulo, Pará e Amazonas.

Euclides da Cunha parte de São Paulo para Canudos, adido ao Estado Maior do Ministro da Guerra, na condição de repórter (INBEDED). Ele viu Canudos pela primeira vez a 19 de setembro de 1897.

 (...)[383}(...)     Todo o mês de agosto gastou-se em mobilizá-los. (...)     Os batalhões de linha, além de desfalcados, como o indicam os números acima, reduzidos a quase duas companhias, vinham desprovidos de tudo, sem os mais simples apetrechos bélicos - à parte as espingardas velhas e o fardamento ruço, que haviam servido na recente campanha federalista do Sul.

                   O MARECHAL BITTENCOURT

(...)

(...) Militar às direitas, seria capaz - e demonstrou-o mais tarde ultimando tragicamente a vida -

Festejadas, as tropas retornavam do triste arraial baiano. Em 5 de novembro o presidente foi assistir ao desembarque de um contingente que regressava. Saindo da multidão um nordestino rompeu o círculo das autoridades e alvejou Prudente de Morais com uma garrucha, que negou fogo. Mãos e braços surgiram prestes para subjugá-lo. Caído, o anspeçada Marcelino Bispo conseguiu levantar-se e arremeter contra o presidente com um punhal. Machado Bittencourt cresceu sobre ele e recebeu no peito os golpes destinados ao chefe de Estado. Três vezes apunhalado, morreu instantes depois.

(...)Fora disto era um nulo. Tinha o fetichismo das determinações escritas. (...)(...)     A República fora-lhe acidente inesperado no fim da vida. Não a amou nunca. (...)

[385]                QUADRO LANCINANTE

desde os pântanos do Paraguai às caatingas de Canudos...

.um velho, um cabo de esquadra, veterano de trinta e cinco anos de fileira. Uma vida batida a couce de armas desde os pântanos do Paraguai às caatingas de Canudos...[386] (...)O que era preciso combater a todo o transe, vencer, não era o jagunço, era o deserto. Fazia-se imprescindível dar à campanha o que ela ainda não tivera: uma linha e uma base de operações. Terminava-se por onde devia começar-se. (...)O que era preciso combater a todo o transe, vencer, não era o jagunço, era o deserto. Que aqui e neste contexto tem outro significado     Nos últimos dias de agosto organizara-se, afinal, definitivamente, um corpo regular de comboios, atravessando continuamente os caminhos e ligando de modo efetivo, com breves intervalos de dias, o exército em operações a Monte-Santo.(...) as causas do insucesso em grande parte repousavam no insulamento em que cegamente se encravavam os expedicionários perdendo-se na região estéril, isolando-se adiante do inimigo em espetaculosas diligências policiais, onde não havia rastrear-se os mínimos preceitos de estratégia.as causas do insucesso em grande parte repousavam no insulamento em que cegamente se encravavam os expedicionários perdendo-se na região estéril     O marechal Bittencourt fez, pelo menos, isto: transmudou um conflito enorme em campanha regular.

[387]  COLABORADORES PROSAICOS DEMAIS

(...)

(...) aquela campanha cruenta e na verdade dramática, só tinha uma solução, e esta singularmente humorística.     Mil burros mansos valiam na emergência por dez mil heróis. (...)(...) implicava com o lirismo patriótico e doía, feito um epigrama malévolo da História (...). O mais caluniado dos animais ia assentar, dominadoramente, as patas entaloadas em cima de uma crise, e esmagá-la...(...)     Ia entrar, em novembro, sobre aquela zona, o regímen torrencial e dele decorreriam consequências insanáveis.(...)[388](...)do exército, que, com os recentes esforços, montaria cerca de oito mil homens.(...)

                              EM CANUDOS

     Iam ainda a tempo de reanimar a expedição que até àquela data atravessara, presa aos flancos do arraial, quarenta e tantos dias de agitação perigosa e inútil.(...)[389]As duas torres da igreja nova lá estavam sobranceiras na altura, como dois mutans sinistros sobre o exército. (...) a brigada Girard, a 15 de agosto, reduzida a 892 praças e 56 oficiais; (...) Os rudes adversários deixavam-nos descer em paz as últimas abas da montanha, timbrando em lhes fazer no último passo, em baixo, no álveo do rio, uma recepção retumbante e teatral, de tiros, cortada invariavelmente de estrídulos assobios terrivelmente irônicos.(...) Recebiam, por sua vez, comboios, entrando pelos caminhos da Várzea do Ema, sem que lhos capturasse a tropa assaltante para não desguarnecer as posições ocupadas ou, consideração mais séria, evitar ciladas perigosas. (...)(...) Os três Krupps que desde 19 de julho emparcavam sobre a encosta, (...) arruinando inteiramente a igreja velha (...) em em cujo campanário não se compreendia que ainda subisse à tarde o impávido sineiro, tangendo as notas consagradas à Ave-Maria.

[390]                      O SINO DA IGREJA

(...) a 23 de agosto (..) o Withworth 32 (...) A grande peça detonou (...) derrubando os restos do campanário e fazendo saltar pelos ares, revoluteando, estridulamente badalando, como se ainda vibrasse um alarme, o velho sino que chamava ao descer das tardes os combatentes para as rezas...

                       

Aparentemente o mesmo soldado modelo da casa de taipa posa em frente às ruínas da Igreja Nova do Belo Monte, Canudos, para o fotógrafo Flávio de Barros

       FUZILARIA

     Mas, tirante este incidente, fora perdida a jornada: quebrara-se uma peça do aparelho obturador do canhão fazendo-o emudecer para sempre. (...)(...)[391] Dos vinte batalhões de infantaria que lá estavam (...)

[393]    NOVA FASE DA LUTA (...)

[396]        UMA FICÇÃO GEOGRÁFICA(...)       

Salta-se do trem, transpõe-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas e topa-se, para logo, à fímbria da praça - o sertão...     Está-se num ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma da outra.

                      FORA DA PÁTRIA 

(...) Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba deploravelmente a unidade nacional. (...) Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pitoresca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.[397](...) a missão que ali os conduzia frisava, mais fundo, o antagonismo. (...)(...) desconhecendo-a de todo, nunca a tendo visto, surpreendidos ante a própria forma da terra árida, e revolta, e brutal, esvurmando espinheiros, tumultuando em pedregais, (...)     O que ia fazer-se era (...) - uma invasão em território estrangeiro. (...)

                        EM CANUDOS 

(...)não mais se ouviam ladainhas melancólicas entre os intervalos das fuzilarias; cessavam os ataques atrevidos às linhas; (...)

[398]

              DIANTE DE UMA CRIANÇA (...)

     As mulheres eram, na maioria, repugnantes. Fisionomias ríspidas, de viragos, de olhos zanagas e maus.(...)

[399]

                      OUTRA CRIANÇA (...)

     Decididamente era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um povoado. dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos abertos à artilharia para uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas retardatários.

[400]     NA ESTRADA DE MONTE-SANTO 

(...) 

[401]

Como de uma cena de Graciliano Ramos, se em Graciliano houvesse uma cena de guerra da guerra de Canudos

     Em Cansanção atreguaram-se estas impressões cruéis. Houve por duas horas um remanso consolador. O vilarejo era um clã. Pertence a uma família única. O seu chefe, genuíno patriarca, congregara filhos, netos e bisnetos em ovação ruidosa ao marechal, o monarca, conforme bradava convicto, numa alacridade ingênua e sã, ao alevantar nos braços cansados de um labutar de oitenta anos o ministro surpreendido. (...) Antítese do facínora precoce de Queimadas, revelava, animadora, esta robustez miraculosa, esta nobreza orgânica completada por uma alma sem refolhos, tão característica dos matutos, quando os não derrancam o fanatismo e o crime. 

[402] PALIMPSESTOS ULTRAJANTES 

(...) esboço real do maior escândalo da nossa história(...)                   

EM MONTE-SANTO (...)

(...) aparência comum aos arraiais sertanejos, engrunhidos e estácionários, onde há cem anos não se constrói uma casa, a vila ampliara-se, tendo às ilhargas, branca quando sobre as chapadas, num bairro novo e maior que ela - duas mil barracas (...)

(...) e num inquirir incessante, jornalistas sequiosos de notícias (...) Pôr fim a questão primordial que até lá o atraíra (...) Diariamente quase, chegavam e volviam comboios parciais para Canudos.

Canudos Diário de uma Expedição
Euclides da Cunha escreveu 25 reportagens para o jornal A Província de São Paulo

Tanquinho, 4 de setembro de 1897Que todos os viandantes fujam destas duas casas velhas e acaçapadas em cuja frente os mandacarús esguios elevantam-se silentes e rígidos, como imensos candelabros implantados no solo, segundo a bella comparação de Humboldt.  Esse logar maldicto

Não me apedrejeis, companheiros de impiedade, poupae-me livres pensadores, iconoclastas ferozes! Violento e inamolgável na lucta franca das ideas, firmemente abroqueado na unica philosophia que merece tal nome, eu não menti às minhas crenças e não trahi a nossa fé, transigindo com a rude sinceridade do filho do sertão.

Canudos Diário de uma Expedição

Monte Santo, 6 de setembroQue diferença extraordinária em todos!Domingos Leite, um bello typo de flaneur, folgasão nos bons tempos da Escola, um devoto elegante da rua do Ouvidor - abarçou-me e não o conheci. Vi um homem extranho, de barba inculta, e crescida, rosto pallido e tostado, voz aspera, vestindo bombachas enormes, coberto de largo chapeu desabado. Está aqui desde a expedição Moreira Cesar, na faina perigosa e tremenda da engenharia militar, a traçar estradas ao deserto, correndo linhas telegraphicas, dirigindo comboios por veredas difficeis nas quaes o bacharel em mathematica teve muitas vezes de empunhar o ferrão e transformar-se em carreiro.(...)Como se muda nestas paragens! Gustavo Guabirú, outro engenheiro militar, foi uma encontrado por um contingente da força policial da Bahia em tal estado que foi preso como jagunço. E não teve meios de convencer aos do engano em que haviam caído.(...)Parece que esta natureza selvagem vae em todos imprimindo uma feição diversa.O major Martiniano, comandante da praça, um typo desempenado de soldado que sempre vi, desde os tempos acadêmicos, no Rio, de bonet atrevidamente inclinado a tres pancadas, substituiu o antigo cavaignac negro por uma barba branca. Está velho; está aqui há poucos meses.(...)

Imaginem que, enquanto o exército lhes occupa grande parte das casas e os fulmina quotidianamente, num bombardeio incessante, os fanaticos distribuem de um modo notavel a actividade, revesando-se, da linha de fogo para o campo onde cultivam mandiocas, feijão e milho!

  COMPREENDI O GÊNIO SOMBRIO E PRODIGIOSO DE DANTE

[404]                  EM CANUDOS 

o mês de setembro     A 6, sucesso de maior monta: caíram, uma após outra, as torres da igreja nova. O caso ocorrera depois de seis horas consecutivas de bombardeio. E fora inteiramente imprevisto.(...) um engano na remessa (...) balas rasas de Krupp pouco eficazes no canhoneio, resolvera-se gastá-las logo, (...)O exército ficara, afinal, livre das seteiras altíssimas de onde os fulminavam os sitiados, porque as duas torres assoberbando toda a linha do assédio, reduziam por toda a banda os ângulos mortos das trincheiras.

(...) [406]           ESTRADA DE CALUMBI (...)[409]

Lagoa do Cipó, , onde alvejavam ossadas, recordando os morticínios da expedição Febrônio. (...)     Canudos tinha agora circuitando-o do extremo norte ao sul, na Fazenda Velha, e daí para o ocidente, na ponta da estrada do Cambaio, um desmedido semicírculo de assédio.     Restavam apenas aos jagunços, no quadrante do noroeste, as veredas do Uauá e Várzea do Ema.     Prefigurava-se próximo o termo da campanha.

[410]                            II

       MARCHA DA DIVISÃO AUXILIAR (...)

[411]                 CAXOMONGÓ (...)

Os dois corpos do Pará, (...) e o do Amazonas, com o uniforme característico que adotara desde a Bahia: cobertos, oficiais e soldados, de grandes chapéus de palha de carnaúba, desabados, dando-lhes aparência de numeroso bando de mateiros.968 combatentes

[413]     ASPECTO DO ACAMPAMENTO 

     O acampamento (...) Era como um outro arraial despontando à ilharga de Canudos.sucediam-se pequenas casas de aspecto original e festivo - feitas todas de folhagens, tetos e paredes verdes de ramas de joazeiros, de forma singularmente imprópria aos habitadores. Mas eram as únicas ajustáveis ao meio. A canícula abrasante, transmudando as barracas em fornos adurentes, inspirara aquela arquitetura bucólica e primitiva.     Nada que denunciasse, ao primeiro lance de vistas, a estadia de um exército. Tinha-se a impressão de chegar em vilarejo suspeito dos sertões. (...)

                                                                                     foto de Flávio de Barros, Canudos, 1897

[414](...)

arraial. Este surpreendia-os. Afeitos às proporções exíguas das cidades sertanejas, tolhiças e minúsculas, assombrava-os aquela Babilônia de casebres, avassalando colinas.

                           CANUDOS

 - foram uma a uma contadas depois - cinco mil e duzentas vivendas[415](...)um longo e indefinível choro; assonância dolorosíssima de clamores angustiosos, fazendo que o canhoneio cessasse à voz austera e comovida daquele comandante...entre milhares de soldados e milhares de mulheres - entre lamentações e bramidos, entre lágrimas e balas - (...) igreja velha, que ardera toda.[416](...)Os soldados da linha  negra, na tranqueira avançada do cerco, travavam, às vezes, noite velhas, longas conversas com os jagunços. [417]     Os soldados do 5º de polícia, mau grado o ilusório abrigo dos espaldões de terra, que os acobertavam, matavam o tempo em descantes mitigando saudades dos rincões de S. Francisco, (...) folguedo sertanejo, ao toar langoroso das tiranas, aos rasgados nos machetes, como se fosse aquilo uma rancharia grande de tropeiros felizes, sesteando.

       O CHARLATANISMO DA CORAGEM  (...)

Narravam aos companheiros, (...) um alferes, por exemplo, morrendo embuchado, ao desjejuar com punhados de farinha após três dias de fome.[418]àquele estrangulamento vagaroso, sem a movimentação febril e convulsiva de uma batalha...

[419]                             III

              EMBAIXADA AO CÉU

atravessando vasto trato de um território que é o núcleo onde se ligam e se confundem os fundos dos sertões de seis Estados, da Bahia ao Piauí.(...) Haviam desaparecido os principais guerrilheiros (...) Por outro lado, escasseavam os mantimentos e acentuava-se cada vez mais o desequilíbrio entre o número de combatentes válidos, continuamente diminuindo, e o de mulheres, crianças, velhos, aleijados e enfermos (...)[420] Podia fugir. (...) Não o quis. De moto próprio todos os seres frágeis e abatidos, certos da própria desvalia, se devotaram a quase completo jejum, em prol dos que os defendiam.(...) Revelaram-na depois a miséria, o abatimento completo e a espantosa magreza de seiscentas prisioneiras. (...) origem daquele estoicismo admirável. É simples.     Falecera a 22 de agosto Antônio Conselheiro. [Esta data foi registrada desde a 1ª edição e nunca alterada em revisões feitas pelo autor. A estatuída para a morte, a partir do laudo do médico legista que examinou o corpo externamente na exumação feita no dia 6 de outubro, é 22 de setembro.]o seu organismo combalido dobrou-se ferido de emoções violentas. (...) Requintou na abstinência costumeira, levando-a a absoluto jejum. E imobilizou-se certo dia, de bruços, a fronte colada à terra, dentro do templo em ruínas.(...)[421](...)no dia 24 a situação mudou.(...)

          COMPLEMENTO DO ASSÉDIO  (...)

um subúrbio novo, as "Casas Vermelhas", ereto depois do fracasso da 3ª expedição, e nele edificações mais corretas, cobertas, algumas, de telhas.(...) 

[423]        CENÁRIO DA TRAGÉDIA(...)

combustão lenta e inextinguível e rolando vagarosamente sobre os tetos, os novelos do fumo, compactos, em cúmulos(...)[424](...)estirando-se até o caminho do Cambaio, uma linha de bandeirolas vermelhas.     Estava bloqueado Canudos.(...)     A insurreição estava morta.

[425]               ÚLTIMOS DIAS 

na "cidade da utopia evangélica"

[427] I     O ESTREBUCHAR DOS VENCIDOS 

(...)     A constrição de milhares de baionetas circulantes estimulara-o, enrijara-o; e dera-lhe, de novo, a iniciativa nos combates. Estes principiaram desde 23, insistentes como nunca, sulcando todos os pontos, num ritmo girante, estonteador, batendo, trincheira por trincheira, toda a cercadura do sítio.(...)[428](...)     Não se compreendia que os jagunços tivessem ainda, após tantos meses de luta, tanta munição de guerra. E não a poupavam. Em certas ocasiões, no mais agudo dos tiroteios, pairava sobre os abarracamentos um longo uivar de ventania forte.(...)[430]

(...)                        A DEGOLA

     Chegando à primeira canhada encoberta, realizava-se uma cena vulgar. Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a sofreguidão do assassino repulsava esses preparativos lúgubres. O processo era, então, mais expedito: varavam-na, prestes, a facão.      Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um destripamento rápido...      Tínhamos valentes que anseiavam por essas covardias repugnantes; tácita e explicitamente sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três séculos de atraso, os sertanejos não lhes levavam a palma no estadear idênticas barbaridades.

[431]                         II

          DEPOIMENTO DO AUTOR 

(...)     Começara sob o esperear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de aguentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. (...)[433](...)     Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não se trucidavam mulheres e crianças. (...)[434](...)Aquilo não era uma campanha, era uma xarqueada.(...)

               UM GRITO DE PROTESTO 

(...)

     O atentado era público. Conhecia-o, em Monte-Santo, o principal representante do governo, e silenciara.

a também chamada insurreição de Canudos ocorreu logo depois da Revolução Federalista - quando o caudilho desvairado Gumercindo Saraiva saiu da fronteira uruguaia, atravessou Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, chegando até Jaguariaíva, para atacar São Paulo "sem deixar prisioneiros", degolando os que fazia pelo caminho e os abandonando, sem sepultura, com o signo gaúcho da "corbata colorada", boca fechada e língua pendurada saindo pelo corte da garganta.a revolta federalista deixou pelo menos dez mil mortos - muitos por degola.As vítimas eram mortas da mesma forma como se abatiam os carneiros: forçadas a se ajoelhar ante seu algoz, tinham a cabeça colocada entre as pernas do executor, que então lhes rasgava a carótida com um súbito golpe de faca. os legalistas degolaram antes e mais do que os federalistas - mas sempre que possível houve vingança. Os dois episódios mais infames foram os massacres do Rio Negro e do Boi Preto.

               A SANGUE FRIO                                    sabres convenientemente amolados

Alvim Martins Horcades, estudante de medicina de Salvador que esteve na guerra com o corpo médico,  descreveu as "gravatas vermelhas" de Canudos num livro publicado antes de Os Sertões (Descrição de uma Viagem a Canudos), e com uma crueza a que Euclides da Cunha não chegaria."Belo exemplo de civismo e progredimento social! Levar-se homens de braços atados para trás, como criminosos de lesa-majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora de uma ave, e cortar-lhes com o assassino ferro o pescoço, deixando cair a cabeça sobre o solo - é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio, como se fora uma ação nobilitante.Acontecia certas ocasiões estarem muitos daqueles miseráveis dormindo e serem acordados para se lhes dar a morte. Depois de feita a chamada, organizava-se aquele batalhão de mártires, de braços atados, arrochados um ao outro, tendo cada qual dois guardas e seguiam... seguiam para ainda uma vez provar cabalmente a sua coragem intimorata. Caminhavam um pequeno pedaço de terra e lá ia sendo assassinado um após o outro. Eram encarregados desse serviço dois cabos e um soldado, a mando do sanguinário alferes Maranhão, os quais, peritos na arte, já traziam os seus sabres convenientemente amolados, de maneira que, ao tocarem a carótida, o sangue começava a extravasar-se, sendo então decepada toda aquela região, de modo a produzir-se um jorro de sangue, tendo pouco mais ou menos 25 centímetros de espessura, em circunferência."No início, segundo Horcades, as execuções eram feitas à noite, mas depois se tornaram "cousa naturalíssima", e "eram eles supliciados mesmo ao clarão dourado dos raios solares, e as turmas duplicaram, triplicaram e quadruplicaram".

 

O caso do Conselheiro é apenas um entre muitos na História do Brasil em que se adota a prática de cortar cabeças. Zumbi dos Palmares teve a cabeça cortada, assim como Tiradentes e o próprio líder da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, Gumercindo Saraiva. Idem o cangaceiro Lampião, idem os crentes da comunidade do Caldeirão, um fenômeno parecido com o de Canudos, ocorrido no Ceará nos anos 30 deste século. De certa forma, a galeria dos vencedores da História do Brasil confunde-se com uma galeria de astros da degola

Ariano Suassuna descolou uma imagem muito nítida desse ciclo: As rebeliões de Canudos, Contestado e Palmares foram momentos em que o Brasil real levantou a cabeça e o Brasil oficial cortou.

[436]                           III

       TITÃS CONTRA MORIBUNDOS

(...)o general-chefe não encobria o propósito de não precipitar os acontecimentos num dispêndio inútil de vidas, quando a rendição em poucos dias era inevitável. (...)[437](...)adversários que desviviam há três meses, famintos, baleados, queimados, dessangrados gota a gota, e as forças perdidas, e os ânimos frouxos, e as esperanças mortas, sucumbindo dia a dia num esgotamento absoluto.(...)

        CONSTRINGE-SE O ASSÉDIO

a parte do arraial em poder daqueles reduzia-se a menos de terço - à orla setentrional da praça e casebres junto à igreja.     Onze batalhões (...), mais de dois mil e quinhentos homens, tinham-se apoderado, nos últimos dias, de cerca de duas mil casas e comprimiam os sertanejos, (...)     Eram cinco mil soldados, em números redondos, excluídos os que permaneciam de guarda ao acampamento e guarnecendo a estrada de Monte-Santo.     A população combatida tinha, ao invés das linhas frouxas de um assédio largo, um círculo inteiriço de 20 batalhões; e amoitava-se em menos de quinhentos casebres, ao fundo da igreja, na última volta do rio.(...)

[442]                         IV

      PASSEIO DENTRO DE CANUDOS

A 28 de setembro(...)[447]     Contemplava-se o arraial em baixo. Modificara-se-lhe, afinal, o aspecto - sombreado de largas manchas escurentas, de incêndios; eriçado de madeiramentos varando pelos rombos dos tetos'tumultuando em montões de argila - num esmagamento completo, arruinado, queimado, devastado...     Apenas estreita fímbria da face norte da praça e o núcleo de casebres junto à latada e à retaguarda da igreja, se figuravam intactos. Mas eram em número diminuto, quatrocentos e talvez, comprimidos em área reduzida. E os que neles se abrigavam certo não suportariam por uma hora um assalto de seis mil homens.     Valia a pena tentá-lo.

[448]                             V

                      O ASSALTO

(...)(*) Segundo os mapas dos batalhões havia, no dia 30 de setembro, cinco mil oitocentos e setenta e um homens sob as armas.(...)

[449]                   O CANHONEIO

1. de outubro

Canudos Diário de uma Expedição 1º de outubro de 1897

Durante quarenta e oito minutos os canhões da "Sete de Setembro" (...) E durante todo esse tempo sob uma avalanche pesadíssima de ferro, nem uma voz se alteou na zona fulminada, imersa tôda numa quietude pasmosa, inconceptível quase; nem um vulto correndo estonteado pelas vielas estreitas e tortuosas, nem a mais leve agitação patenteavam a existência de sêres ali dentro.

[450]          RÉPLICA DOS JAGUNÇOS

(...)[451](...)Do alto da Sete de Setembro partiu o sinal do comando-chefe, e logo depois o toque de avançar para o 5º da Bahia. Lançava-se o jagunço contra o jagunço.

[452]                      BAIXAS

     Ao fim de três horas de combate, tinham-se mobilizado dois mil homens sem efeito algum. (...)

[453]                  A DINAMITE

[454] e dez meses de combates, e cem dias de canhoneio contínuo; (...)(...)

[456]        NO HOSPITAL DE SANGUE(...)

reproduziam-se em todas as linhas os toques das cornetas, determinando as cargas; e estas realizavam-se, sucessivas, rápidas, impetuosas - pelotões, batalhões, brigadas, vagas de metal e flamas, fulgurando, rolando, arrebentando e detonando de encontro a represas intransponíveis. [457](...)     Por fim, às duas horas da tarde, se paralisou inteiramente o assalto; (...)     O combate fora cruento e estéril. Desfalcara-os de quinhentos e sessenta e sete lutadores, sem resultado apreciável.  

[458]          ANTÔNIO, O BEATINHO

     Um deles era Antônio, o "Beatinho", acólito e auxiliar do Conselheiro. Mulato claro e alto, excessivamente pálido e magro, (...)

[459]        MORTE DO CONSELHEIRO

agravando-se antigo ferimento, que recebera de um estilhaço de granada atingindo-o quando em certa ocasião passava da igreja para o Santuário, morrera a 22 de setembro, de uma disenteria, uma caminheira - expressão horrendamente cômica que pôs repentinamente um burburinho de risos irreprimidos naquele lance doloroso e grave.(...)        Nessa ocasião interveio o outro prisioneiro, que até então permanecera mudo.     Viu-se, pela primeira vez, um jagunço bem nutrido e destacando-se do tipo uniforme dos sertanejos. Chamava-se Bernabé José de Carvalho e era um chefe de segunda linha.     Tinha o tipo flamengo, lembrando talvez, o que não é exagerada conjectura, a ascendência de holandeses que tão largos anos por aqueles territórios do norte trataram com o indígena.     Brilhavam, varonis, os olhos azuis e grandes; o cabelo alourado revestia-lhe, basto, a cabeça chata e enérgica.

[460]                PRISIONEIROS

O Beatinho voltou, passada uma hora, seguido de umas trezentas mulheres e crianças e meia dúzia de velhos imprestáveis. (...)     O Beatinho dera - quem sabe? - um golpe de mestre. Consumado diplomata, do mesmo passo poupara às chamas e às balas tantos entes miserandos e aliviara o resto dos companheiros daqueles trambolhos prejudiciais.(...) Nem a exclui a circunstância de ter voltado o asceta ardiloso que a engenhara.(...)[461] (...) contraproducente compensação a tão luxuosos gastos de combates, de reveses e de milhares de vidas, o apresamento daquela caqueirada humana - do mesmo passo angulhenta e sinistra; entre trágica e imunda, passando-lhes pelos olhos, num longo enxurro de carcaças e mulambos...

                          

(...) mulheres, sem-número de mulheres, velhas espectrais, moças envelhecidas, velhas e moças indistintas na mesma fealdade, escaveiradas e sujas, filhos escanchados nos quadris desnalgados, filhos encarrapitados às costas, filhos suspensos

aos peitos murchos, filhos arrastados pelos braços passando; crianças, sem número de crianças; velhos, sem-número de velhos; raros homens, enfermos opilados, faces túmidas e mortas, de cera, bustos dobrados, andar cambaleante.

                                            (...)[462] (...)

sobressaía um traço de uniformidade rara nas linhas fisionômicas mais características. Raro um branco ou um negro puro. Um ar de família em todos delatando, iniludível, a fusão perfeita das três raças.(...)[463](...)     A noite de 2 entrou, ruidosamente, sulcada de tiroteios vivos.

[464]                       VI

                           O FIM 

     Não há relatar o que houve a 3 e 4.(...)

numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, perdispunham-se a um suicídio formidável.

No dia 3 de outubro de 1897 uma bandeira branca foi erguida entre as ruínas de Canudos. Dois jagunços - um deles era Antônio Beato, "chefe da polícia do arraial"- foram negociar com o Exército a rendição de 300 mulheres, velhos e crianças.

No dia 3 os combates reiniciaram e no dia 5 enfim o Exército entrou em Canudos:

(...)[465] 

             CANUDOS NÃO SE RENDEU      

     Fechemos este livro.    Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. (...)(...)(...) No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

                   O CADÁVER DO CONSELHEIRO

(*) Trecho da parte de combate do comandante da 1ª coluna: "... pelo que ordenei que se retirasse daquela cova, com todo o cuidado, o defunto, e o levassem para a praça e assim se poder melhor verificar a identidade de pessoa: tendo-se reconhecido ser o do famigerado e bárbaro Antônio Vicente Mendes Maciel (vulgo Bom Jesus Conselheiro), como consta da ata, lavrada; mandei-o fotografar para terem a certeza de ser ele, aqueles que o conheceram."

                      

[466]

Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas no peito, rosto tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios de terra - mal o reconheceram os que mais de perto o haviam tratado durante a vida.

Até hoje não se sabe o que o matou: estilhaços de granada, parada cardíaca, problemas gastrointestinais provocados pela má alimentação, desgosto profundo, pura premonição?

(...)     Restituiram-no à cova. Pensaram, porém, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita - e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sangue, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores...

       

[467]            NOTAS À 5ª EDIÇÃO

(...) este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiquezas[468]Neste salto mortal de 466 páginas[469]E compreendo que Antônio Conselheiro repontasse como uma "integração de caracteres diferenciais, vagos e indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão" - e não como simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento. caatinga (mato branco) é o de um cerrado rarefeito e tolhiço; e que o da catanduva (mato mau, áspero, doente) é o de uma mata enfezada e dura

 

                                                                            

                                                                                                                                                                                                    a partir de uma foto de Flávio de Barros

 

400 meninas de oito a 15 anos sobreviventes do massacre foram estupradas e/ou vendidas para a prostituição, segundo o filme As filhas do Belo Monte de José Luís Chiavenato. Os relatos históricos falam de um total de cerca de 300 mulheres e crianças feitas prisioneiras e levadas para Salvador ou para o Rio  de Janeiro.    

 

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revoluciomnibus.com - ciberzine & narrativas ©james anhanguera 2008-2020 créditos autorais: Era Uma Vez a Revolução, fotos de James Anhanguera; bairro La Victoria, Santiago do Chile, 1993 ... A triste e bela saga dos brasilianos, Falcão/Barilla: FotoReporters 81(Guerin Sportivo, Bolonha, 1982); Zico: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão Zico, Sócrates, Cerezo, Júnior e seleção brasileira de 1982: Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Edinho: Briguglio, Guerin Sportivo, Bolonha, 1982; Falcão e Antognoni: FotoReporters 81, Guerin Sportivo, Bolonha, 1981. E-mAIL

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